19 Junho 2024
“A economia como a conhecemos foi historicamente separada da ecologia e cultivada na dinâmica da competição, e não na cooperação; foi forjada na segregação, e não na emancipação; foi azeitada no desenvolvimento, e não no envolvimento. Em resumo, foi o Papa Francisco quem melhor a definiu chamando-a de 'economia da morte'”, escreve Rafael Santos Silva, doutor em Sociologia, professor na Universidade Federal do Ceará e membro do Movimento Igreja em Saída.
Aproximadamente 8 bilhões de pessoas chegaram ao 24º ano do século XXI. Nem todos acessam uma economia razoável ou uma ecologia segura. Segundo o renomado professor Ladislau Dowbor, 1% saqueiam 45% de toda a riqueza. O Banco Mundial admite que 3,1 bilhões sobrevivem sem uma renda suficiente para realizar uma dieta equilibrada. Muitas pessoas enfrentam diversas formas de pobreza, na zona urbana ou rural; afetadas pela desigualdade, outras tantas pela exclusão social e outras pela fome. O empobrecimento dos povos tradicionais obriga milhares de pessoas a abandonar de suas terras. A guerra elimina diariamente civis e inocentes em nome do poder tirano. Juntas, a pobreza e a guerra vomitam os refugiados pelas ruas da Europa à vagar por subexistência. No passado recente, milhões de pessoas sucumbiram à pandemia, e aquelas que superaram assistem incrédulas as mudanças climáticas.
Nesse aspecto, os cientistas do clima erraram? Se, sim! Vossos erros não se deram em alertar para o tamanho do problema. Desde o relatório apocalíptico “Limites do Crescimento” apresentado em 1972 pelo Clube de Roma, o mundo era alertado sobre o arriscado avanço do consumismo desenfreado. O derretimento das geleiras provocadas pelo excesso de emissões de CO2 ou mesmo as chuvas intensas e desproporcionais como as registradas no sul do país, eram de certa forma previsíveis pelos modelos matemáticos dos cientistas do clima. Eles não erraram aí. Mas, quando previram que tais mudanças chegariam somente nos próximos 50, 70 ou 100 anos.
Por que? Porque pisamos forte no acelerador do desenvolvimento. Deixamos o século do consumo, para mergulharmos de cabeça no século dos excessos. Estes estão por toda a parte ditando comportamentos. Aqui no consumo; ali na produção, acolá nas relações paternais, filiais e até mesmo sexuais. É o excesso que orienta a sociedade civilizada. Diante deste cenário, o modelo econômico chamado de desenvolvimento sustentável, se mostra uma contradição em termos. A economia como a conhecemos foi historicamente separada da ecologia e cultivada na dinâmica da competição, e não na cooperação; foi forjada na segregação, e não na emancipação; foi azeitada no desenvolvimento, e não no envolvimento. Em resumo, foi o Papa Francisco quem melhor a definiu chamando-a de “economia da morte”.
No campo prático emergiu uma senhora frágil, debilitada e completamente indefesa. Estima-se que metade do orçamento mundial gasto em guerras seria suficiente para protegê-la e suas forças seriam reestabelecidas com um pouco de descanso. Isso ocorreria se seus filhos modificassem seus comportamentos excessivos; parasse de guerrear; deixasse de produzir além do necessário, ou se simplesmente resolvesse se organizar fraternalmente. Comenta-se que está senhora encontra-se enferma pela sexta vez; na última ela se regenerou quando um meteoro lhe atingiu a face eliminando seus filhos, também conhecidos por dinossauros. Estes eram animais irracionais, se organizavam de forma selvagem e não sustentavam grandes tratados políticos. Não criaram para si civilizações ou cidades. Ainda assim a extinção foi inevitável!
Mas ao se reerguer, a velha senhora de quem falamos, atuou fortemente para dar consciência aos seus novos filhos. Com boa mãe, cuidou para que nada faltasse. Permitiu a evolução em sociedades e comunidades. Como espelho de sua sincronia ecológica permitiu que criassem um regulador comum que mais tarde chamaríamos por democracia.
Pediu-lhes que em seus relacionamentos não faltasse civilidade, sociabilidade, urbanidade e evitasse a todo custo os excessos. Como resposta, atesta Leonardo Boff, a velha mãe viu seus filhos se pautar pela lógica dos dois infinitos: “o primeiro: o infinito dos recursos naturais... E como consequência, o infinito do crescimento econômico”.
Feito àquele filho pródigo das escrituras, os filhos da velha senhora deram com os ouvidos, e se acharam dominadores de tudo. Senhores de uma suposta razão, pediram sua parte na herança e algo a mais.... Agiram feito desbravadores, exploradores e gananciosos. Ávidos acumuladores, se tornaram indolentes, ao gastar toda a riqueza com excessos. Sentindo-se indomáveis colonizaram tudo, inclusive a própria mãe. Arrogantes, parecem não ter aprendido nada com o passado, e ao assumir a couraça do dominador passaram a explorar técnicas, a manipular pessoas, e por último a esgarçar a ecologia, sem se dar conta de que está é a primeira pele a revestir o corpo adoecido da velha senhora, que também atende por TERRA. Como bem dizem Eric Hobsbawn e James Lovelock “... ou mudamos de rumo ou podemos conhecer o mesmo destino dos dinossauros...”.
É precisamente está observação que dá sentido à liturgia que iremos celebrar hoje. Especialmente quando o evangelista Marcos vai nos ajudar a compreender que todo crescimento natural não é infinito. E que o tempo de evolução das coisas precisa ser respeitada. No quarto capítulo do seu evangelho, o apostolo vai ser preciso ao narrar que “uma semente, se faz erva, depois espiga e por fim grão, somente então chega o tempo da colheita.” A liturgia chama atenção para as fases da vida. E o tempo da colheita é a justa medida de celebrar o trabalho e a dignidade dos seus resultados. Desta forma, o lugar da vida só pode ser resultado de uma ética coletiva e do cuidado comum, cuja razão maior não pode prescindir à uma ecologia integral.
O mundo moderno precisa dar sentido às escrituras e praticá-la no seu tempo. Por isso, nossa celebração de hoje precisa refletir a dura realidade ecológica a qual estamos submetidos. Somos convidados a fazer uma ligação direta entre a parábola da semente que germina no seu tempo, e o tempo da ganância e do crescimento infinito que criamos para forçá-la a germinar.
Com esse pano de fundo algumas perguntas radicais estão a nós interpelar: Por que as sementes não germinam para 800 milhões de pessoas que passam fome? Para 200 milhões de refugiados climáticos? Por que não germinam para os refugiados das guerras? Por que o tempo da colheita não chega para 540 mil cearenses que passam fome? Para as mães das periferias cujos seus filhos foram vítimas da violência? Para os moradores das ruas e os presidiários torturados? O que fizeram com as sementes dos pobres? Dos índios? Dos negros? Das crianças brasileiras, que sendo estupradas correm o risco de serem condenados a 20 anos de prisão como consequência do estupro que sofreram?
Onde estão as sementes na fala do governador Eduardo Leite (PSDB) do Rio Grande do Sul ao afirmar não ter dado atenção aos alertas dos cientistas para não prejudicar o mercado?
Onde estão as sementes na fala do vereador de Fortaleza o Sr. Luciano Girão (PDT) que ao propor nova lei para reduzir o Parque do Cocó, afirmou cinicamente “desconhecer” até a sua vegetação?
Irmãos e irmãs, o evangelho e a carta encíclica Laudato Si' são sofisticadamente simples, mas exigentes. Especialmente ao nos alertar dos perigos de uma ecologia desequilibrada e de uma economia de morte. Como observei no livro “as cores da Laudato si” o Papa Francisco nos alerta ao lembrar “a vida não é negociável, nem cabe em prateleiras...”.
Finalmente, estamos diante de uma realidade a nos interpelar e nos clama ação. Por isso, a pedagogia da semente nos convida com muito entusiasmo a celebrar à vida a partir da nossa responsabilidade comum com a ecologia integral bem apresentada de forma profética pelo Papa Francisco.
*Texto lido no início dia missa animada pelo Movimento Igreja em Saída na manhã do 16/06/2024, quando celebrou-se o meio ambiente a partir da Laudato Si'.
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A pedagogia das sementes. Artigo de Rafael dos Santos Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU