03 Julho 2024
Empresas como A&M concebem "parcerias público-privadas" de olho em "drenar" recursos públicos, sobretudo da educação, diz autor.
A entrevista é de Cintia Alves, publicada por GGN, 01-07-2024. A produção e a tradução são de Dolores Guerra.
A ideologia neoliberal tem deixado suas digitais não somente nas tragédias ambientais catalisadas por ação humana, mas também no ambiente de negócios criado em meio à mobilização para “reconstruir” as regiões afetadas por esses desastres, como acontece no Rio Grande do Sul, o estado alagado que já recebe assessoria de consultorias como Alvarez & Marsal, McKinsey e EY.
Críticos têm alertado que empresas estrangeiras oferecem seus serviços em caráter pro bono ao poder público em momentos de crise e comoção para, entre outros motivos, terem acesso a dados sensíveis e sob domínio do setor público, e depois utilizá-los em nome de seus próprios interesses privados.
Professor de estudos de política educacional na Universidade de Illinois em Chicago (EUA) e autor do livro “Capitalizando desastres”, Kenneth Saltman disse à reportagem do GGN que “há certamente razões para esperar tal curso de ação” em relação ao Rio Grande do Sul.
Há décadas, Alvarez & Marsal e outras consultorias, fundações e organizações internacionais têm atuado globalmente para criar um ambiente propício à penetração do capital privado em setores públicos que deveriam estar blindados, mas que acabam apresentados à opinião pública como ineficientes. É o caso da educação, um direito que deveria ser universal, mas que em locais por onde a A&M já passou, nos EUA, acabou privatizada.
“A evidência mostra que isto tem sido esmagadoramente destrutivo, ao agravar as desigualdades educativas e a segregação racial e ao minar o acesso universal. Os lucros visam drenar dinheiro dos sistemas públicos para que possam enriquecer os investidores”, disse Saltman.
Saltman aceitou falar sobre a A&M e seu trabalho de pesquisa sobre a capitalização de desastres em troca de e-mails com a reportagem do Jornal GGN. Na entrevista a seguir, o especialista fala da tendência global de empresas que procuram lucrar com o setor público em meio a tragédias, detalha o caso da Alvarez & Marsal nos EUA, e avalia por que a ideologia neoliberal tem focado no rearranjo da educação pública para obter lucros, com apoio acrítico da imprensa e sem obstáculos legais à sua atuação flagrantemente conflituosa.
Na sua opinião, por que a Alvarez & Marsal teria interesse em prestar consultoria gratuita para o Rio Grande do Sul? O que a empresa ganha com isso?
A&M é uma empresa com fins lucrativos. Em Nova Orleans recomendaram milhões em cortes de despesas e depois cobraram milhões em taxas, ou seja, os seus próprios lucros.
Você poderia nos dizer onde e quando a A&M começou a investir em cidades destruídas por catástrofes?
Sua história de capitalizar desastres naturais e causados pelo homem é anterior ao furacão Katrina em 2005. Eles também estiveram envolvidos em Baltimore, Nova York e St. Louis. Como saliento na minha investigação, isto faz parte de uma tendência global mais ampla de empresas que procuram lucrar com o setor público e, mais especificamente, com as escolas públicas. Isto é conhecido como movimento de Reforma Escolar Corporativa ou Movimento de Reforma Educacional Global ou reestruturação educacional neoliberal. Isto envolve não apenas consultorias empresariais como a McKinsey e a A&M, entre outras, mas também empresas de investimento como a Goldman Sachs, que concebem esquemas para “parcerias público-privadas”, tais como obrigações de impacto social.
Este movimento também envolve empresas de escolas charter, empresas de vouchers, conglomerados educativos e muitas organizações sem fins lucrativos que pretendem transformar radicalmente ou acabar com o ensino público, entregando as escolas públicas à indústria privada. A evidência mostra que isto tem sido esmagadoramente destrutivo, ao agravar as desigualdades educativas e a segregação racial e ao minar o acesso universal. Os lucros visam drenar dinheiro dos sistemas públicos para que possam enriquecer os investidores, ao mesmo tempo que drenam os recursos dos serviços públicos.
Nos seus estudos, você observou o peso que os serviços prestados ao setor público – incluindo consultoria financeira, reorganização de serviços ou reconstrução de cidades destruídas – têm nas contas da A&M? Este tem sido o seu principal foco de investimento, ou ainda não chegou lá?
A&M afirma ganhar mais de 1 bilhão de dólares por ano em alguns anos e está envolvida nos habituais serviços de “recuperação” de capital de risco. É comum que os capitalistas de risco comprem empresas em dificuldades, carreguem-nas com dívidas para pagar aos novos investidores e depois retirem os ativos e vendam as peças. Isto não é muito diferente do que a A&M trabalhou para alcançar em Nova Orleans.
Como estão hoje as cidades onde a A&M ofereceu consultoria? Como Nova Orleans, onde a A&M prestou consultoria antes e depois do furacão Katrina. Ou Saint Louis, onde a A&M trabalhou na reformulação do sistema de transporte escolar público. Fique à vontade para mencionar outros exemplos.
Antes do Furacão Katrina, as Escolas Públicas de Nova Orleans sofriam de um subfinanciamento radical devido, em parte, ao fracasso do setor empresarial em apoiar as escolas e a um sistema de financiamento baseado na riqueza imobiliária. O desmantelamento total das escolas públicas (apoiado pela A&M) fez parte de uma estratégia da comunidade empresarial para desapropriar os pobres e as famílias predominantemente afro-americanas das comunidades mais atingidas pela tempestade. Em conjunto, o setor empresarial bloqueou a reconstrução de bairros. Depois que as comunidades foram expulsas, um sistema escolar privatizado foi colocado em seu lugar. Os esforços para medir a mudança no sistema através da análise dos resultados dos testes são em grande parte insignificantes porque a cidade foi radicalmente gentrificada com a ajuda da A&M. Parte do trabalho da A&M foi a demissão de todos os professores das escolas públicas e o desmantelamento de seu sindicato. Os tribunais finalmente decidiram contra essas ações.
Nos EUA, de forma mais ampla, foi comprovado que a privatização por meio de fretamento resulta em uma série de resultados negativos, incluindo a redução dos salários dos professores e o aumento dos salários administrativos, a diminuição da experiência dos professores, o aumento da rotatividade de professores, o agravamento da segregação racial, a falta de prestação de serviços de educação especial e serviços de segunda língua e preparando o terreno para esquemas financeiros como fraudes imobiliárias.
No Brasil, alguns críticos da parceria entre A&M e Rio Grande do Sul apontam que o interesse da empresa em oferecer seus serviços de forma pro bono seria acessar dados e informações privilegiadas dentro do estado, e depois “vendê-los” para o setor privado. O que você acha dessa avaliação? Você conhece algum caso em que a A&M tenha feito isso antes?
Há certamente razões para esperar tal curso de ação, considerando que os dados sobre a educação são uma grande direção da A&M para a atividade lucrativa e considerando que a privatização da educação digital é a nova fronteira na privatização da educação. Colocar aplicativos nas escolas e coletar dados lucrativos é uma indústria global grande e crescente. Existem grandes problemas com isto, incluindo o valor educacional duvidoso dos produtos digitais e preocupações com a privacidade na recolha de dados.
Por que, na sua opinião, consultorias estrangeiras como a A&M contam com o apoio acrítico da imprensa e não parecem enfrentar fortes obstáculos legais ao seu trabalho no setor público, apesar de seus negócios serem marcados por óbvios conflitos de interesses?
Parte disto tem a ver com a persistência zumbi da ideologia neoliberal que enquadra mal o setor privado como sempre eficiente e eficaz e enquadra o setor público como inevitavelmente sobrecarregado burocraticamente. Parte disso tem a ver com o fato de que tem havido uma promoção global de abordagens corporativas para a reforma escolar por parte de organizações supranacionais como o Banco Mundial e a OCDE e de fundações corporativas como Gates e Walton e Broad e Dell e Fisher e Rockefeller, para citar alguns, e tem havido uma promoção incansável disto por todo o mundo por parte de consultores como a McKinsey e lobistas políticos.
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Há uma tendência global de consultorias privadas interessadas em tragédias como a do RS. Entrevista com Kenneth Saltman - Instituto Humanitas Unisinos - IHU