“Fomos atingidos de uma maneira muito bruta”. Comunidade leopoldense é novamente afetada pelas enchentes no Rio Grande do Sul

Arte: Marcelo Zanotti / IHU

20 Mai 2024

“Não está sendo fácil lidar com tudo isto. Não sei se minha casa caiu nesta enchente porque já estava podre. Como vou chegar em casa e explicar para os quatro filhos que não temos nada, que as águas levaram tudo? Não estou nem tendo tempo para chorar porque os que estão alojados aqui precisam de mim. O pior vai ser quando voltarmos para casa. O governo vai ter que nos ajudar porque estamos todos passando por isto. Creio que Deus vai nos ajudar a vencer esta luta.” O depoimento é de Cleia Assunção de Freitas, coordenadora da Ocupação Orta, localizada no bairro Rio dos Sinos, em São Leopoldo, uma das comunidades atingidas pela enchente e pelo rompimento do dique do Arroio da João Corrêa no início da manhã de sábado, 04-05-2024. Aproximadamente 30 das 75 famílias que residiam na Ocupação Orta estão abrigadas no Centro de Esporte e Lazer da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. No total, 1.300 pessoas estão sendo atendidas por voluntários, religiosos/as e funcionários/as da universidade.

Karen Peres Carcamo, assistente social, voluntária da Rede Solidária São Leo e técnica do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos da Tenda do Encontro, das Missionárias do Cristo Ressuscitado, esteve entre as primeiras pessoas a receber os desalojados no abrigo da universidade. “Conversei individualmente com cada um que chegava aqui no sábado, para identificar as demandas de cada pessoa e repassar as informações para a equipe. Estamos dando suporte para os acolhidos e para as equipes de trabalhos”, relata. Os abrigados no campus universitário, informa, são oriundos de ocupações e bairros da cidade. “Quase toda a comunidade da Ocupação Steigleder, uma ocupação urbana que fica próxima dos bairros Santos Dumont e Rio dos Sinos, está aqui. Também estão famílias da Ocupação Leão, da Vila dos Tocos e da Vila Brás. Essas pessoas são de extrema vulnerabilidade social e vivem com o mínimo possível. Em outro pavilhão estão abrigadas famílias de classe média baixa dos bairros Vicentina e Charrua”.

Entre os acolhidos no ginásio universitário encontra-se Aldair José da Silva, militante do Movimento de Luta por Moradia – MLM e líder da Ocupação Steigleder, em São Leopoldo. Em conversa com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Aldair relata que nos últimos anos as famílias da comunidade sofrem com as enchentes e inundações na cidade. Ano passado, menciona, “fomos atingidos de uma maneira muito bruta. Da noite para o dia, tivemos água dentro dos lares de uma maneira impensável. Tivemos que socorrer as pessoas de dentro das casas com água até o pescoço: crianças, mães de família, idosos, cadeirantes, pessoas com doenças, pessoas com dificuldade para andar. Foi um trabalho feito pelos moradores, que fizeram seu próprio socorro porque tivemos dificuldade em contatar a Defesa Civil e os meios públicos de alojamento. Tivemos que nos virar com as mãos que a gente tinha. Aquele foi um aprendizado muito grande, que, neste ano, nos trouxe um diferencial para lidar com a enchente, para ajudar neste desastre”, relembra.

Quando os alertas de enchentes foram emitidos pelos órgãos governamentais, as lideranças iniciaram o trabalho de busca por abrigos e evacuação das residências. “Começamos a alertar as famílias e, antes da enchente, começamos a fazer um trabalho antecipado de fugir das dificuldades que, no ano passado, não conseguimos fugir. Quando foi dito que iria chover muito, contatamos a Defesa Civil e a Secretaria de Assistência Social da prefeitura para que viessem nos ajudar. Quando a água começou a levantar e a chegar nas casas, retiramos o povo antecipadamente, com caminhões e ônibus. Levamos as famílias para vários abrigos. Um deles no Rio dos Sinos, onde fomos bem acolhidos. Mas, depois, tivemos a infelicidade de ter o dique rompido, o que fez com que a água invadisse os bairros Santo Afonso, Brás, Rio dos Sinos e Campina. Tivemos que sair da paróquia Santo Inácio, no Rio dos Sinos, onde estávamos acolhidos e recebendo alimentação quatro vezes ao dia, com assistência higiênica e doação de roupas – em meio ao caos, várias pessoas estão dando muito apoio às famílias atingidas”, acrescenta.

Há duas semanas, Aldair e parte das famílias da comunidade Steigleder estão alojadas no abrigo organizado na Unisinos. “Graças a Deus, pela experiência passada, desta vez conseguimos nos fortalecer e ter um impacto menor em relação à enchente do ano passado. Hoje, estamos na Unisinos, sendo atendidos por voluntários. Tenho um grande agradecimento e carinho por cada um que tem se voluntariado com amor e dedicação e estão nos ajudando. Há muitas famílias aqui. Na nossa comunidade, temos quatro lideranças e cada um de nós está em um abrigo, cuidando de um grupo da comunidade. Nosso povo se separou em três partes e cada líder ficou com um grupo para manter a nossa união”, menciona.

Acolhida

Segundo Franciele Reche, professora nas Escolas de Saúde e Indústria Criativa e articuladora no Espaço Colaborativo de Fomento à Extensão da Unisinos, em dois dias a universidade organizou uma estrutura para receber alguns dos desabrigados da cidade. “Construímos uma cidade com tudo que é preciso para viver com o mínimo de dignidade. A alimentação está sendo produzida pelo curso de Gastronomia e Nutrição, a recreação com as crianças está sendo feita pelos colegas dos cursos de Pedagogia, Letras e Educação Física. Os profissionais da Saúde estão atendendo na enfermaria, no ambulatório. Temos ainda uma farmácia, que está produzindo os medicamentos que estão sendo utilizados. Colegas de outros cursos estão realizando tratamento da água, atendimento psicológico etc. Realmente, montamos uma cidade para acolher as 1.300 pessoas que chegaram”, informa.

Duas mil refeições (almoço e jantar) estão sendo produzidas no laboratório do curso de Gastronomia e Nutrição por turno, servidas ao meio-dia e à noite no ginásio, além de lanches e café da manhã. Neste momento, pontua, “a Unisinos não está só sendo um abrigo, mas um lar para a comunidade. Isso muda tudo”. De acordo com a pesquisadora que há sete anos investiga temas relativos à insegurança alimentar, erradicação da fome em contexto de pandemias e catástrofe, a ação de solidariedade promovida pela universidade está diretamente associada aos valores da Unisinos e à campanha lançada neste ano, cujo slogan é: “A nossa sala de aula é o mundo”. “Estamos vivenciando isso diariamente com uma atuação universitária total e completa. Essa é a certeza da educação transformadora. Reitoria, professores, funcionários, alunos, egressos e sociedade civil estão unidos, pensando em um mesmo propósito: uma vida digna para as vidas que estamos acolhendo. Alunas de projetos extensionistas de capacitação de cozinha comunitária estão sendo voluntárias e cozinhando conosco nos laboratórios, por exemplo”, complementa.

Um dos voluntários foi o padre Alfonso Antoni, do município de Arroio do Meio, que também foi atingido pelas chuvas. Quando a enchente iniciou no estado, ele ficou ilhado em São Leopoldo após retornar de um encontro do Regional Sul 3 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, realizado em Santa Maria. “É uma sensação muito ruim de impotência e de angústia ter que ficar longe de casa e sem poder ajudar o pessoal que estava necessitando dos primeiros socorros e passando muita necessidade”, descreve. Na cidade, o religioso recebeu o convite para ajudar a trabalhar na cozinha da Gastronomia da universidade. “Tive contato com as professoras da Unisinos no ano passado, por ocasião das enchentes no Vale do Taquari no mês de setembro, quando tínhamos uma cozinha solidária em Arroio do Meio. Recebemos uma ajuda e um apoio muito grande da Unisinos. Durante os últimos dias que passei em São Leopoldo, consegui colaborar com o trabalho na cozinha, produzindo muitos alimentos, com muito amor e carinho, para as pessoas que estão abrigadas no ginásio e voluntários”, recorda.

As cozinhas solidárias foram organizadas no ano passado para atender os atingidos pelas enchentes na região do Vale do Taquari. “Em Arroio do Meio, montamos uma cozinha solidária no Seminário – hoje, um centro de formação e acolhimento de pessoas –, a partir do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e do Movimento dos Atingidos por Barragens, com o apoio de diversas entidades. Produzimos aproximadamente 25 mil marmitas, mais ou menos, 1400 marmitas diárias. É a solidariedade dos movimentos sociais, de voluntários, que vão somando esforços para ajudar as pessoas a, num primeiro momento após a tragédia, ter comida e alimento feito com muito amor e carinho, como está acontecendo agora na cozinha solidária da Unisinos, que ajuda tantas pessoas que necessitam ter alimento”, explica.

Dentre os envolvidos diretamente na acolhida aos desabrigados estão as comunidades jesuítas de São Leopoldo, que desde o começo das enchentes se mobilizaram para prestar um auxílio às vítimas da tragédia climática. Segundo o jesuíta Gabriel Vilardi, membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, "é doloroso ouvir relatos de pessoas que perderam os esforços de toda uma vida de trabalho duro". Na escuta dos acolhidos, em meio aos sofrimentos e incertezas do futuro, a esperança e a resistência despontam. "Além da solidariedade das pessoas de perto e de longe, o que me marca é a capacidade de resiliência dos atingidos. Um senhor idoso se aproximou numa manhã fria e desabafou que mesmo tenho perdido todos os bens, quando saísse do abrigo iria recomeçar mais uma vez", acrescenta o religioso.

Depois dos primeiros cuidados e salvamentos, na reconstrução do estado é fundamental que o poder público adote medidas efetivas de mitigação das mudanças climáticas e se antecipe aos impactos que virão. "Após sucessivas inundações não é mais crível ouvir das autoridades desculpas estapafúrdias se eximindo de suas responsabilidades. Existe sim um forte aspecto político nessa crise toda. Vivemos uma verdadeira emergência climática e os governantes já passaram da hora de agir", desabafa.

Situação do RS

Segundo boletim divulgado pela Defesa Civil no fim desta sexta-feira, 17-05-2024, 461 dos 497 municípios gaúchos foram afetados pelas chuvas e enchentes, totalizando 2.304.422 milhões de pessoas atingidas, mais de 540.188 mil desalojados, 78.165 mil pessoas em abrigos, 806 feridos, 94 desaparecidos e 154 óbitos confirmados. Em São Leopoldo, 12 mil pessoas estão em abrigos.

Os recursos financeiros para reconstrução do Rio Grande do Sul após as enchentes será vinte vezes maior que os gastos estimados para a prevenção, segundo projeção do ClimaInfo. “Governos e parlamentares falham enormemente em tratar as mudanças climáticas com a seriedade e a urgência que estas necessitam. Não priorizam a elaboração de planos de adaptação e mitigação, nem investem recursos em ações para evitar o pior para a população. Quando o pior acontece, como agora, na tragédia climática no Rio Grande do Sul, vê-se a enorme diferença entre o prevenir e o remediar. No meio disso há perdas humanas e materiais que poderiam ter sido evitadas”, menciona a nota do ClimaInfo, reproduzida na página do IHU.

A reconstrução do Rio Grande do Sul depende de “encarar a crise climática como uma realidade”, adverte o ecólogo Marcelo Dutra da Silva, da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Na avaliação dele, “cidades inteiras vão ter que mudar de lugar. É preciso afastar as infraestruturas urbanas desses ambientes de maior risco, que são as áreas mais baixas, planas e úmidas, as áreas de encostas, as margens de rios e as cidades que estão dentro de vales”.

A intensificação das desigualdades sociais é um dos efeitos das mudanças climáticas, segundo Reinaldo Dias, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e pesquisador associado do Centro de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (CPDI) Ibrachina/Ibrawork, do Parque Tecnológico da Unicamp. “O vínculo entre os impactos climáticos e o status socioeconômico revela disparidades gritantes. A pobreza ou a falta de recursos pode limitar significativamente as capacidades adaptativas das comunidades, tornando-as desproporcionalmente suscetíveis a choques climáticos”, afirma em artigo publicado na página do IHU semana passada.

Ações governamentais

Nesta quarta-feira, 15-05-2024, em reunião com prefeitos e o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, o presidente Lula anunciou “um pacote de medidas sociais que incluem a antecipação do pagamento do Programa Bolsa Família (PBF) para 620 mil famílias de todos os 497 municípios do estado na próxima sexta-feira, 17, em um repasse de R$ 417 milhões”, segundo informa o ExtraClasse. Na ocasião, o presidente declarou que voltou ao estado pela terceira vez desde o início dos alagamentos “para anunciar o Auxílio Reconstrução, que pode ser uma das maiores ações para responder a um desastre climático no Brasil. O recurso será destinado diretamente para cada família. Não mediremos esforços para ajudar as pessoas a reconstruírem suas vidas”, disse.

No Auditório Padre Werner da Unisinos, o presidente Lula assinou duas Medidas Provisórias: “a que cria o Ministério Extraordinário de apoio à reconstrução do RS, que será comandado pelo atual ministro da Secretaria de Comunicação Social, Paulo Pimenta; e a MP do Vale Reconstrução, que destina R$ 5.100 a famílias desabrigadas, de baixa renda ou que perderam suas casas no estado”. O presidente também visitou o abrigo organizado no ginásio da universidade e conversou com as pessoas atingidas pelas enchentes.

O ministro da Casa Civil, Rui Costa, disse ainda que “as pessoas que perderam geladeira, televisão, fogão, colchão, móveis, terão de forma rápida e facilitada a transferência para as suas contas do valor de R$ 5.100. As pessoas que perderam documentos vão precisar apenas do número de CPF para solicitar via aplicativo, com uma autodeclaração. Quem não puder comprovar o endereço será checado, usando os cadastros do Governo Federal para conferir e automaticamente fazer o pagamento”.

Doações

A Unisinos está recebendo doações para assistir às famílias no Paradão (acesso 2), localizado na Av. Unisinos, n. 950, Cristo Rei, das 8h30 às 22h. A lista diária das demandas de doações é divulgada no perfil oficial @unisinos. Doações financeiras para a Campanha Solidariedade Unisinos podem ser feitas pelo pix Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

 

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