A vida pelo direito a um lar

  • Quarta, 27 de Março de 2019

Em São Leopoldo, Região Metropolitana de Porto Alegre, mais de três mil famílias enfrentam a luta diária por habitação digna

Diante da pergunta “sua casa é precária, regular, boa ou muito boa?”, o que você responderia? A maior parte das respostas das mais de dez mil famílias que vivem em áreas de ocupação em São Leopoldo é a última. A realidade, no entanto, mostra-se um pouco mais complexa. Isso porque pessoas que vivem em habitações de apenas uma peça, construídas com materiais velhos e sucatas classificam a própria casa como “muito boa”. Some-se a isso o acesso absolutamente precário à água potável e saneamento básico, bem como instalações elétricas de baixíssima segurança que, não raro, ocasionam acidentes fatais. No entanto, esses locais de habitação são mais do que casas, são lares onde os moradores alimentam sonhos e esperanças de que o poder público lhes conceda o direito constitucional à moradia. As casas, por mais simples que pareçam, transformam-se em lar e isso, entre outras razões, explica por que a maior parte dos moradores responde à questão do início com o “muito boa”.

Durante mais de oito horas uma equipe multidisciplinar da missão Em defesa da moradia digna nas ocupações de São Leopoldo, composta por profissionais das mais diversas áreas, do Direito à Educação, da Administração ao Serviço Social, visitaram quatro ocupações na quinta-feira, 14/3. Ao contrário do imaginário comum, em que tais moradores são vistos como invasores, o maior desejo das famílias é fazer a regularização fundiária e o pagamento de seus lotes, mas empecilhos jurídicos e a especulação imobiliária transformam a tarefa, que é antes de tudo um direito constitucional, em um verdadeiro suplício.

Esta missão assume um modelo metodológico internacional, em que a primeira parte integra a visita às comunidades e a segunda conta com visitas ao poder público em busca de um posicionamento em defesa dos direitos constitucionais estabelecidos com relação aos casos relatados. A seguir apresentamos, de maneira muito breve, a situação das quatro ocupações visitadas em São Leopoldo. Os dados apresentados têm como fonte os movimentos de ocupação, que consolidam as informações para prestar contas ao poder público.

Ocupação Steigleder

  • Urbanização: nenhuma
  • Água: os moradores buscam água em uma igreja no bairro vizinho
  • Saneamento básico: nenhum Iluminação: inexistente 
  • Famílias: 211
  • Trabalho: maior parte catadores de material reciclável
  • Renda Média: R$ 300

Altair José Silva, 45 anos, trabalha como catador de material reciclável. Pai de quatro meninas, mora na ocupação há cinco anos e pesquisou na Internet alguma forma em que pudesse ajudar a própria comunidade a melhorar suas condições de vida e descobriu a Constituição, mas, como ele mesmo diz, não conseguiu ir muito adiante na compreensão porque estudou até a quarta série. “Em 2017 queimamos pneus na estrada para chamar atenção para nossa situação e no mesmo ano fizemos uma passeata pacífica na Rua Grande (Av. Independência, no centro de São Leopoldo), apesar das pessoas nos insultarem, para que todos pudessem conhecer nossa situação”, conta Altair.

Reunidos na ponta da rua “Santa Fé”, nome dado por um morador local, o secretário de Habitação de São Leopoldo, Nelson Spolaor, somou-se aos integrantes da Missão com os moradores locais e falou sobre a situação em relação à prefeitura. “A região estava incluída em um projeto do Minha casa, minha vida, mas como houve congelamento de gastos e a mudança das estruturas federais, os ministérios, o repasse de recursos para estas obras está em suspenso”, justificou o secretário. Na prática, o governo federal que suspendeu o nível 1 do programa Minha Casa, Minha Vida, tema que voltou ao debate durante audiência pública realizada na noite de sexta-feira.

Além da absoluta falta de urbanização na área, serviços básicos de educação e saúde devem ser procurados no bairro vizinho, mas a escola, por exemplo, fica a pelo menos dois quilômetros de distância e os atendimentos no posto de saúde se tornam um pouco mais difíceis pela ausência de comprovante de renda. Entretanto, a cada 15 dias uma unidade móvel de saúde vai ao bairro para o atendimento de 13 fichas para clínico geral, o que é absolutamente insuficiente para a realidade local.

Ocupação Vitória

  • Urbanização: nenhuma
  • Água: rede irregular, com distribuição feita por mangueiras que se ligam entre as casas
  • Saneamento básico: nenhum Iluminação: inexistente
  • Famílias: 245
  • Trabalho: variados, maior parte dos moradores trabalham fora de casa
  • Renda Média: R$ 900

A Ocupação Vitória fica em uma região com mais acesso à água e saneamento básico. Diferentemente da Ocupação Steigleder, as pessoas estão mais integradas à Vila Brás, bairro que circunda a ocupação. Esta certa “centralidade” favorece o acesso a serviços básicos de abastecimento de água potável e iluminação, ainda que de forma não oficial. Cissiane da Rosa, 31 anos, é uma das moradoras mais articuladas na organização da ocupação. Como a maior parte dos moradores está no trabalho durante o dia, Cissiane fica responsável por mobilizar as famílias e fazer a gestão da pequena sede da associação de moradores que acaba reunindo informações e documentações para prestar contas sobre como andam as questões junto ao poder público. “No último ano nos reunimos e, com muito esforço, pagamos o IPTU da área. Temos o comprovante do pagamento, foram mais de R$ 12 mil. Aqui, ninguém quer nada de graça, queremos o direito à moradia digna, por isso queremos pagar um valor que seja justo”, assevera Cissiane. A região, que compõe três ruas, abriga 245 famílias. A exemplo da Ocupação Steigleder, há projetos aprovados junto ao governo Federal, do Minha casa, minha vida, mas sem aporte de recursos e sem previsão.

Ocupação Cerâmica Anita

  • Urbanização: nenhuma
  • Água: rede irregular, com distribuição feita por mangueiras que ligam todas as casas
  • Saneamento básico: nenhum Iluminação: inexistente
  • Famílias: 68 Trabalho: variados, parte dos moradores trabalham fora de casa e parte são catadores de material reciclável
  • Renda Média: R$ 900

No outro lado da cidade fica a Ocupação Cerâmica Anita. Das quatro ocupações visitadas esta é a única que teve um apoio mais concreto do poder público, mas ainda por ser realizado. Iniciada em 2014, a ocupação que foi feita em uma “área verde” do município, que corresponde a uma área pública, teve uma coesão maior dos moradores, o que acabou ajudando no processo de pressão ao poder público. “A única condição que estabelecemos às pessoas que queriam lotes na ocupação era que participassem das reuniões”, explica Cleusa Langemann, 33 anos, uma das líderes do movimento de ocupação.

Spolaor, que também visitou a ocupação, disse que já há aporte financeiro da prefeitura para a organização das ruas, dos lotes, do meio-fio e obras mínimas de infraestrutura, como de instalação da rede de esgoto e de água potável. “Cada um gastará o que pode para fazer sua casa. Ainda faremos um mutirão para reutilizar material de casas de madeiras cujos moradores construirão novas casas de alvenaria”, explica Cleusa. Após o início das obras por parte da prefeitura, que ainda não iniciaram, a previsão é quem em 90 dias tudo esteja concluído.

Ocupação Justo

  • Urbanização: nenhuma
  • Água: rede irregular e regiões sem abastecimento nenhum
  • Saneamento básico: nenhum Iluminação: inexistente
  • Famílias: 2.500
  • Trabalho: maior parte dos moradores trabalham fora de casa e parte são catadores de material reciclável
  • Renda Média: variado

Existente há 20 anos, a Ocupação Justo reúne o número mais expressivo de famílias de todas as ocupações da cidade, mais de dez vezes maior que a média das outras ocupações, somando mais de 2.500 residências. Em um encontro que se realizou no início da noite, mais de uma centena de moradores foram à Tenda do Encontro, onde foram discutidos os rumos da ocupação. Fábio Simplício, 35 anos, morador da ocupação há cinco anos, abriu a noite de diálogos convocando os moradores a participarem dos debates e se cadastrarem para terem mais força política junto ao poder público. “Nós só temos um objetivo, defender nossa casa. Aqui não é do jeito que a gente sonha, mas podemos transformar esse lugar no jeito que a gente quer”, provoca Simplício. “Se 99% dos moradores se cadastrarem, a gente consegue pressionar o juiz”, complementou.

Jucimara Flores, 40 anos, também moradora da Justo há cinco anos, trabalha no brechó da Tenda do Encontro, cuja renda é revertida para as crianças do bairro, e faz o cadastro dos moradores. “Uma das nossas maiores dificuldades é convencer pessoas da comunidade que a nossa luta pela moradia ainda não está ganha. Precisamos cadastrar a maior parte dos moradores para convencer o judiciário que estamos dispostos a pagar por nossa moradia, que somos organizados e que estamos mobilizados”, revela. Embora a mobilização de todas as famílias da ocupação ainda seja um desafio, as que estão no movimento demonstram uma coesão bastante forte. A prova disso é que, em uma audiência de conciliação, o judiciário propôs uma indenização a 12 famílias que entraram com processo de usucapião da área, que a propósito está com impostos em atraso, mas se negaram a aceitar o acordo porque não era extensivo às outras mais de 2 mil famílias. A indenização, contudo, referia-se tão somente às edificações, não à área de terra, que é a principal luta do movimento.

Cristiano Muller, advogado do Centro de Direitos Econômicos e Sociais - CDES que participou de toda a missão, lembrou que o maior número de denúncias ao Conselho Estadual de Direitos Humanos foi de violações a direitos fundamentais em áreas de ocupação no Estado. “O Conselho serve para ouvir as demandas das pessoas que vivem nas ocupações. Nós queremos mostrar para o judiciário, que no dia a dia não opera diretamente com estas questões, que há um outro direito possível, com uma série de resoluções que protegem as pessoas em situação de ocupação”, afirma Muller.

Seu xará, Cristiano Schumacher, da Diretoria Estadual do Movimento Nacional de Luta pela Moradia - MNLM, faz um trabalho intenso nas ocupações de todo o Rio Grande do Sul. Presente durante todas as visitas do dia, fez questão de falar ao microfone. “Todos aqui têm uma missão: conseguir o cadastro de mais duas famílias. Não precisa se associar à cooperativa se não quiser, mas precisa fazer o cadastro para que possamos ter força diante do judiciário. Essa é a nossa força”, pondera Schumacher, que desde a década de 1990 milita em favor de moradias dignas para as populações em situação de vulnerabilidade social.

Ao fim do encontro os moradores tomaram suas cadeiras e voltaram para suas casas. A luta, no entanto, renasce a cada nascer do sol. Se as noções de casa “muito boa” variam, as de lar tendem a ser menos plásticas. Dizem respeito ao lugar onde se encontra a possibilidade de ter paz, mesmo que a sombra do medo de ser despejado aterrorize, mesmo diante do receio de ter sobre as paredes da casa uma concha de escavadeira, que desce com força destrutiva do peso de uma assinatura em folha de papel. A luta pela moradia não é uma briga pela propriedade privada em seu sentido vulgar, capitalista, comercial. Não se resume ao verbo ter, trata-se de uma batalha por algo que também pode ser resumido em três letras, mas em um sentido existencial profundo, trata-se da luta por aquilo que chamamos, simplesmente, de “lar”.

Audiência pública

A ‘Missão’ se realizou no dia 15 de março de 2019, depois de dois dias de visitas às ocupações e às autoridades públicas, com uma Audiência Pública realizada no Auditório Central da Unisinos. O auditório, que comporta 320 pessoas, estava totalmente lotado com a presença maciça de mulheres, homens, jovens e muitas crianças, das quatro ocupações visitadas no dia anterior.

Hoje, segunda-feira, 18 de março, a “Missão” continua com uma audiência com o Ministério Público. No próximo dia 26, a audiência será com o Reitor da Unisinos.

 

Por Ricardo Machado

 

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