28 Novembro 2020
Craque argentino expressou a rebeldia das periferias da América Latina: a beleza em meio a bosque de pernas e a alegria frente às misérias cotidianas. Imperfeito, tornou-se, para o povo, um Deus real, possível e contestador.
O comentário é de Francisco Garrido, publicado por La Voz del Sur e reproduzido por Outras Palavras, 26-11-2020. A tradução é de Rôney Rodrigues.
Fui um dos que estavam na noite de novembro de 1992 na lateral esquerda do gol sul do Pixjuán [estádio em Sevilha, Espanha] quando um menino jogou uma bolinha de papel aluminio de seu lanche em direção a Maradona. Diego, sem deixá-la cair no chão, fez maravilhas. O estádio inteiro veio abaixo e até a defesa do Zaragoza [clube espanhol] ficou paralisada, contemplando as barbaridades que o argentino fez com a bolinha do lanche do moleque. Assista aqui:
Maradona compartilhava com Garrincha e com George Best [jogador norte-irlandês, que se destacou no Manchester United] de um corpo impossível para a prática do esporte, afetado pela pobreza, pela pólio ou pela tuberculose. Os três foram adorados pelo povo como ninguém jamais o foi e encontraram, finalmente, a redenção no álcool. Eles são o exemplo mais claro de que o futebol não é um esporte, mas uma religião popular, orgiástica, trágica, insana, onde o corpo atlético é quase um estorvo; é a última marca da pobreza; a religião da classe trabalhadora. Nos bairros miseráveis de Buenos Aires, nas favelas do Rio ou nos bairros de Belfast, milhões de trabalhadores pobres sonham com os dribles de Maradona, as fintas de Garrincha com as pernas tortas pela pólio ou com os cortes de um Best que sempre parecia ter escapado do pub para jogar uma partida com os amigos. Esse é o barro de onde nascem, se criam e crescem os gênios de um jogo que nasceu com o capitalismo industrial, mas que na realidade representa um enorme intervalo entre as explorações cotidianas. Pasolini viu que esse jogo, longe ser um tempo alienado, como sempre acreditou torpemente a esquerda demosfóbica, é um tempo sacramental para os párias da sociedade.
Os três (Maradona, Garrincha e Besta) eram, no campo e na vida, o exemplo de contraexemplo que todos queríamos ser; perfeitos em serem imperfeitos. Em cada um de seus movimentos em campo, haviam espaços infinitos onde os demais, incluindo seus companheiros, não viam nada mais que um bosque de pernas. Na vida, se passava o mesmo, abriam alamedas de alegria onde só percebíamos misérias. Como aquele Eric Cantona [ex-jogador francês] do filme de Ken Loach, quando mais obscuras as coisas se tornavam, eles sempre apareciam para levantar-se contra os filhos da puta da mais-valia.
Ainda que pareça paradoxal, Maradona era a imagem idealizada dessa periferia onde vivem aqueles que nasceram para serem espoliados e, inclusive com promessas de uma redenção impossível. Se alguém quer saber o que é populismo, mais que ler Ernesto Laclau [teórico político argentino], que tente compreender esse fenômeno social que é Maradona, assim como foi Garrincha ou Best. Possivelmente dizer que Maradona era Deus seja, em certo sentido, falta de respeito com Maradona, mas em outro sentido o cabeludo [“O Cabeludo”, ou “El Pelusa”, foi um dos muitos apelidos do jogador] era um Deus, mais real que qualquer outro porque se Deus não é mais que a sublimação do povo, como acreditava Durheim, Maradona era o povo em carne viva sob a forma imperfeita e rugosa de uma bolinha de papel como aquela do lanche que o menino lançou-lhe naquela tarde de novembro em Pizjuán.
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Maradona como religião da classe trabalhadora - Instituto Humanitas Unisinos - IHU