Assim também são as Marias e as Madalenas desses tempos turbulentos que ousam resistir contra o absurdo do mal e lutar contra o garimpo e pela dignidade de seus filhos, o futuro do povo Yanomami. São as mães de Gaza que andam quilômetros e enfrentam filas em que podem ser, a qualquer momento, alvos mortais do exército israelense, mas não desistem da vida de suas crianças esfomeadas. Ou ainda as mães e as irmãs que continuam a lutar pela memória desprezada de seus entes sequestrados, torturados e assassinados cruelmente pela ditadura civil-militar, teimando em romper o desonroso silêncio imposto por um governo de esquerda. "Esperando contra toda a esperança" e desafiando todo o status quo, elas mesmas são testemunhas da Ressurreição.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Os cristãos vivem a Páscoa da Ressurreição de Jesus, mais uma vez em meio a um mundo dilacerado por guerras, ódios e sofrimentos. A oração que um dia brotou dos lábios do profeta Pedro Casaldáliga, nunca pareceu tão propícia: “Dá- nos, Senhor, aquela paz inquieta/ que denuncia a paz dos cemitérios/ e a paz dos lucros fartos”. Em tempos em que os cemitérios se multiplicam nas valas comuns dos cadáveres dos Yanomami vítimas do genocídio do garimpo, dos palestinos de Gaza exterminados pela fome e pela vingança descontrolada e pelo silêncio acintoso à memória dos desaparecidos da ditadura civil-militar que completa 60 anos, é possível falar em sinais do Ressuscitado, sem cair na velha e tão comum hipocrisia religiosa?
Mesmo depois de um mês de instalada a Casa de Governo, em Boa Vista, capital de Roraima, muito pouco parece ter avançado. É verdade que a missão de desintrusão dos invasores do território Yanomami é complexa e o prazo transcorrido desde a instalação da nova estrutura parece exíguo para maiores cobranças. Todavia, a decretação de emergência de saúde aconteceu em janeiro do ano de 2023. E, para a frustração de muitos a começar pelos próprios indígenas que agonizam naquela região, ainda restam mais de 7 mil garimpeiros na Terra Indígena, conforme dados do próprio Ministério de Povos Indígenas. Ao governo não cabem mais quaisquer escusas!
“Dá-nos a paz que luta pela paz/ a paz que nos sacode com a urgência do Reino/ a paz que nos invade com o vento do Espírito, a rotina e o medo/ o sossego das praias e a oração de refúgio”, insta o pastor que tão bem encarnou a Teologia da Libertação no seu longo e frutuoso ministério. Essa semana houve coletiva de imprensa, em que os responsáveis pela Operação Catrimani – entre eles os militares, celebraram a entrega de quase 12.000 cestas básicas aos habitantes da Terra Indígena Yanomami. Transcorridos 15 meses desde que o novo governo federal assumiu, a pergunta presa na garganta precisa ser feita: até quando a mediocridade será a medida das ações emergenciais a favor dos Povos Indígenas?
Comemorar as migalhas de uma mera ação assistencialista – embora necessária para índices alarmantes de desnutrição – enquanto as autoridades não conseguem expulsar os milhares de invasores que só levam morte e destruição para os filhos de Omama, não é vergonhoso? As Forças Armadas não servem para mais nada além de falsa teatralidade cosmética e espalhafatosa, visando aplacar a consciência da opinião pública que não está disposta a deixar de comprar suas joias de ouro banhado em sangue? Há, de fato, uma falência do Estado diante da ausência de capacidade operacional das Polícias Federal e Rodoviária Federal, da Força Nacional de Segurança Pública e das Forças Armadas para fazer cumprir a lei ou falta vontade política efetiva para tanto?
A classe política de Roraima, infelizmente, na sua quase totalidade não possui qualquer compromisso com os povos originários. Dos oito deputados federais e três senadores que representam o estado nenhum se interessa concretamente pela realidade de mais de 100 mil indígenas que habitam a Terra de Makunaima. A então deputada Joenia Wapichana era voz solitária no Congresso Nacional e, agora, encontra-se com poucas condições de cumprir com o dever constitucional do órgão indigenista oficial. Sem recursos orçamentários e sem servidores públicos suficientes, a FUNAI vive ainda uma dolorosa e agonizante Sexta-Feira da Paixão.
Resta saber se o presidente Lula está disposto a romper esse ciclo maléfico e asfixiante que vem desde o governo Temer, contrariando os poderosos interesses da bancada ruralista, ou se tudo permanecerá como antes. Não seria diferente daquilo que o povo Yanomami tem enfrentado há décadas, com sucessivas e terríveis ondas garimpeiras que rasgam impiedosamente seu território sagrado. O governo Lula passará para a história como aquele que fingiu querer resolver o problema, à exemplo de Pilatos que ensaiou soltar Jesus, mas não passou de uma atitude de aliança com as forças da morte? O tempo está se esgotando e as perspectivas não parecem boas.
“Paz das armas rotas na derrota das armas/ a paz do pão, da fome de justiça/ a paz da liberdade conquistada/ a paz que se faz nossa sem cercas, nem fronteiras”, continua o poema-oração. Pode existir paz nos corações da humanidade enquanto milhares perecem de fome na confinada Gaza? O governo de extrema-direita de Israel ignorou a resolução que exige um cessar-fogo imediato dessa guerra insana, aprovada no dia 25 de março pelo Conselho de Segurança da ONU. A cidade de Rafah é o último refúgio onde estão mais de um milhão de palestinos, encurralados pela fúria mortífera de Netanyahu e seus sanguinários generais. A comunidade internacional parece assistir anestesiada ao genocídio de um povo massacrado em uma cercada e murada Faixa de Gaza.
Principais vítimas? Mulheres e crianças, hospitais, escolas e universidade, casas e infraestrutura básica de uma população assustada e exausta. Mais do que uma estupidez sem tamanho se trata de uma sequência de crimes contra a humanidade matar todo um povo em razão de uma atitude condenável e inaceitável de um grupo terrorista. Os 2,3 milhões de palestinos de Gaza não são o Hamas e a resposta do governo israelense ultrapassou há muito qualquer reação razoável e legítima como autodefesa. As democracias cristãs assistirão inertes até quando o definhamento cruel de crianças e idosos indefesos à espera do aniquilamento?
“Que tanto é shalom, como salaam, perdão, retorno, abraço./ Dá-nos a tua paz!”, ensinou o primeiro bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia que ousou desafiar os ditadores de plantão. O país tem tido o seu direito à memória negado constantemente durante a sua história em uma tentativa ilusória de composição com as Forças Armadas. Ilusória porque aqueles comandantes militares que condicionam a sua obediência hierárquica ao presidente da República conquanto não se trate desse período tenebroso do país, não passam de oficiais golpistas e precisam ser confrontados com destemor. O período para cautelas e jogos de apoio já se findou há muito.
Um quartel de Juiz de Fora (MG), onde está a 4ª Brigada de Infantaria Leve de Montanha, autodenominada “Brigada 31 de Março”, fez uma ridícula homenagem ao golpe de 64, em que defende o “papel decisivo e corajoso na eclosão da revolução democrática”. Democrática só se for nos delírios de um oficialato caduco que insiste em ameaçar e minar o Estado de Direito. O Comando do Exército escandalosamente não interviu e assim transcorre os 60 anos do golpe, em um silêncio covarde e subserviente ao autoritarismo, tão presente na mentalidade nacional. As Forças Armadas só entenderão que não são donas da República, apesar de seu início ter ocorrido mediante um golpe militar em 1889, quando houver um governante com coragem política o suficiente para lhes submeterem ao império da Constituição.
E então, nesse cenário desolador se pode dizer que a Vida venceu definitivamente as forças da morte? Voltar à simplicidade da Boa Notícia de Jesus é preciso. E o Evangelho de Jo 20, 1-9 diz que Maria Madalena foi a discípula que “foi ao túmulo de Jesus, bem de madrugada, quando ainda estava escuro”. Ou seja, as trevas da desilusão e da injustiça ainda eram palpáveis, mas não prenderam Madalena em um imobilismo derrotista de puro desespero. Ela intuiu que era imprescindível se colocar a caminho e vencer a inércia do medo.
Assim também são as Marias e as Madalenas desses tempos turbulentos que ousam resistir contra o absurdo do mal e lutar contra o garimpo e pela dignidade de seus filhos, o futuro do povo Yanomami. São as mães de Gaza que andam quilômetros e enfrentam filas em que podem ser, a qualquer momento, alvos mortais do exército israelense, mas não desistem da vida de suas crianças esfomeadas. Ou ainda as mães e as irmãs que continuam a lutar pela memória desprezada de seus entes sequestrados, torturados e assassinados cruelmente pela ditadura civil-militar, teimando em romper o desonroso silêncio imposto por um governo de esquerda. "Esperando contra toda a esperança" e desafiando todo o status quo, elas mesmas são testemunhas da Ressurreição.
Afinal como recorda Ivone Gebara essas mulheres, como Teresa de Ávila, aprenderam “a pôr os olhos ‘no verdadeiro caminho’, aquele que pode favorecer a vida para a maioria aqui e agora”. “E o aqui e agora continua amanhã e, também depois de amanhã para mostrar que a vida é isso: um instante depois do outro, um dia depois do outro em meio aos atropelos e as pequenas alegrias que dão sabor e valor às nossas frágeis existências”, conclui a teóloga feminista[1]. Os sinais da Ressurreição se dão nos pequenos gestos do cotidiano.
Um dos padres da melhor tradição da Igreja latino-americana ensinou que se deve pedir o dom da paz inquieta, jamais a paz do cemitério que adormece as escorregadias consciências. Essa paz que, sem jamais negar a Cruz e os inúmeros crucificados, move a cada cristão, sob o impulso da rebelde Divina Ruah, a continuar buscando o amor e a justiça do Reino, mesmo quando ainda é madrugada e faz escuro. Nesse tempo da memória perigosa de Jesus Crucificado-Ressuscitado, como comunidade Madalena, peçamos o dom da paz: “essa paz marginal que soletra em Belém/ e agoniza na Cruz/ e triunfa na Páscoa./ Dá-nos, Senhor, aquela paz inquieta que não nos deixa em paz!”.
[1] GEBARA, Ivone. 50 anos de libertação de quem? In: 50 anos de teologias da libertação: memória, revisão, perspectivas e desafios. São Paulo: Ed. Recriar, 2022, p.51.