07 Mai 2024
"A pretensão de Jesus de repreender aqueles que vieram à casa para prestar, de acordo com os costumes, o lamento fúnebre tem algo provocativo: porque não tiveram confiança na sua vinda e no fato de que, diante do poder de Deus, a morte nada mais é do que um sono passageiro? Suas palavras proferidas com autoridade acompanham o gesto que 'desperta' a menina do sono da morte: 'E tomando a mão da menina, disse-lhe: ‘Talità kum’, que significa: ‘Menina, a ti te digo: levanta-te!’", escreve Marinella Perroni, biblista, fundadora da Coordenação de Teólogas Italianas, em artigo publicado por Donne Chiesa Mondo, maio de 2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nos Evangelhos fala-se pouco de meninos e menos ainda de meninas. Jesus os aponta como a justa "medida" para entrar no Reino (Mateus 18,3), ele os usa como metáfora para o acolhimento ou a recusa da visita de Deus por parte do seu povo (11,16-17), e a tradição, sobretudo aquela iconográfica, insiste no desejo do Mestre de tê-los perto dele (Lc 18,16).
Podemos muito bem assumir que, em todos esses casos, nunca teve a intenção de excluir as meninas. Histórias de meninos ou meninas, no entanto, nos Evangelhos não existem.
A única narração que tem uma menina como protagonista nos é transmitida pelo evangelista Marcos.
Trata-se do relato da ressurreição (5,21-24,35-43). Quem estava familiarizado com o Antigo Testamento sabia bem que mesmo grandes profetas como Elias e Eliseu haviam realizado milagres de ressurreição, como aliás outros taumaturgos de que temos notícia da literatura extrabíblica.
Sempre, aliás, nas casas. Pelo tom geral, porém, fica claro que o evangelista se preocupa em ressaltar que Jesus é muito mais do que um profeta e um taumaturgo: como no caso de Lázaro (João 11,17-46) também naquele da filha de Jairo, um dos chefes da sinagoga, o relato quer remeter à ressurreição dos mortos do fim dos tempos, aquela definitiva, aquela que não depende da ação de nenhum taumaturgo, mas apenas da ação de Deus.
Além disso, confere tensão dramática à cena o fato de o relato da ressurreição da menina se entrelaçar com aquele da cura da mulher que sofria de perdas de sangue há doze anos, talvez porque em ambos os casos se trata de mulheres, e todos os quatro evangelhos são atravessados por numerosos episódios de protagonismo feminino. Do ponto de vista narrativo, no entanto, o encontro com a mulher comporta que Jesus demora a responder ao insistente pedido de Jairo que o implora para ir imediatamente à sua casa para impor as mãos sobre a pequena moribunda. Uma grande multidão atrapalha os movimentos de Jesus, o desenvolvimento da cena fica mais lento e assim aumenta o pathos de uma narrativa agora dominada pelo ceticismo: o Mestre vai à casa de Jairo quando não há mais nada a fazer porque a esta altura a menina já está morta.
A pretensão de Jesus de repreender aqueles que vieram à casa para prestar, de acordo com os costumes, o lamento fúnebre tem algo provocativo: porque não tiveram confiança na sua vinda e no fato de que, diante do poder de Deus, a morte nada mais é do que um sono passageiro? Suas palavras proferidas com autoridade acompanham o gesto que “desperta” a menina do sono da morte: “E tomando a mão da menina, disse-lhe: ‘Talità kum’, que significa: ‘Menina, a ti te digo: levanta-te!’”. A passagem é selada pela recomendação de dar à menina o que comer, que confirma que não se trata de uma alucinação, mas que a menina foi devolvida plenamente à vida. A sobriedade dos evangelhos não nos permite dizer mais nada, aliás o relato termina com a ordem de Jesus de não contar nada a ninguém sobre o que aconteceu, e isso exclui qualquer final feliz.
Mesmo assim, o evangelista faz questão de ressaltar a idade daquela menina, doze anos, e esse detalhe dá o que pensar. Não só porque a morte de uma menina impressiona mais do que a de um idoso ou porque há uma forte emoção diante da dor de pais que perderam uma filha. O gesto de Jesus que traz de volta à vida a menina tem um alcance mais amplo do que aquele, já importante, da compensação dos afetos. Certamente não podemos saber o que aquela menina representava para a sua família, quais eram as expectativas sociais para ela, filha de um homem tão importante quanto o chefe de uma sinagoga. Não podemos saber, e isso é bom porque não se trata de fantasias de fofoca.
Deve fazer-nos refletir, no entanto, que restituir a vida de um menino ou de uma menina, salvá-lo de uma doença ou da fome, não significa apenas devolvê-los aos afetos familiares. Porque as crianças não são apenas das suas famílias. Pensar nelas apenas no pequeno círculo de seus afetos significa não saber olhá-las em perspectiva e tirar sua profundidade vital. As crianças pertencem ao mundo ao seu redor e que decidirão ter ao seu redor, e devolvê-las à vida significa entregá-las ao futuro.
Não sabemos quais eram as expectativas para o futuro da filha de Jairo. O esclarecimento sobre a sua idade de doze anos sugere que, agora mulher, para a família já estivesse pronta para o casamento, com tudo o que isso comportava para a sociedade israelita, a saída da casa paterna e as muitas gravidezes. Não há necessidade, contudo, de se demorar em hipóteses fantásticas. Basta apenas lembrar que uma menina é muito mais que objeto de afetos de quem a trouxe ao mundo e respeitar a sua vida como germe de futuro. Onde e como, será a sua história que o contará.
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E Jesus lhe disse: “Menina, levanta-te!”. Artigo de Marinella Perroni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU