23 Abril 2024
“Com a atual escala de produção e consumo, o mundo não dispõe de materiais para ser sustentável, motivo pelo qual teríamos que optar por um modelo produtivo que possa ser factível. O decrescimento ou a neutralidade do crescimento refere-se a modelos econômicos que procuram reduzir ou estabilizar o consumo de recursos naturais e energia, mantendo ou melhorando os níveis de bem-estar humano. Mas existem outros modelos, como o ecofascismo, que faz alusão a supostos regimes autoritários que tornam possível que cada vez menos pessoas, aquelas com poder econômico e/ou militar, continuem a manter o seu estilo de vida acumulando recursos à custa de muito mais pessoas não poderem ter acesso aos materiais mínimos para uma existência digna”. A reflexão é de Alejandro Marcó del Pont, em artigo publicado por El Tábano Economista, 21-04-2024. A tradução é do Cepat.
Somos primatas com instituições medievais e tecnologias divinas (Edward Wilson).
As quantidades esclarecem a narrativa idealista. Segundo o físico e matemático espanhol Antonio Turiel, o mundo produz 108 mil toneladas de lítio por ano. Se utilizássemos toda a produção exclusivamente para a produção de baterias para carros elétricos, excluindo a produção de óleos lubrificantes, celulares, laptops, tablets e outros dispositivos eletrônicos portáteis, além de vidros cerâmicos, poderíamos produzir 8 milhões de carros elétricos por ano. Atualmente existem mais de 1,4 bilhão de carros no mundo. Para substituí-los por carros elétricos, precisaríamos de 180 anos (1.446.000.000÷8.000.000 =180,75), o que é claramente irracional, sem pensar que logo depois do início o lítio acabaria.
É aqui que começa a coisa interessante: no atual esforço para realizar uma transição energética, existem alguns pontos obscuros que, pela sua grande relevância, seria conveniente esclarecer, especialmente o que está relacionado com os modelos de crescimento econômico capitalista de eterna expansão. Ou seja, como veremos, existe um problema com a escassez de materiais críticos para a transição renovável, um problema conhecido já há algum tempo, mas sutilmente ocultado. Há também a questão da engenharia social que deve ser colocada em prática para aproveitar a melhor forma de consumir o que é produzido. Trata-se da já exposta escassez de recursos e da sua disponibilidade para produzir os meios de produção da transição, bem como da utilização da energia de forma sensata e justa.
O capitalismo tem um grande número de defeitos, mas a taxa de lucro, os lucros e o modelo de crescimento indiscriminado são talvez o maior impedimento para a transição energética. Não é que esta não possa ser realizada a longo prazo; o problema é que não é possível fazer isso nesta escala de produção devido à escassez física de materiais. Talvez com uma escala menor e mais equitativa, com necessidades mais racionais e com menos disparidades, isso pudesse ser possível. No entanto, esta ideia enfrenta vários obstáculos, como o tipo de crescimento, a localização e propriedade dos materiais, a sua escassez, o gasto cada vez menor de combustíveis fósseis para a extração de materiais necessários à transição, a recusa em sacrificar benefícios, entre outros. Esses desafios fazem com que essa ideia seja de difícil concretização.
Para que se entenda, o atual modelo de expansão do crescimento, apesar de estar na metade dos níveis de suas taxas históricas, segue sendo um modelo explosivo e pouco factível. É como encher um balão dentro de uma caixa: ele pode se expandir até onde as paredes da caixa permitirem, mas depois explodirá. Sabemos que se não forem tomadas medidas imediatas no Primeiro Mundo, a deterioração ambiental levará a uma série de acontecimentos desastrosos que estrangularão a nossa civilização e até colocarão em perigo a continuidade da espécie humana. Estas medidas incluem necessariamente a adoção de programas diferentes dos conhecidos.
Os estudos científicos mais otimistas propõem que para aceder a um estado estacionário verdadeiramente sustentável, seria necessária uma diminuição da utilização de recursos naturais e da geração de resíduos de tal magnitude que reduziria o consumo atual dos países do Primeiro Mundo em dimensões pouco concebíveis para a maioria dos seus habitantes, o que implica que a sua aplicação teria um custo político muito elevado. Mas não apenas esta ideia teria que ser modificada, mas também a perspectiva do planejamento, da intervenção e da regulação estatal para poder projetar os destinos dos recursos escassos, que, dada a sua insuficiência, deveriam ser estratégicos. Para se ter uma ideia: o que deveria ser feito é exatamente o oposto do que a Argentina está fazendo.
Há um artigo muito interessante do Instituto CIRCE da Universidade de Zaragoza, “Limites minerais da transição energética” (em espanhol), de Alicia Valero Delgado, onde ela dissipa algumas dúvidas como, por exemplo, do que é feito um painel fotovoltaico? E uma turbina eólica? Que materiais contêm as baterias que permitirão a eletrificação dos veículos? De onde vêm essas matérias-primas? E acima de tudo, o que nos interessa em princípio: existem materiais suficientes na crosta terrestre para abastecer o necessário crescimento das energias renováveis e assim frear as mudanças climáticas?
A energia eólica, fotovoltaica, solar termoelétrica, biomassa ou de carros elétricos não emitem CO2 (ou têm emissões neutras, como é o caso da biomassa). Porém, esquecemos de um aspecto importante: para construí-los são necessários muitos materiais. Consideremos que, por exemplo, para produzir 1 gigawatt (GW) de energia elétrica, o que equivale ao que uma termelétrica a gás natural poderia fornecer, são necessárias 1.000 turbinas eólicas de 1 MW. Isto implica a utilização de cerca de 160 mil toneladas de aço, 2 mil de cobre, 780 de alumínio, 110 de níquel, 85 de neodímio e 7 de disprósio para sua fabricação.
A central térmica, por outro lado, terá necessitado principalmente de 5.500 toneladas de aço, 750 toneladas de cobre e 750 toneladas de alumínio, aproximadamente, ou o que dá no mesmo, em peso, cerca de 25 vezes menos metal do que no caso da usina eólica. Dito isto, a quantidade de materiais não é o aspecto mais preocupante do problema, mas a sua variedade. Enquanto metais convencionais e relativamente abundantes entram em jogo nas usinas termelétricas, as novas tecnologias são altamente vorazes em muitos elementos diferentes, alguns deles raros na natureza ou controlados por alguns países.
O estudo esclarece, entre outras, duas questões importantes: a primeira é que a quantidade de materiais não é o aspecto mais preocupante do problema, mas a sua variedade. A segunda, que a quantidade de recursos disponíveis no planeta e a evolução da extração possam ser estimadas para determinar o ano em que a demanda por minerais supera a oferta. Os resultados obtidos são que com esta escala de produção os materiais não são suficientes. Ao esgotamento das minas e à produção de combustíveis fósseis, há que acrescentar outro fator importante. Se as minas mais ricas se esgotarem e os poços de petróleo forem extintos, como está acontecendo, permanecem os de menor produção, e para estes é necessária mais energia por unidade de material extraído, ou seja, à medida que as minas vão se esgotando, a energia para a sua extração aumenta exponencialmente.
Aqui começa uma série de incógnitas às quais tentaremos responder. Um setor importante acredita que a reciclagem pode ajudar a extrair menos materiais. O problema é que a produção dos bens que contém esses materiais não é pensada para reciclá-los. As baterias dos celulares são um bom exemplo: quando ficam obsoletos vão para o lixo. As baterias de carros elétricos enfrentam a mesma questão. Elas são trocadas com um custo altíssimo quando acabam, mas ninguém sabe o que acontecerá com os 300 ou 500 quilos de bateria que tiram do carro. Hoje teriam que levá-las para casa.
Certamente a outra tentação é dizer que a ciência e a inovação nos permitirão melhorar a eficiência na utilização dos materiais, questões que não podem ser tomadas como garantidas, porque se assim não for iremos fracassar, embora seja uma das “martingaladas” [de martingale – método probabilístico que consiste em apostar repetidamente num mesmo tipo de resultado, até ele ocorrer] mais usadas. A Agência Internacional de Energia (AIE) publicou um relatório sobre estes materiais em 2021 onde mostrava algumas coisas curiosas com data limite de 2040: a extração anual de lítio deve ser multiplicada por 42, a de grafeno por 25, a de cobalto por 21, a do níquel por 19 e a das terras raras por 7. Não é que a AIE diga que isso vai acontecer: o que diz é no caso de acontecer, o que é muito diferente. Mas, será que esse aumento é possível?
Neste momento há escassez, mas no curto prazo haverá racionamento não só de materiais para a transição mas também de energia fóssil necessária para extrair os demais materiais. O petróleo bruto convencional, que serve para fazer mais coisas e já está há 16 anos sem aumentar e começou a cair nos últimos anos. Para compensar a falta de petróleo bruto convencional extraímos outros líquidos mais ou menos semelhantes ao petróleo, os chamados “petróleos não convencionais”. O diesel, a força vital do sistema, que alimenta caminhões, escavadeiras, tratores e, indiretamente, navios, está em apuros. Devido a este declínio, o plástico está se tornando escasso e todos os dias faltam mais coisas: aço laminado, alumínio, cobre, chips.
Como dizer ao estadunidense médio que sua possibilidade de ter um carro próprio acabou? Como é possível reverter em poucos anos o trabalho intensivo realizado ao longo de um século pelos aparelhos de produção e distribuição cultural destinados a fazer do consumo pelo consumo o ideal de vida para camadas muito amplas da população mundial? Infelizmente, não é realista confiar na consciência espontânea de uma população enganada e manipulada pelos meios de comunicação oligopolistas cujos proprietários fazem parte das grandes potências mundiais. Poderes privados, mergulhados num estado quase catatônico, que tentam, da forma mais ilusória e irresponsável, continuar com a política suicida de promoção do crescimento econômico, sem o qual o capitalismo e, com ele, a sua posição social privilegiada, não podem sobreviver.
Portanto, se não controlarmos, planejarmos e regularmos a produção, os materiais e seus usos, teremos problemas. Então, o ideal, por exemplo, para o transporte seria planejá-lo e torná-lo público. Os transportes públicos, como trens, trólebus, metrô, etc., movimentam mais pessoas, são mais fáceis de construir, mais eficientes e duráveis. A única desvantagem é que eles ficam limitados aos trilhos e não podem deixá-lo em casa, isso é engenharia social. O mesmo se aplica a medidas como apagar as vitrines à noite ou reduzir o consumo de energia. Aceitar pagar pela energia a preços astronômicos, com poucos benefícios para gerar produtos caros ou passar frio no inverno ou calor no verão para manter a taxa de lucro dos fornecedores também é engenharia social.
É verdade que a engenharia social procura promover mudanças positivas na sociedade, mas aparentemente ignoram-se os desafios relacionados às empresas ou às organizações que são as grandes poluidoras, para as quais o Estado e a sua regulação são centrais. A racionalização através do planejamento, a regulamentação da exploração de materiais, a estatização de explorações agrícolas, industriais e de serviços, bem como a obrigação de declarar alguns materiais, energias ou alimentos como estratégicos, definirão o futuro. Os países centrais têm este problema agora, mas os do Sul global estão caminhando na direção do problema. A ideia de estatizar a BASF, empresa química alemã que movimenta boa parte dos processos produtivos europeus, dadas as suas perdas e a possibilidade de falência, é um fato.
Chegamos assim à conclusão de que, com esta escala de produção e consumo, o mundo não dispõe de materiais para ser sustentável, motivo pelo qual teríamos que optar por um modelo produtivo que possa ser factível. O decrescimento ou a neutralidade do crescimento refere-se a modelos econômicos que procuram reduzir ou estabilizar o consumo de recursos naturais e energia, mantendo ou melhorando os níveis de bem-estar humano. Mas existem outros modelos, como o ecofascismo, que faz alusão a supostos regimes autoritários que tornam possível que cada vez menos pessoas, aquelas com poder econômico e/ou militar, continuem a manter o seu estilo de vida acumulando recursos à custa de muito mais pessoas não poderem ter acesso aos materiais mínimos para uma existência digna. Parece familiar para os argentinos?
As ameaças são reais. Uma rápida olhada na geopolítica atual mostra-nos centenas de conflitos armados, guerras localizadas, disputas por canais de comercialização, que marcam uma aproximação com confrontos bélicos de maior intensidade. Sempre com o objetivo fundamental de garantir o acesso a matérias-primas e energia e, cada vez mais, de apoderar-se de terras férteis. Tudo isto no quadro de uma profunda crise econômica, sem outra saída dentro do sistema capitalista senão uma destruição de capital sem precedentes na história. E destruir capital não é destruir dinheiro, é destruir fatores de produção, campos, edifícios, máquinas e trabalhadores.
Qual seria o modelo para uma Argentina entreguista, onde nada é estratégico, ou onde o público é um palavrão e a regulação falta de liberdade? A engenharia social conseguiu convencer a sociedade de que alguns podem manter privilégios à custa de outros. Um novo regime político, na ausência de alternativas viáveis, surge para culminar a evolução autoritária de 1976, com um objetivo fundamental: garantir durante o colapso e o pós-colapso a sobrevivência e acumulação das suas elites e a manutenção, na medida do possível, das suas suntuosas condições de existência material às custas da população como um todo.
Num quadro de impunidade legal, estes novos regimes desenvolveriam tecnologias de biopoder, de vigilância de todos os tipos de atividades e movimentos, e de espionagem de comunicações, que, com os devidos processamentos informáticos, permitiriam o controle policial de cada indivíduo. A repressão brutal e exemplar criaria um universo de pessoas aterrorizadas e submissas. O outro suporte do poder do Estado, a legitimação e o consenso, seria construído através do monopólio absoluto dos aparelhos de criação e difusão cultural encarregados da aplicação sistemática de técnicas de manipulação, idealizadas e desenvolvidas no século XX, que podem impor uma realidade paralela na qual a dissidência sequer seja concebível (Ruiz Federico. Ecofascismo).
É verdade que não apenas nos faltam modelos alternativos propostos pela classe política, mas também deixamos o futuro das nossas nações livre para o lucro e a rentabilidade. Em nome da liberdade de mercado perdemos mercados e consolidamos monopólios, num mundo onde a maior produção é a fome e a pobreza. Isto demonstra uma falta de visão a longo prazo e uma priorização dos interesses econômicos em detrimento do bem-estar social.
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A transição energética e os acordes do ecofascismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU