01 Junho 2024
“Mesmo a atual condição de formas religiosas ‘mistas’ não é um impedimento à obra do Espírito, e a nossa tarefa é ver a sua obra em todos os lugares, realçando os seus traços onde quer que estejam”, opina Gilberto Borghi, teólogo, filósofo, psicopedagogo e professor de Religião, em artigo publicado por Vino Nuovo, 20-05-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“A religiosidade faz parte da vida cotidiana, é inerente à natureza humana”; “parece que muitos jovens preferem não se questionar e deixar a vida os levar, mas estou convencida de que é apenas uma aparência”. E ainda: “Não nos falta interesse pelo sagrado, mas não nos identificamos com uma religião e com os seus fiéis”; “cultivo uma relação individual com uma dimensão divina fora da religiosidade tradicional”.
Essas frases, recolhidas entre os meus alunos, são alguns dos muitos exemplos que traduzem as duas atitudes que, a meu ver, desde o fim dos anos 1980, se tornaram cada vez mais difundidas e evidentes em relação à religião.
A primeira é o “reaparecimento” da espiritualidade nos discursos e discussões que podem ocorrer em locais públicos. Em outras palavras, a secularização – aquela “dura” que confinava o discurso espiritual à esfera dos assuntos pessoais privados – mudou. Hoje é muito difícil encontrar pessoas profundamente convencidas de que só existe a dimensão histórico-material da realidade. Tanto é que a questão sobre o significado da dimensão espiritual está massivamente presente nas salas de aula, nas redes sociais, nos talk shows, nos livros, nos filmes há pelo menos 20 anos...
A segunda atitude corresponde ao que os sociólogos da religião há muito identificaram: a tendência para uma “religião do tipo faça você mesmo”. Rezar, meditar, pensar na existência de uma dimensão transcendente já não é tão raro entre os meus alunos (e também entre muitos adultos), mas isso é buscado em formas, conteúdos e modos muito diferentes das adesões clássicas e culturais de 40-50 anos atrás, às grandes formas religiosas. Essa situação pode ser atribuída à combinação de pelo menos dois elementos de mudança, que explodiram desde o fim da década de 1980.
O primeiro é o efeito de “despedaçamento antropológico” que a pós-modernidade traz consigo. Ao contrário do que aconteceu na modernidade, hoje a racionalidade, a emoção e o instinto lutam para conviver dentro do indivíduo, provocando uma espécie de convivência forçada entre eles, como pessoas separadas em casa. Nessa condição, a adesão religiosa é cada vez mais prerrogativa da emoção, ofuscando a coerência racional das ideias consideradas sensatas. Muitas vezes, encontro pessoas que vão à igreja, se declaram cristãs e acreditam na reencarnação; ou que assumem que nossa alma é parte de Deus; ou que Deus é a soma de tudo o que existe.
O segundo efeito interessante é a “corrosão dos laços institucionais”. Ao contrário da modernidade, hoje relutamos em “confiar” nas instituições, porque vimos toda sua “incapacidade e incoerência” para realmente conseguirem dar respostas eficazes aos problemas comuns da vida pessoal e social. Nessa condição, a autoridade de uma religião institucional já não é crível a priori, mesmo antes de ter verdadeiramente compreendido sua mensagem profunda. Isso deixa espaço para um individualismo espiritual, em que a expectativa do sentido último e a construção de uma visão do mundo baseada nele só pode ser feita individualmente, com uma busca que, em última análise, nunca poderá chegar à plenitude suficiente.
Diante disso, as religiões institucionalizadas reagem de duas maneiras. Por um lado, como reação à perda de autoridade, endurecem as identidades teológicas, tentando fortalecer a unidade da visão teológica, tirando espaço para pensamentos divergentes. Isso parece levar à desorientação de alguns fiéis, que, nesse individualismo espiritual, se sentem “sem limites e horizontes”, mas acaba por bloquear a sua investigação pessoal e os leva a confiar cegamente na autoridade religiosa a que se referem. Os fundamentalismos, os extremismos religiosos e os fanatismos que regressam à cena são o efeito desse “medo” da perda de identidade, mas provocam uma adesão religiosa que pode tornar-se verdadeiramente perigosa e desumana. Se você avistar um inimigo, é mais provável que você se una para lutar contra ele.
Por outro lado, porém, assistimos à sobrecarga de valor oferecida pelos expoentes das religiões tradicionais a tudo o que provoca emoções intensas e inusitadas, entendido como um acontecimento em que o “transcender” se torna significativamente presente. Hoje, mais do que nunca, as presenças angelicais, as manifestações milagrosas, os fenômenos “outros” para além da chamada normalidade são muito atraentes, especialmente pela sua possibilidade de fazer “sentir” o transcendente, independentemente de qualquer forma de pensamento teológico que possam transmitir. Quase todos os meus alunos sabem o que é Medjugorje; eles têm interesse em presenças angelicais e demoníacas; bisbilhotaram as notícias sobre as Nossas Senhoras chorando. E tudo isso como uma parte considerada muito interessante de sua busca espiritual.
Agora, como podemos ler esses fenômenos do ponto de vista do Evangelho? Se olharmos para o conjunto da revelação, centrada em Jesus, devemos reconhecer que a fé nasce em uma relação pessoal entre o fiel e Cristo, em que a dimensão dos sentimentos, no entanto, é central e em que a reflexão racional chega depois de a pessoa ter sido apreendida por Cristo. Mas na qual o equilíbrio interno da pessoa é garantido pela relação real com Cristo, e não pela adesão dogmática a verdades abstratas. Todos os “convertidos” mencionados nos Evangelhos seguem esta dinâmica: para eles, “o viver é Cristo”, isto é, não é um conjunto de ideias a serem coordenadas entre si, mas sim uma pessoa viva que os ama e que por isso se torna seu amor.
Esse mesmo ponto de partida, a relação com Cristo, em toda a revelação, é hoje possível graças ao poder do Espírito Santo, que é verdadeiramente o único capaz de “mediar” o transcendente. Mas não se deixa “fazer exclusivamente” por ninguém, nem pela Igreja institucional, nem por milagres. Nos Atos dos Apóstolos fica muito claro que o fiel chega à Igreja depois de ter encontrado Cristo no Espírito, e não antes. Portanto, a fé nasce também fora da Igreja, onde há vestígios de Cristo capazes de alcançar o coração humano.
Isso nos lembra que mesmo a atual condição de formas religiosas “mistas” não é um impedimento à obra do Espírito, e a nossa tarefa é ver a sua obra em todos os lugares, realçando os seus traços onde quer que estejam.
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Religião autofabricada. Artigo de Gilberto Borghi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU