15 Março 2024
Com a sua fundação, Nadia's Initiative, está na linha da frente da pacificação no Iraque. O “Código Murad” estabelece diretrizes para recolher testemunhos de violência com total respeito pelas vítimas: “Também fui chamada a Kiev para ajudar”. O papel necessário das mulheres na construção da paz: “Quando participam nas negociações, a estabilidade dura mais tempo. Os homens? Devem ser aliados”. Jurei que nenhuma mulher voltaria a sofrer uma violência sexual relacionada com um conflito, mas isso continua a acontecer. Continuo com a minha resistência: cuido das vítimas, do Iraque à Ucrânia. Luto para que suas denúncias sejam ouvidas.
A entrevista é de Sara Lucaroni, publicada por Avvenire, 14-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A força da mulher de paz Nadia Murad reside na franqueza com que conta há 10 anos a sua história aos líderes da terra: “Quero ser a última mulher do mundo com uma história como a minha”.
Raptada em 15 de agosto de 2014, com pouco mais de vinte anos, na sua aldeia, Kocho, no norte do Iraque, durante a campanha genocida do Estado Islâmico contra as minorias, em particular a yazidi, Nadia Murad naquele dia perdeu a mãe e seis irmãos. Com as irmãs, foi vendida nos mercados das escravas e comprada por milicianos islamistas que a violentaram diversas vezes e a revenderam.
Após 4 meses de torturas conseguiu escapar e em novembro de 2015, tendo chegado à Alemanha graças a um programa humanitário, decidiu testemunhar pela primeira vez a tragédia das mulheres yazidi em um fórum das Nações Unidas. Em 2018 ganhou o Prêmio Nobel da Paz. Está engajada com a sua fundação na reconstrução das aldeias da sua comunidade e no apoio às sobreviventes da violência como arma de guerra: as mulheres e as crianças raptadas pelo Daesh no verão de 2014 foram quase 7 mil: algumas estão nas mãos dos sequestradores, que retornaram aos seus países de origem. De outras não há nenhuma notícia.
Nadia Murad, as mulheres empenhadas nos processos de paz, pelos direitos e pela igualdade são mais concretas do que os homens e podem alcançar mais resultados. É possível dizer isso?
Conheço muitos bons homens que estão igualmente comprometidos com a paz e a igualdade, e não tenho certeza de que seja útil ou verdadeiro dizer que as mulheres lutam pela paz enquanto os homens querem a guerra. Se quisermos paz e equidade duradouras, não é apenas responsabilidade de uma parte da sociedade, mas uma responsabilidade coletiva para todos nós, especialmente aqueles que ocupam posições de poder e têm condições de aportar mudanças significativas. No entanto, a pesquisa nos mostra que quando as mulheres ocupam posições de liderança e estão ativamente envolvidas na construção da paz em suas comunidades, esta dura mais tempo. Então, eu diria que é importante que as mulheres sejam incluídas em todas as fases da construção da paz e, além disso, que as meninas acreditem que um dia poderão liderar as suas comunidades. Da mesma forma, os homens devem ser aliados na convicção de que as mulheres são capazes de uma liderança significativa. Precisamos de irmãos, maridos e filhos que nos ajudem a amplificar as nossas vozes e as nossas ideias.
Existe uma pessoa, uma mulher, em quem se inspira, um ponto de referência que a orienta e motiva todos os dias nas suas batalhas e no empenho pela paz?
Minha mãe foi e continua sendo minha luz guia e inspiração. Era uma mãe solteira, com pouca escolaridade, que criava 11 filhos na zona rural do Iraque. Ela incutiu em mim um sentido do certo e do errado, da compaixão e de ter objetivos.
Você comoveu líderes políticos e chefes de estado com sua história pessoal. Ficamos todos impressionados com seu forte senso de justiça. Qual a característica pessoal que lhe permitiu conseguir tanto?
Estou absolutamente determinada a garantir que os ataques perpetrados contra as minhas irmãs, os meus netos, meus amigos e eu – juntamente com milhares de outras garotas yazidi – não se repitam novamente em nenhum outro lugar do mundo. Guiada por esse princípio, falei várias vezes, dirigindo-me aos líderes políticos não só para propor problemas, mas também para propor soluções. Escrevi em meu livro que eu queria ser "a última garota" que sofreu a violência sexual ligada a um conflito. Infelizmente, não foi assim: a violência sexual é endêmica nas zonas de guerra em todo o mundo. No entanto, nunca deixarei de fazer campanhas, de apoiar ou de falar a verdade aos que estão no poder.
Porque é difícil para toda vítima de violência, incluindo a sexual, denunciar e fazer respeitar seus próprios direitos?
Penso, em primeiro lugar, que as vítimas da violência são muitas vezes as mais vulneráveis da sociedade; minorias, mulheres, pobres. Então, quando são atacadas, as estruturas não têm condições de ajudá-las ou protegê-las. Além disso, para as sobreviventes da violência sexual ligada ao conflito, existe estigma e vergonha associados aos crimes que sofreram, o que torna ainda mais difícil a sua denúncia.
Denunciar um crime pode ser traumático por si só. Especialmente se a justiça não é garantida. Depois de os crimes terem sido denunciados e talvez até investigados, é normal que não aconteça mais nada. No Iraque, a Unitad documentou o homicídio, a violência sexual e a escravidão de milhares de yazidis, mas os combatentes do ISIS ainda escapam à justiça. Somente três membros do ISIS foram chamados a responder pelos seus crimes de genocídio. Sabendo que o sistema é em detrimento das vítimas, torna-se muito mais difícil denunciar crimes.
“Nadia's Initiative”, a sua fundação, é um projeto que está ajudando muito as suas comunidades no norte do Iraque e as ações de paz. Qual é a emergência mais importante hoje?
O ISIS destruiu grande parte de Sinjar (uma cidade no noroeste do Iraque, perto da fronteira com Síria, ndr) durante a invasão em 2014 e, dez anos depois, a Nadia’s Initiative trabalha duramente com os sobreviventes para reconstruir as infraestruturas, as fazendas e as escolas que são a linfa vital das comunidades. Muitas mulheres foram deixadas sozinhas para cuidar de suas famílias, portanto dar-lhes educação, competências e instrumentos de que precisam para viver é uma parte importante do nosso trabalho. Um trabalho dificultado ainda mais pelo fato de Sinjar ser uma região contestada, sem uma governança clara ou infraestruturas burocráticas. Precisamos desesperadamente de representação política e de um prefeito, bem como de financiamentos e apoio do governo iraquiano.
Este ano marca o décimo aniversário do ataque do ISIS a Sinjar. Dez anos depois, os yazidis se sentem seguros, há paz ou não?
A comunidade yazidi está mais dispersa do que no passado. Muitos partiram para começar uma nova vida no estrangeiro, centenas de milhares permanecem nos campos de refugiados e, apesar de todos os desafios, mais de 160 mil voltaram a viver em Sinjar. Mas penso que todos os yazidis se sentiriam mais seguros se aqueles que nos atacaram fossem responsabilizados pelas suas ações. Se soubéssemos que o agosto de 2014 não se repetirá porque a justiça foi feita e existisse um impedimento para quem decidisse agir dessa forma novamente. Existem também problemas de segurança mais imediatos. Para as mulheres yazidis em campos de refugiados há uma verdadeira falta de segurança e privacidade. E as famílias yazidis na Alemanha estão preocupados com as repatriações, uma vez que o governo introduziu uma nova lei que obrigará alguns a retornar ao Iraque. Acredito firmemente que precisamos reconstruir a nossa pátria para que as famílias possam deixar os campos e criar vidas com um propósito para si mesmas.
Precisamos que o governo iraquiano ajude a estabilizar a região e a garantir alguma segurança em Sinjar.
Ainda há mulheres e crianças yazidis que conseguem voltar a casa depois de terem sido raptadas dez anos atrás?
Sim, existem. No ano passado, conseguimos ajudar um número maior de mulheres a regressar às suas famílias. Mas quase 3.000 ainda estão em poder do ISIS e de pessoas afiliados. Garantir a sua libertação deveria ser uma prioridade.
Na Alemanha ocorreram os primeiros processos contra membros do ISIS graças à jurisdição universal. Por que outros países têm medo de fazer justiça?
Creio que estejam preocupados com o dinheiro e o tempo que isso levaria. Muitos países ocidentais não querem assumir a responsabilidade pelas ações tomadas pelos seus cidadãos no Iraque. Eu sou incrivelmente grata à Alemanha por ter assumido um papel de guia na justiça e na responsabilidade para com o meu povo.
Como foi recebido o “Código Murad”, que estabelece diretrizes para a coleta de testemunhos de violências com todo o respeito pelas vítimas?
É um projeto do qual sou extremamente orgulhosa e me tranquiliza saber que ajuda os sobreviventes a contar as suas histórias. No ano passado fui convidada para ir à Ucrânia para me encontrar com mulheres que sofreram violência sexual e muitas delas afirmaram que o Código lhes deu coragem e confiança enquanto contavam as suas experiências.
Em Israel assistimos novamente à violência contra as mulheres. Para preveni-la nos conflitos são suficientes normas preventivas mais rigorosas e uma justiça certa que puna os culpados ou é mais importante um maior apoio às mulheres em tempos de paz e investimentos na cultura de igualdade?
Absolutamente ambos. Responsabilidade e educação, mas também conscientização em nível global que a violência sexual contra as mulheres não é simplesmente um efeito colateral inevitável da guerra, mas um crime usado há séculos para partir o próprio coração das comunidades. E deve haver justiça para aqueles que cometem violência sexual ligada aos conflitos, aqueles terroristas que perpetram esses crimes devem ser responsabilizados: o que mais poderia dissuadir outros de usar essa tática na guerra? Você acredita que estamos testemunhando o “fim dos direitos humanos” no mundo?
Como fazer compreender aos jovens a importância de se empenhar sempre para que a paz e os direitos nunca sejam dados com garantidos?
Não creio que estejamos vendo o seu fim, os seres humanos sempre terão direitos. Mas o nosso mundo está numa situação muito precária e há países e atores não estatais que não atribuem um valor suficientemente elevado aos direitos humanos. Mas conheci muitos jovens que têm uma paixão pela humanidade e querem criar um futuro pacífico. Seu desejo de defender e mudar o mundo para melhor me dá esperança.
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“O estupro como arma. Não fui a última”. Entrevista com Nadia Murad, vencedora do Prêmio Nobel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU