21 Março 2024
"Sem entrar em detalhes complexos, é possível observar, em resumo, como essa atitude, que reconhece ao mesmo tempo a dor dos próprios e a dor do outro, está profundamente enraizada – embora nem sempre seja predominante – nos respectivos textos sagrados e representa uma atitude humana e religiosa que pode ser escolhida e acolhida".
O comentário é de Fabrizio Mandreoli, teólogo, filósofo e historiador, em artigo publicado por Settimana News, 19-03-2024.
Entre as análises sobre a guerra entre Israel e Palestina, parece-me útil destacar um aspecto central do ponto de vista ideal e simbólico, que pode parecer menos urgente em comparação com a questão de interromper os assassinatos, injustiças e ódio.
Na prioridade que atualmente tem a salvação da vida de muitos, permitimo-nos mencionar um tema que está em segundo plano do conflito sangrento que viu nos ataques de 7 de outubro e na resposta israelense sua manifestação mais recente. Trata-se do contexto religioso e teológico que, caso a caso, anima ou sustenta, justifica ou apoia as respectivas representações de si e do outro no conflito.
O tema já foi evocado quando se citou – no texto de De Francesco – um hadith escatológico que faz parte do repertório anti-judaico: "A hora não chegará até que vocês lutem contra os judeus, e até mesmo a pedra atrás da qual o judeu se esconde dirá: 'Ó muçulmano, há um judeu atrás de mim, mate-o'".
De maneira especular, as consequências do sionismo declinado em chave religiosa estão diante de todos [1] e convidam a uma releitura das importantes obras de Aviezer Ravitzky, que estudou cuidadosamente a evolução no sentido religioso das ideias sionistas.
A questão não é, certamente, nova, mas parece que estamos agora, em plena pós-modernidade, diante de uma aliança perversa entre sentido religioso, teologias de referência e percepção da terra, etnia e um "nós" superior e exclusivo. Quando, como ouvimos em Hebron, alguém afirma que é o dever religioso – percebido como dado diretamente por Deus – recuperar toda a terra, a presença do outro se torna uma presença demoníaca, a ser eliminada religiosamente.
Certamente, a psicologia social e a criminologia podem ajudar a decifrar esses fenômenos de violência coletiva e pessoal, no entanto, acredito que valha a pena investigar – para poder desativá-lo – aquele fenômeno pelo qual o mistério de Deus – reivindicado por todos os filhos de Abraão, judeus, cristãos e muçulmanos, como o único, o transcendente, o cada vez maior - é singularmente tribalizado e etnicizado ("nosso Deus"), territorializado ("nossa terra santa") e politizado ("Deus está conosco").
Para desarmar essa paradoxal redução teológica, que tem consequências desastrosas internas e políticas, acredito ser possível mencionar a maneira de ler os textos sagrados e as opções fundamentais que estão por trás desses processos de interpretação. Proponho esta análise esquemática, consciente de que muitos – menciono aqui André Wenin, Giuseppe Dossetti, Meir Bar Asher, Jawdat Said, Gian Domenico Cova, Jonathan Sacks – têm trabalhado com grande sabedoria nessa direção.
Primeiro, faz parte da leitura dos textos a consciência de seu próprio ponto de observação e de sua colocação. Ninguém reflete "a partir de nenhum lugar" com tudo o que isso implica em termos de parcialidade, questões não vistas e não visíveis, interesses em jogo, traumas sofridos ou infligidos. Um posicionamento consciente, sempre a ser conquistado novamente, ajuda a cultivar uma postura modesta que, quando bem observada, faz parte do patrimônio místico de toda grande tradição religiosa.
Em segundo lugar, os textos, embora legitimamente acreditados como inspirados por Deus, estão dentro da história humana e, portanto, confiados à responsabilidade dos homens e mulheres. Trata-se da historicidade essencial da fé islâmica, cristã e judaica: nesse sentido, as fontes são como árvores invertidas que têm raízes profundas no mistério de Deus, mas cuja terra, tronco, folhas e frutos habitam dentro de contextos históricos específicos. Nesse contexto, quando a leitura encontra nos textos a violência e o etnocentrismo, a justiça entendida como vingança, a exclusão e a eliminação do outro, ela é levada a questionar qual sentido histórico esses aspectos têm e se são compatíveis com as demandas éticas e religiosas fundamentais de sua própria tradição. Trata-se da pergunta sobre quais e quantas dialéticas internas vivem em seu próprio texto sagrado.
Isso também se aplica – e é uma terceira etapa – às respectivas tradições interpretativas que representam o leito vital das Escrituras sagradas e mediam, selecionando e transmitindo, os significados e as principais chaves de leitura. O fato de as tradições interpretativas – no Islã, no Cristianismo e no Judaísmo – serem tão amplas e pluralizadas – historicamente e geograficamente - é uma poderosa sugestão ao intérprete de que muitos foram os modos de compreender as perspectivas de verdade e que, portanto, esses modos podem ser estruturalmente parciais, limitados ou até mesmo enganosos. As tradições às vezes são muito atentas e receptivas aos textos e suas profundezas, em outros casos, os atacam para encontrar neles e justificar o que já se pensa.
Este trabalho – um quarto ponto – pode se beneficiar de um apoio incrível quando aquele que lê os textos de sua própria tradição está ciente e/ou conhece os textos das outras. É a perspectiva da chamada teologia comparativa: a leitura atenta e imersiva, crítica e simpática, dos textos pertencentes a outros "mundos" religiosos e culturais permite retornar aos próprios com uma bagagem de valiosos insights históricos e humanos, políticos e espirituais.
Esse modo de proceder para as tradições judaica, islâmica e cristã é ainda mais eloquente pelo fato de que os próprios textos – animados por séculos de história interpretativa – estão entrelaçados entre si por uma série de releituras e constantes referências.
Um quinto passo, acreditamos, é decisivo: trata-se do momento da escolha hermenêutica. Nesta fase, o leitor ou a comunidade escolhem humanamente – e para quem crê essa escolha ocorre diante do mistério de Deus – no grande emaranhado, que os textos e suas interpretações constituem, a maneira de responder hoje às perguntas propostas pela história e pela existência concreta: como reconstruir a justiça? Como tratar o inimigo? Que sacralidade tem a vida de cada homem e mulher na terra? Como olhar para e remediar nossas próprias culpas? Como o mistério de Deus nos interpela aqui e agora?
São perguntas que o crente se faz como indivíduo e como comunidade, buscando, de maneira constante, encontrar as respostas que considera vindas de Deus. Esta operação não consiste, ao que parece, em empobrecer a crença ao falar de Deus, em sua alteridade, mas assume de forma séria o fato de que Deus – se existe – escolheu falar aos homens e mulheres como tais.
Chegamos assim a um sexto passo: o eco – ético e espiritual, existencial e político – do falar de Deus é a concretude humana. Neste espaço, acredito que possa desempenhar um papel importante – amplamente testemunhado pelos místicos dos três monoteísmos – a capacidade de uma escuta ampla e boa (a piedade/hesed, a misericórdia/rahmah, a magnanimidade/macrothumia). Ou seja, a possibilidade de perceber nosso próprio trauma, o pessoal e o de nosso povo, juntamente com o reconhecimento árduo do sofrimento e da história do outro, do inimigo.
Em uma obra histórica recente – B. Bashir e A. Goldberg (ed.), Holocausto e Nakba, Zikkaron, Bolonha 2023 – essa ideia é descrita como deslocamento empático. No trabalho, é traçada a conexão objetiva entre duas tragédias populares, onde a preservação da singularidade e da unicidade do Holocausto se combina com o reconhecimento da Nakba por meio de um estudo cuidadoso da literatura israelense e palestina, que mostra o entrelaçamento de longa data entre os dois eventos.
Sem entrar em detalhes complexos, é possível observar, em resumo, como essa atitude, que reconhece ao mesmo tempo a dor dos próprios e a dor do outro, está profundamente enraizada – embora nem sempre seja predominante – nos respectivos textos sagrados e representa uma atitude humana e religiosa que pode ser escolhida e acolhida.
Uma perspectiva delineada de forma magistral no capítulo 58,6-9 do profeta Isaías, que aqui glossamos (e convidamos a reler à luz dos eventos das últimas décadas no Oriente Médio):
Não é antes este o jejum que desejo,
[ou seja, o verdadeiro desejo de Deus]:
desatar as cordas iníquas, tirar os fardos do jugo
, mandar livres os oprimidos e desfazer todo jugo?
[ou seja, elevar os pobres e as vítimas, libertar os oprimidos]
Não é acaso dividir o pão com o faminto,
introduzir em casa os pobres, sem abrigo,
vestir o nu que você vê, sem negligenciar seus parentes?
[ou seja, a capacidade de reconhecer os próprios e os outros]
Então a tua luz surgirá como a aurora,
a tua ferida se cicatrizará rapidamente.
[o próprio trauma é curado junto com o trauma do outro]
A tua justiça caminhará diante de ti, a glória do Senhor te seguirá.
Então tu clamarás e o Senhor te responderá,
implorarás ajuda e ele dirá: "Eis-me aqui!".
Se removeres do meio de ti a opressão
[a eliminação da opressão reacende um diálogo possível com o mistério de Deus].
O que foi dito trata de perspectivas "religiosas" que – compostas com um sério respeito ao direito internacional – considero que devem ser semeadas, cultivadas e defendidas na esperança de que outras modalidades – além da destruição violenta do inimigo – possam, de alguma forma, enraizar-se e contribuir para impregnar as escolhas políticas, militares e ideais, diminuindo o nível da violência que assola Israel e Palestina. O desarmamento militar e político urgente parece sempre exigir também um desarmamento ideológico e teológico.
[1] Cf. D. Neuhaus, Israel, onde estás indo?, na La Civiltà Cattolica, 2 de março de 2024 (4169), 417-429.
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Israel-Palestina: contexto religioso do conflito. Artigo de Fabrizio Mandreoli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU