20 Junho 2010
Espécie de guerra simulada, o futebol é um esporte de natureza agonística, destaca o antropólogo Arlei Damo. Repleto de simbologias, ele é capaz de atrair atenções para as disputas da Copa do Mundo, sobretudo. No Brasil, isso é ainda mais verdadeiro quando a seleção entra em campo. “Somos reconhecidos internacionalmente pela originalidade da nossa maneira de jogar, e isto se deve, em boa medida, à maneira como a cultura corporal afro-brasileira processou as regras do então chamado ‘nobre esporte bretão’”, disse Damo na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line.
Damo é graduado em Educação Física, mestre e doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, e leciona nessa mesma instituição. É autor de Futebol e Identidade Social (Porto Alegre: UFRGS, 2002) e Do dom à profissão: a formação de futebolistas no Brasil e na França (São Paulo: HUCITEC, 2007) e coautor de Fútbol y Cultura (Buenos Aires, Norma, 2001).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em outra entrevista à nossa publicação, o senhor afirma que o futebol é o “símbolo laico da nação”. Como isso se exacerba em tempos de Copa do Mundo?
Arlei Damo - A copa é um evento que dura menos de um mês. E a equipe que representa o Brasil tem, a rigor, três performances confirmadas, podendo ampliar para sete caso chegue às finais. Rigorosamente, isto é o que temos em termos de jogos propriamente ditos, mas a mobilização para eles é de fato bem mais ampla. A seleção que vai representar o Brasil nestes poucos jogos é preparada ao longo de quatro anos, em jogos amistosos, durante as eliminatórias ou através da disputa de outras competições.
Paralelamente à preparação da equipe que, de fato, entra em campo, temos a mobilização do público. Assim sendo, temos, por um lado, uma mobilização permanente do apreço pela seleção. Tende a ser reafirmada a própria crença de que a equipe organizada pela CBF, uma entidade privada, é o Brasil, a tal ponto que parece algo natural, incontestável. Por outro lado, observa-se a intensificação desta mobilização, de forma gradativa, à medida que a copa se aproxima. Assim sendo, quando a seleção entra em campo, a impressão mesmo é de que se está diante de algo derradeiramente importante, dramático, inevitável. Só quem pensa diferente é que está fora de contexto.
IHU On-Line - Em que sentido o futebol é uma guerra simulada, metafórica?
Arlei Damo - Esta é uma analogia antiga no espectro da literatura em ciências sociais. Não creio que alguém possa reivindicar os direitos autorais desta ideia, de tão disseminada que é. Eu também a tenho reproduzido, mas percebi, ultimamente, que ela, por vezes, é mal compreendida, pois muitos a tomam como se fosse uma proposição que aprisiona o futebol na perspectiva da guerra. Diria, então, que o espaço do futebol pode ser pensado como tendo uma intersecção com o da guerra (no sentido de disputa, sobretudo), mas também com outros megaeventos (espetáculos de música, por exemplo), festas (religiosas ou profanas, pouco importa), ritos coletivos, mercado de bens simbólicos e assim por diante.
De minha parte, pelo menos, quando afirmo que o futebol é uma guerra simulada, tenho em mente a estrutura mesma do jogo, que é algo anterior ao próprio futebol, pois tal estrutura, de natureza agonística, é partilhada por todos os esportes. Sem exceção, mas com algumas variações significativas, todas as competições esportivas partem de um ponto no qual os contendores são pensados como estando em situação de igualdade para, ao final de um período de tempo no qual eles se envolvem numa disputa altamente regrada, produz-se uma cisão entre vencedores e vencidos. A guerra é produto de um impasse, de um empate diplomático, digamos assim. No esporte, o impasse é forjado, daí a ideia de simulação.
Dentre os vários pensadores que se reportam a esta analogia, foi, sem dúvidas, Norbert Elias que a pensou mais detidamente, estabelecendo, inclusive, conexões empíricas. O sociólogo alemão mostrou que a invenção dos esportes modernos é, em boa medida, paralela à curialização dos guerreiros a partir do final da Idade Média. Fazer a guerra foi, durante a Idade Média, uma ocupação nobre, que instituiu, inclusive, uma classe de nobreza. As campanhas eram permanentes porque estas configurações precisavam se reproduzir. Então havia um processo de recrutamento permanente, de modo que as chances de alguém do sexo masculino vir a ser convocado para a guerra era de fato muito alta. Ou seja, a guerra estava no horizonte de quase todos os homens. Progressivamente, dirá Elias, as guerras vão perdendo espaço para o diálogo, conquanto isto não deva ser pensado em perspectiva humanitária.
Esportes e economia disciplinar
O que ocorre, de fato, é a emergência de um tipo de organização social e política chamada Estado-nação, que define, entre outras coisas, certas fronteiras geográficas e, fundamentalmente, a ideia de autonomia interna e respeito externo. Negociar, em todos os sentidos, torna-se mais importante do que brigar. Daí surge um equilíbrio dinâmico. É fato que a diplomacia – que ajuda a preparar, evitar ou reparar a guerra – adquire importância cada vez maior. Os fluxos comerciais, através das fronteiras, ganham destaque em relação à pilhagem e ao saque. A guerra passa a ser uma estratégia; um meio, e não um fim.
Inevitavelmente, há um aquartelamento dos guerreiros e a necessidade de criar uma economia disciplinar que os mantenha apaziguados e, simultaneamente, alerta. Os esportes, na perspectiva de Elias, têm muito a ver com esta economia disciplinar, que é ao mesmo tempo moral, emocional e corporal. A partir do século XIX, os esportes passaram por transformações radicais, no sentido de codificação das regras, e assim puderam ser estendidos à prática de um espectro mais amplo da sociedade, com uma contribuição decisiva dos internatos religiosos ou laicos, que em boa medida lembram, outra vez, os quartéis. O século XX viu os esportes se autonomizarem do ponto de vista econômico, estético e moral. Mas esta autonomia é sempre parcial, pois os nexos com outras esferas sócio-culturais podem ser recuperadas a qualquer momento, e nisto reside inclusive os nexos com a guerra.
IHU On-Line - A nacionalidade continua sendo um critério de escolha para os atletas que jogam na Copa do Mundo. Qual é o sentido dessa premissa se levarmos em consideração que muitos desses atletas não jogam e não moram em seus países há tempo?
Arlei Damo - Em um texto, publicado no livro Nações em Campo, desenvolvi um argumento, retomado em outros momentos, que me parece bastante esclarecedor a este respeito. A FIFA é uma entidade corporativa que se propagandeia, de modo muito convincente, como uma espécie de entidade supranacional sem fins lucrativos e com interesses voltados ao congraçamento entre as nações através do futebol. Se seguirmos esta perspectiva, reproduzida como uma verdade inconteste por quase todas as mídias – e uma mentira dita um milhão de vezes será uma verdade, bem sabemos -, nos distanciamos de qualquer possibilidade de entendimento da realidade. A FIFA visa lucro, e o faz de modo muito incisivo, tanto que exigiu do governo brasileiro um estatuto especial que a isenta de tributação, algo ao alcance de poucas empresas capitalistas. Isto dá uma ideia do poder de barganha desta entidade e, vale acrescentar, seus interesses, se é que não se resumem ao empreendedorismo comercial, são no mínimo difusos ou pelo menos mais amplos e menos nobres do que sua propaganda.
Mas afinal, de onde provém tanto poder? Do fato da FIFA, à diferença do que ocorre na maioria dos outros esportes, deter o monopólio do futebol de espetáculo. Ou seja, ela impõe as regras do jogo, que não são apenas as regras do jogo jogado dentro de campo, pois essas estão a cargo da Internacional Board, parceira da FIFA. A FIFA determina as regras fora de campo, de como os clubes e os jogadores devem se portar. Tem sua própria justiça, que por vezes se confunde com o sistema jurídico estatal, mas que de fato é uma “justiça bastarda”. A FIFA delega poder às confederações continentais – tipo UEFA e COMMEBOL - e às federações nacionais – CBF, por exemplo -, que podem, inclusive, delegar aos próprios clubes filiados a organização das competições nacionais – é o caso de quase todos os países europeus em que as chamadas ligas organizam as competições profissionais. Isto posto, fica mais claro perceber que existem, a rigor, dois sistemas de disputas no âmbito do futebol de espetáculo: um deles, denominado clubístico, e o outro, com o perdão do neologismo, nacionalístico. A FIFA controla os dois, obviamente, mas é sobre o nacionalístico que ela detém o monopólio absoluto.
Jogadores como mercadoria
No sistema clubístico, a FIFA permite às equipes o vínculo com os atletas a partir de critérios trabalhistas, muito próximo do que ocorre com outros profissionais. O contrato entre indivíduo e instituição – ou seja, entre clube e jogador – é mediado por critérios legais e econômicos, sendo comum a circulação de jogadores conforme as regras deste mercado particular. A FIFA impõe algumas normas, entre as mais importantes, a impossibilidade de um jogador prestar serviço a dois clubes simultaneamente. Mas, insisto, ela admite o mercado que é, não apenas um mercado laboral, mas um mercado de pessoas, pois os jogadores têm preço e são tratados como mercadorias.
Finalmente, o grande segredo: a FIFA não permite que este tipo de mercado seja instituído em relação às seleções nacionais. Aqui o vínculo privilegiado é de outra natureza, de cidadania. Ou seja, um jogador só pode atuar por uma seleção nacional, a de seu país de nascimento, ou se tiver o título de cidadão de outra nação, mas tal aquisição passa por critérios que excedem o âmbito esportivo. Isto pode parecer um mero detalhe do ponto de vista prático, mas é essencial do ponto de vista simbólico. No caso do sistema nacionalístico de disputas, o engajamento dos indivíduos se dá mediante critérios de nacionalidade, razão pela qual o time recrutado pela CBF, por exemplo, acaba facilmente parecendo (e sendo) o Brasil, como se fosse um exército laico. Se a FIFA permitisse o recrutamento das seleções mediante critérios econômicos, não tenho dúvidas de que a Arábia Saudita entraria na Copa como favorita. Mas, neste caso, as copas perderiam completamente o sentido e, portanto, o público, logo, os patrocinadores. A FIFA, mais do que ninguém, sabe disso.
IHU On-Line - Em que medida a Copa na África do Sul representa uma “democratização” do futebol para fora do eixo do Primeiro Mundo como sede do evento?
Arlei Damo - Foi o ex-presidente João Havelange quem instituiu que as Copas deveriam ser realizadas em continentes distintos, num sistema de rotatividade. Um dos objetivos era ampliar o mercado futebolístico, pari passu o processo de globalização. Outro objetivo de Havelange era o poder. A FIFA era dominada pelos europeus – ainda hoje eles constituem 1/3 dos participantes da copa, por exemplo –, e Havelange teria mais chances de se reproduzir no poder se ampliasse o leque de votos, ampliando o leque de federações e, por extensão, de representantes delas nas competições organizadas pela entidade. Foi estratégica, portanto, a ampliação do número de participantes nas copas, até as 32 seleções atuais, bem como o rodízio que incluiu o continente africano. Havelange tenta fazer crer, insistentemente, que a copa da África do Sul é sua maior conquista porque estaria cumprindo, afinal, o desígnio de irmandade entre as nações, contemplando os cinco continentes. Sem contestar, de todo, a plausibilidade desta perspectiva explicativa, afinada com o multiculturalismo, devem-se incluir outras, entre elas a multimercadológica. Tanto é verdade que, a partir de 2018, haverá concorrência aberta para a escolha do país-sede. Afinal, o futebol está globalizado. A tendência será uma concentração maior de copas na Europa – os demais que assistam pela TV - e a predominância dos interesses estritamente comerciais.
IHU On-Line - Como podemos entender que o futebol, e em específico a Copa do Mundo, tenha o poder de “parar” o País? Que outro acontecimento teria essa força de mobilização?
Arlei Damo - A seleção brasileira de fato tem um poder simbólico notável. O esporte tem este poder de representação. Como diria o historiador inglês Eric Hobsbawm, não existe nada mais potente, em termos de representação, do que um símbolo humano. E os atletas, individualmente ou coletivamente, são exatamente isso. É difícil rivalizar com eles. Os heróis de guerra talvez o façam, mas o Brasil não tem tradição nisso. Os pop stars podem ser alçados às alturas, mas falta-lhes, na maioria das vezes, algo que os vincule às causas coletivas. De outra parte, o esporte precisa, desesperadamente, deste sentido que lhe é exógeno. Minha querida avó, por exemplo, nunca achou a menor graça em um bando de homens correndo atrás de uma bola. Sempre pensou que isso fosse uma infantilidade, para não dizer uma estupidez. Eu concordo plenamente com ela. Mas para ela, tudo muda de sentido quando esses marmanjos vestem uma camisa verde e amarela. Somos humanos por conta disso, porque habitamos um universo de símbolos.
IHU On-Line - O senhor percebe tanto interesse em outros países, como no Brasil, em relação ao futebol? Por que somos considerados a terra desse esporte se o seu berço é a Inglaterra?
Arlei Damo - Há outros países tão ou mais interessados em futebol do que o Brasil. Argentina, Itália, Inglaterra, Espanha, são apenas alguns exemplos. O que ocorre de diferente, talvez, é que, no Brasil, há uma hegemonia do futebol em relação a outros esportes. Daí a impressão que se trata de um esporte brasileiro. Não se pode deixar de lembrar, todavia, que somos reconhecidos internacionalmente pela originalidade da nossa maneira de jogar, e isto se deve, em boa medida, à maneira como a cultura corporal afro-brasileira processou as regras do então chamado “nobre esporte bretão”.
IHU On-Line - Como podemos entender que o Brasil tenha tanto sucesso no futebol em relação aos outros países? O que nos torna tão diferente das outras nações, a ponto de termos vencido a Copa cinco vezes?
Arlei Damo - Muita gente não gosta de explicações sociológicas, que a rigor são científicas e, portanto, reduzem a margem para as especulações místicas. Este é um caso. O Brasil é o país mais populoso do mundo no qual o futebol é o esporte mais popular. Pela lógica, nós temos o maior número de praticantes em termos absolutos. E como eu penso que a qualidade não é alheia à quantidade, não seria de esperar senão que no Brasil se produzissem muitos profissionais qualificados. Mas isto não é tudo. O quase monopólio do futebol centrifuga os talentos esportivos. Os meninos podem aprender outros esportes na escola ou em clubes, mas, o futebol, eles aprendem em toda a parte. Então existe uma extensa quantidade de talentos para ser recrutada, uma superabundância, eu diria. Mas não se pode descartar também a qualidade dos nossos centros de formação, em boa parte, voltados para a produção de atletas-mercadorias. Somos efetivamente muito bons nisso, mas não me parece que seja apenas motivo de orgulho. Se pensarmos que o futebol é uma modalidade de bem simbólico – que pode ser consumido como um teatro, cinema ou outro bem que não possui uma dimensão material -, temos que admitir também que a grande indústria de transformação está situada na Europa – Inglaterra, Itália, Espanha, especialmente. É lá que se realizam os jogos irradiados ao mundo inteiro. No Brasil, produzimos um espetáculo de qualidade mediana, pois nossos talentos principais foram recrutados pelos europeus. Em síntese, no mercado futebolístico, ocupamos a mesma posição que o Brasil se encontra no âmbito mais amplo da economia: a de produtores de commodities.
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Futebol, um esporte agonístico. Entrevista especial com Arlei Damo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU