17 Abril 2024
Rubens Carvalho é o diretor adjunto da Earthsight, ONG britânica que recentemente revelou o mecanismo comercial com o qual algumas das grandes marcas de moda – como Zara e H&M – fabricam suas roupas com algodão proveniente do desmatamento ilegal e relacionado a violações de direitos humanos nas florestas do Brasil.
A investigação, que durou mais de um ano e incluiu o exame minucioso de milhares de registros de remessas, relatórios de empresas e listas de fornecedores, bem como um trabalho secreto para se infiltrar nas principais feiras de moda da Europa, rastreou este “algodão contaminado”, extraído por duas poderosas companhias da agroindústria brasileira, que há anos é avaliado como “legal” e “ético” pelo maior sistema de certificação de algodão do mundo, o Better Cotton.
A incapacidade do setor da moda em monitorar e garantir a sustentabilidade e a legalidade em suas cadeias de fornecimento e a falta de regulamentação (políticas públicas) do norte global – a região consumidora – estão provocando danos irreversíveis a um ecossistema que ocupa 22% da área do Brasil.
“Os crimes terríveis na Amazônia contra as pessoas e o planeta para fornecer soja e carne são cada vez mais registrados. No entanto, uma destruição semelhante em outro ponto crítico da biodiversidade na América do Sul, impulsionada por outra matéria-prima, o algodão, continua passando despercebida”, alerta Carvalho.
A entrevista é de Andrés Actis, publicada por La Marea-Climática, 16-04-2024. A tradução é do Cepat.
O que levou à investigação?
Advertimos que há muitas investigações sobre os impactos da produção de soja e carne no desmatamento do Brasil, mas pouco ou nada se fala sobre os impactos do algodão. Precisamos nos concentrar nesta problemática. A investigação durou um ano. Fizemos um trabalho de registro, rastreamento de dados e também um trabalho secreto para entender, em primeira mão, as conexões comerciais de toda a cadeia do algodão, como é comprado, como é vendido. Entramos como supostos investidores estrangeiros em duas feiras de moda, em Paris e Frankfurt, e em uma feira do agronegócio na Bahia, Brasil.
E com o que se depararam? O desmatamento ilegal está naturalizado em toda a cadeia?
Se as empresas sabem, claramente, estão falhando na hora de agir. Também é possível que não saibam. No caso da H&M e da Zara, empresas citadas em nosso relatório, afirmam desconhecer esta grave irregularidade. Se é este o caso, há uma clara falha por não monitorarem as suas cadeias de fornecimento. Todas as grandes empresas de moda da Europa deveriam rastrear de onde vem e como se produz o algodão. Não podem confiar em sistemas de certificação como o Better Cotton. A responsabilidade é intransferível.
Então, a suposta ignorância não é desculpa.
A resposta da Inditex é um exemplo. É insuficiente, não importa de onde se olha. Esta multinacional precisa mudar as práticas. As palavras não servem. Precisamos de ações concretas para que o algodão que compra seja sustentável e legal. Isso deveria ter sido feito há anos. Há muita informação pública disponível sobre os problemas do cultivo do algodão no Cerrado. O Brasil é o segundo maior exportador de algodão do mundo. As empresas deveriam ter feito esse cruzamento de dados há muito tempo.
A outra grande falha está no nível da regulamentação e das políticas de controle. Preocupa o avanço de uma onda reacionária na Europa, que pode derrubar as poucas leis que estão sobre a mesa?
Precisamos urgentemente de uma regulamentação efetivada pelos governos dos países consumidores. O setor privado fracassou em tornar as suas cadeias de fornecimento mais sustentáveis. Precisamos que os governos obriguem as empresas a isto. O avanço desta onda reacionária, com eleições à vista, é um risco evidente. Embora estejamos há anos debatendo possíveis regulamentações, agora, vemos uma reação muito negativa de vários membros da União Europeia. Há uma tentativa de enfraquecer essas leis. O problema é que não temos tempo.
O sistema da moda rápida se apoia em uma crescente demanda por matérias-primas. A ilegalidade na extração do algodão não é, ao fim e ao cabo, um problema do setor?
Claramente, as empresas têm modelos de negócios baseados no fast fashion que requer cada vez mais matérias-primas. Parte do negócio consiste em incentivar os consumidores a comprar cada vez mais, o que significa mais algodão, mais terras, mais desmatamento, mais perda em massa de florestas e de biodiversidade. Não se tolera mais o lema business as usual.
Contudo, insisto: o grande problema é a ausência de leis na Europa, no Reino Unido, nos Estados Unidos. Estas leis acabaram de ser colocadas sobre a mesa. No entanto, durante décadas, simplesmente confiamos no setor privado. O consumo é muito alto e não está regulamentado. Isto também explica os preços não refletirem os impactos ambientais e humanos da produção. Pagamos preços muito baixos que escondem esses custos. A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos.
Qual o papel dos consumidores nesta problemática?
É difícil para os consumidores saber de onde vêm os produtos que compram. Não há informação, não há transparência. Os consumidores têm um papel importante, mas a responsabilidade central cabe às empresas e ao poder político.
Falamos da responsabilidade dos governos dos países produtores. O que o Brasil está fazendo para deter esse desmatamento ilegal?
O governo do Brasil tem tido sucesso na redução do desmatamento na Amazônia. Precisamos da mesma seriedade e da mesma firmeza em relação ao Cerrado. Existe um plano, mas está incompleto. O problema é o desmatamento ilegal. Os governos estaduais continuam autorizando níveis insustentáveis de desmatamento. Isto tem de mudar. É necessário que o Governo Federal trabalhe com estes governos estaduais para mudar as suas políticas de autorização de desmatamento e expansão do agronegócio.
O dano ambiental desta ilegalidade já é irreversível. Como explicar que conheçamos tão pouco sobre este tema?
Parte disso se explica por essa falsa imagem de sustentabilidade que as empresas transmitem. O exemplo é a certificação do sistema Better Cotton, vendida como a grande garantia de sustentabilidade. E não é a realidade. O greenwashing faz parte deste problema. Para os consumidores, esta lavagem verde torna a tarefa crítica muito difícil. Sem regulamentação, sem leis, este sistema seguirá da mesma forma, sem mudanças.
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“A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU