06 Abril 2024
"Apesar do uso de linguagem que a princípio parece ser 'cristã', a religião que Trump está promovendo e que muitos de seus seguidores estão adotando é meramente um simulacro do cristianismo autêntico", escreve Daniel Horan, franciscano estadunidense, diretor do Centro de Espiritualidade e professor de Filosofia, Estudos Religiosos e Teologia da Saint Mary’s College, nos Estados Unidos, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 04-04-2024.
Muita atenção tem sido dada à interseção entre a campanha presidencial de Donald J. Trump em 2024 e o cristianismo nos Estados Unidos, especialmente certas correntes do cristianismo evangélico. Ironicamente, o casamento profano entre as forças políticas de Trump e uma cepa já idiossincrática do cristianismo está resultando no que eu caracterizaria como uma religião profundamente secular. Ele pouco tem a ver ou pouco se assemelha com o cristianismo autêntico, além do uso da mesma designação, recurso às Escrituras Sagradas (embora muitas vezes de forma egoísta e eisegetica) e invocações litúrgicas e devocionais assustadoramente familiares.
De acordo com vários relatórios investigativos, a campanha de Trump tem trabalhado com organizações que pretendem infundir imagens e linguagem cristãs evidentes na plataforma política de Trump, com a esperança de animar sua base cristã em potencial. Em janeiro, um vídeo viral intitulado "Deus fez Trump", direcionado aos participantes da convenção de Iowa, foi publicado por um grupo independente e rapidamente adotado pela campanha de Trump.
Embora muitos ministros cristãos em torno de Iowa tenham objetado às implicações do vídeo — que Deus teria ordenado Trump para ser um "zelador" dos Estados Unidos ou que Trump é de outra forma escolhido divinamente — aqueles cristãos autoidentificados mais favoráveis a Trump e a esse tipo de retórica são na verdade cristãos que não frequentam igrejas. Assim, as preocupações levantadas por ministros cristãos ordenados não estavam alcançando os apoiadores mais apaixonados de Trump.
Uma reportagem recente da revista Politico destacou o papel-chave que um think tank conservador de Washington, DC, está desempenhando no "desenvolvimento de planos para infundir ideias nacionalistas cristãs em seu governo caso o ex-presidente retorne ao poder".
Segundo o texto, Russell Vought, presidente do Center for Renewing America, e sua equipe abraçaram explicitamente o termo "nacionalismo cristão" e o marcaram como uma prioridade para um segundo mandato potencial de Trump.
O artigo explica: "Nacionalistas cristãos nos EUA acreditam que o país foi fundado como uma nação cristã e que os valores cristãos devem ser priorizados em todo o governo e vida pública. À medida que o país se tornou menos religioso e mais diversificado, Vought abraçou a ideia de que os cristãos estão sob ataque e falou de políticas que ele poderia seguir em resposta".
Nas últimas semanas, as tentativas flagrantes de Trump, embora muitas vezes desajeitadas, de atrair cristãos (pelo menos de um certo tipo) para sua campanha assumiram uma virada ainda mais bizarra.
Como foi amplamente divulgado, em 26 de março, apenas alguns dias antes da Páscoa, Trump postou um vídeo nas redes sociais no qual incentivava seus apoiadores a comprar a "Bíblia Deus Abençoe os EUA". Esta edição contém não apenas os livros canônicos das Escrituras na tradução da Versão King James, mas também uma variedade de textos não cristãos como a Constituição americana, a Declaração de Independência, o Juramento de Fidelidade e o coro da música de Lee Greenwood "God Bless the USA".
Em um trecho do vídeo promocional que foi repetidamente zombado, Trump diz: "Todos os americanos precisam de uma Bíblia em casa, e eu tenho muitas. É meu livro favorito".
Mas o que eu achei mais interessante, e menos humorístico, foi outro trecho de seu vídeo: "Religião e cristianismo são as maiores coisas que faltam neste país". Embora muitos de seus apoiadores tenham se convencido de que o cristianismo pode estar ausente ou sob ataque nos EUA, o que Trump tem oferecido a eles em troca não é uma visão do cristianismo autêntico, mas uma religião diferente chamada pelo mesmo nome.
Há alguns anos, mencionei em minha coluna um ensaio do renomado eticista cristão Stanley Hauerwas, que escreveu sobre o que ele chama de "Deus da América". Diante do esforço da campanha de Trump em relançar o cristianismo como algo que acomoda visões nacionalistas, anti-imigração, anti-LGBTQ e outras visões discriminatórias e nocivas, tenho pensado novamente sobre as percepções de Hauerwas.
No artigo, publicado em 2007, Hauerwas escreve: "Ironicamente, a fervorosa efervescência da Direita Religiosa na América em sustentar a fé como uma condição necessária para apoiar a democracia não pode deixar de garantir que a fé sustentada não seja a fé cristã".
Ele observa que os americanos têm estatisticamente mais probabilidade de ir à igreja ou a alguma outra celebração religiosa do que seus homólogos europeus. Mas as mensagens que ouvem na pregação e na formação religiosa pouco desafiam as suposições seculares e políticas que informam e moldam suas perspectivas, ou suas vidas pessoais e comunitárias.
O que Hauerwas chama de "Deus da América" é um termo abreviado para o que eu simplesmente chamaria de um ídolo. Acreditar em tal "deus" não é acreditar no Deus de Jesus Cristo como informado pelos Evangelhos e pela tradição, mas a divinização de uma projeção de ideias que servem as suas próprias posições e plataformas de campanha.
É impressionante que, há 17 anos, Hauerwas tenha sido capaz de dizer: "Não posso evitar a realidade de que o cristianismo americano foi menos do que deveria ter sido apenas na medida em que a igreja deixou de distinguir o deus da América do Deus que adoramos como cristãos".
Quase duas décadas depois, esta declaração é tanto mais verdadeira quanto mais perturbadora. Isso é especialmente porque enquanto o ídolo do deus da América existe há algum tempo, Trump parece estar formando outro tipo de religião que adora esse ídolo, e o número de seus fiéis adeptos não é insignificante.
O New York Times publicou esta semana um artigo substancial do repórter político Michael Bender que descreve exatamente como é a igreja de Trump. Marcas registradas de comícios de Trump têm incluído suas diatribes inflamadas e divagações confusas, muitas vezes com energia e bombástica. Recentemente, ele passou a encerrar seus eventos com algo que se assemelha estranhamente a um culto religioso.
Bender descreve essa mudança recente: "Música suave e reflexiva preenche o local enquanto um silêncio cai sobre a multidão. O tom do Mr. Trump fica reverente e sombrio, fazendo com que alguns apoiadores abaixem a cabeça ou fechem os olhos. Outros levantam as palmas abertas no ar ou murmuram como se em oração". Ele acrescenta: "O ritual meditativo pode parecer incongruente com o epicentro estridente do movimento conservador da nação, mas o credo político do Mr. Trump é um dos exemplos mais marcantes de seu esforço para transformar o Partido Republicano em uma espécie de Igreja de Trump".
Apesar do uso de linguagem que a princípio parece ser "cristã", a religião que Trump está promovendo e que muitos de seus seguidores estão adotando é meramente um simulacro do cristianismo autêntico. Esse pseudocristianismo tem uma semelhança superficial com o real, mas carece das exortações morais, das bases escriturísticas ou do embasamento doutrinário.
Para ser claro, esta é uma religião real da qual estamos falando aqui; simplesmente não é o cristianismo. Ela tem proposições doutrinárias ("A América é uma nação cristã", "Deus fez Trump", "América Primeiro", etc.); ela tem autoridade religiosa suprema (Sua Santidade Donald Trump); ela tem imagens e símbolos religiosos ("MAGA", representações de Trump e Jesus como iguais ou parceiros, e assim por diante); e ela tem liturgias (os comícios de Trump são sua adoração mais solene e as comunidades online são sua comunhão contínua).
Sobre este último ponto sobre a valência litúrgica dos comícios de Trump e da religião, vale a pena ler o livro de 2009 do filósofo James K. A. Smith Desiring the Kingdom: Worship, Worldview, and Cultural Formation [O desejo pelo Reino: adoração, cosmovisão e formação cultural], que estuda a natureza e a realidade das liturgias seculares e parece impressionantemente premonitório dada a ascensão de Trump.
Para Trump, este pseudocristianismo que adora o "deus da América" de sua criação serve como um veículo para atrair e manter seus fiéis adeptos com a esperança de que eles lhe entreguem a reeleição que ele deseja a todo custo. Para seus seguidores, essa religião trumpista lhes proporciona algo semelhante a um espelho no qual podem olhar e ver refletido para eles um "cristianismo" que se alinha confortavelmente com o que quer que desejem. Juntos, essa combinação prenuncia um perigo tanto para a política quanto para a religião, o que deve preocupar qualquer pessoa que leve a sério o cristianismo autêntico.
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O pseudocristianismo de Trump é o resultado lógico do “Deus da América”. Artigo de Daniel Horan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU