23 Fevereiro 2024
"Os benefícios da BR-319 têm sido exagerados. (...) Não se deve ser enganado por um discurso político sobre uma inexistente utopia de governança. Arriscar os impactos desta obra é perigoso demais", escreve Philip Martin Fearnside, em artigo publicado por Amazônia Real, 16-08-2023.
Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 750 publicações científicas e mais de 700 textos de divulgação de sua autoria.
A reconstrução da BR-319 (Figura 1) e seus projetos associados escondidos [1] ainda não são um fato consumado, mas o perigo chegou a um momento crítico. Em novembro de 2023 o governo criou de grupo de trabalho (GT) da BR-319 organizado pelo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNIT) para considerar que medidas podem ser adotadas para tornar a reconstrução da BR-319 ambientalmente sustentável [2]. Em dezembro o governo acrescentou o projeto ao Plano Regional de Desenvolvimento da Amazônia (PRDA) para 2024-2027 [3], e a Câmara de Deputados colocou um Projeto de Lei em regime de urgência para obrigar o IBAMA a aprovar a obra e o governo de financiá-lo [4].
Em janeiro de 2024 o secretário-executivo do Ministério dos Transportes garantiu ao GT da BR-319 que é compromisso de Lula asfaltar a BR-319 [5]. O relatório final do GT da BR-319 é previsto para fevereiro de 2024, e deve ser lançado nos próximos dias. Na sua fala ao GT-BR-319, o secretário-executivo deixou claro que o objetivo do relatório do GT é de justificar a aprovação da licença e instalação da obra [5]. Ou seja, não há nem pretexto de que seja uma análise neutra para pensar a questão de se, mesmo após as medidas mitigatórias a serem propostas, o impacto seria justificável e a obra deve ir para frente.
Figura 1. A rodovia BR-319 e estradas laterais planejadas associadas, como a AM-366 e AM-343, abrindo a região Trans-Purus à entrada de desmatadores. As áreas em cinza ao longo das rotas planejadas da AM-366 e AM-343 são registros no Cadastro Ambiental Rural (CAR) até 2021, ou seja, áreas reivindicadas por grileiros em antecipação da construção dessas estradas ligadas à BR-319. (Fonte: A.M. Yanai).
Enquanto o GT da BR-319 discute como fazer a BR-319 “ambientalmente sustentável”, é importante ficar claro que isto não vai acontecer. As medidas a serem adotadas apenas amenizariam um pouquinho do impacto ao longo da rota entre Manaus e Humaitá, enquanto os impactos muito maiores afetariam vastas áreas longe da estrada em si e não seriam controlados mesmo se o presidente da república e os governadores estaduais tivesse isto como primeira prioridade. Esses impactos nem foram considerados no EIA [6] e não fazem parte das discussões atuais organizadas pelo DNIT. A BR-319 deve trazer grileiros, fazendeiros, agricultores e madeireiros da região AMACRO, hoje um dos principais focos de desmatamento na Amazônia [Figura 2], para toda a área já conectada a Manaus por estradas e para as enormes áreas que seriam abertas por estradas planejadas a serem conectadas à BR-319, como a AM-366. As áreas a receberem esses desmatadores incluem a Roraima [7], famosa como o estado com menos controle ambiental.
A AM-366 abriria a região Trans-Purus – a grande área de floresta no estado do Amazonas ao oeste do rio Purus [8, 9]. Isto inclua a maior área na Amazônia de terras públicas não destinadas, as chamadas “terras devolutas”, que são as mais atraentes para grileiros e outros invasores [10, 11]. As estradas laterais que conectariam à BR-319, como a AM-366, fazem parte do impacto do projeto da BR-319, embora se finge nos meios políticos de que se trata de um problema separado. Não é separado, e o lobby “Amigos da BR-319” já está pressionando também para a AM-366 [12]. O que acontece depois de fornecer acesso por estrada é, em grande parte, fora do controle do governo [13].
Figura 2. Queimada na região AMACRO, o grande foco de desmatamento no encontro dos estados de Amazonas, Acre e Rondônia que será conectado a vastas áreas de floresta intacta pela BR-319 e estradas associadas. (Foto: Nilmar Lage | Greenpeace).
Um dos assuntos em discussão é a criação de unidades de conservação. Isto é bom, e deve criar muitas delas rapidamente, antes que as áreas sejam invadidas e desmatadas. Algumas delas devem ser de proteção integral, mas muitas podem ser do tipo “uso sustentável”, desde que não sejam APAs, que não ofereçem quase nenhuma proteção. Toda a área de floresta pública não destinada deve ser convertida em algum tipo de reserva, e nada legalizada como propriedade privada. Isto não deve ser apenas ao longo do trajeto da BR-319, mas em toda a área impactada, inclusive a região Trans-Purus.
Parte da discussão é sobre experiências internacionais de estradas que cortam áreas preservadas, que podem servir de modelo à essa rodovia na Amazônia. Exemplos internacionais vem sendo usados como argumento de que declarando a BR-319 uma “estrada parque” ia zerar o desmatamento. Infelizmente, esta noção é irreal no contexto da fronteira na Amazônia. O primeiro EIA da BR-319, de 2009 e já rejeitada e substituida pelo atual EIA, apresentou o Parque Nacional de Yellowstone, nos EUA, como o exemplo do que se esperava na BR-319 com “govenança”. Incluiu um mapa das estradas no parque, onde milhões de turistas circulam e ninguem corta uma única árvore ([15], p. 205). A irrealidade deste cenário para a BR-319 seria difícil de exagerar [16]. Este discurso continua: em agosto de 2023 o Ministro dos Transportes declarou que a BR-319 será “a rodovia mais sustentável e mais verde do planeta” [17]. Os desmatadores atraídos pela BR-319 não se comportam como turistas, e a imaginada “governança” não os controla na prática [18].
O exemplo melhor é a reconstrução da rodovia BR-163 (Santarém-Cuiabá), que foi licenciada em 2006 com base na hipótese de que o plano “BR-163 Sustentável” ia evitar o desmatamento. Este programa incluiu 32 ONGs mais o Governo Federal, e tinha a participação de alguns dos melhores ambientalistas e acadêmicos do País. A então ministra do meio ambiente, Marina Silva, declarou que a BR-163 ia ser um “corredor de desenvolvimento sustentável”. A história real que sucedeu não seguiu este cenário: a área se tornou, e ainda é, um dos maiores focos de desmatamento, grilagem de terras, exploração madeireira ilegal, e garimpagem [19]. Em 2019, o “dia do fogo” foi organizado a partir de Novo Progresso, na BR-163, quando fazendeiros em toda a Amazônia combinaram para queimar no mesmo dia para mostrar ao Presidente Bolsonaro que estavam “desenvolvendo” a Amazônia [20]. A BR-163 gerou as invasões da Terra Indígena Baú [21 22], a grilagem na FLONA Jamanxim [23], e os ramais dando acesso à metade oeste da Terra do Meio (uma área de floresta do tamanho da Suíça) [24].
Os riscos o projeto de reconstrução são enormes, e o estado brasileiro não tem e não terá a capacidade de conter os impactos num horizonte de tempo que vai muito além de qualquer mandato político. O custo seria astronômico para controlar a situação em toda a área que receberia os impactos. Qual é o plano para controlar o desmatamento em Roraima e na região Trans-Purus? Os riscos ferem os interesses nacionais mais básicos, inclusive a manutenção da cidade de São Paulo [25]. A floresta na região Trans-Purus, que é ameaçada pela AM-366, AM-343 e outros projetos ligados à BR-319, é a princpal fonte de água para a maior cidade do país, sendo que a reciclagem de água pela floresta nessa área é chave para surprir o vapor d’água aos ventos conhecidos como “rios voadores” que levam a água para o Sudeste brasileiro [26]. Pesquisas indicam que 70% da água na bacia hidrográfica que inclua São Paulo vêm da Amazônia [27, 28]. Manter a floresta na área ameaçada pelo projeto também é chave para evitar que o aquecimento global passe de um ponto de não retorno e escapa do controle humano, o que seria catastrófico para o Brasil, levando grandes secas e incêndios, inundações, a perda da floresta amazônica, a desertificação da região Nordeste, grandes tufões e aumento do nível do mar na costa brasileira, grandes perdas para o agronegócio e a agricultura familiar, e temperaturas insuportáveis para a população humana em muitos locais [29] (Fearnside & Silva, 2023).
Os beneficios da BR-319 tem sido incessentemente exagerados. A obra não é econômicamente justificável, pois o transporte de produtos das fábricas da Zona Franca de Manaus para mercados na região Sudeste é bem mais barato por água do que seria pela rodovia [30] (Teixeira, 2007). A BR-319 é a única grande obra no País que não tem um Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) [16, 31], ou seu antecessor, o Estudo de Viabilidade Técnica e Econômica (EVTE). Apesar da longa história de desculpas para não ter o EVTE, a verdadeira razão é óbvia: não é economicamente viável, mesmo sem considerar seus enormes custos ambientais [16, 32]. O Primeiro EIA até admitiu que “representantes das indústrias de Manaus têm indicado que, no momento, a rodovia teria baixa importância para o Polo Industrial de Manaus” ([15], p. 216). Não se deve ser enganado por um discurso político sobre uma inexistente utopia de governança. Arriscar os impactos desta obra é perigoso demais.
[1] Fearnside, P.M. 2022. Por que a rodovia BR-319 é tão prejudicial. Amazônia Real.
[2] ClimaInfo. 2023a. Governo cria de grupo de estudo da BR-319 sem IBAMA e Ministério do Meio Ambiente. ClimaInfo, 21 de novembro de 2023.
[3] Alfaia, I. 2023. Trecho do meio da BR-319 entra em plano para asfaltamento até 2027. Brasil Norte Comunicações (BNC Amazonas), 04 de dezembro de 2023.
[4] Fearnside, P.M. 2023. Correndo para o fim da floresta amazônica: BR-319 entra na pauta do plenário da Câmara. Amazônia Real, 20 de dezembro de 2023.
[5] ClimaInfo. 2024. Secretário do Ministério dos Transportes diz que é compromisso de Lula asfaltar a BR-319. ClimaInfo, 23 de janeiro de 2024.
[6] DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). 2020. BR-319/AM EIA – Estudo de Impacto Ambiental Segmento do KM 250,00 ao Km 655,70.
[7] Barni, P.E.; P.M. Fearnside & P.M.L.A. Graça. 2018. Simulando desmatamento e perda de carbono na Amazônia: Impactos no Estado de Roraima devido à reconstrução da BR-319 (Manaus-Porto Velho).In: Oliveira, S.K.S. & Falcão, M.T. (Eds.). Roraima: Biodiversidade e Diversidades. Editora da Universidade Estadual de Roraima (UERR), Boa Vista, Roraima. p. 154-173.
[8] Santos, J.L., A.M. Yanai, P.M.L.A. Graça, F.W.S. Correia & P.M. Fearnside. 2023. Amazon deforestation: Simulated impact of Brazil’s proposed BR-319 highway project. Environmental Monitoring and Assessment 195(10): art. 1217.
[9] Santos, J.L., A.M. Yanai, P.M.L.A. Graça, F.W.S. Correia & P.M. Fearnside. 2024. Impacto simulado da BR-319–1: Introdução à série. Amazônia Real, 06 de fevereiro de 2024.
[10] Fearnside, P.M., L. Ferrante, A.M. Yanai & M.A. Isaac Júnior. 2020.Região Trans-Purus, a última floresta intacta. Amazônia Real.
[11] Carrero, G.C., R.T. Walker, C.S. Simmons & P.M. Fearnside. 2023. Grilagem de terras na Amazônia brasileira. Amazônia Real.
[12] Amazonas em Tempo. 2022. Amigos da BR-319 propõem volta do DER-AM, ponte sobre o Solimões e Rodovia “Transpurus”. Amazonas em Tempo, 20 de setembro de 2022.
[13] Fearnside, P.M. 2021a. O desmatamento da Amazônia. Amazônia Real.
[14] Lima, W. 2022. Queimadas batem recorde em agosto na Amazônia. Amazônia Real, 01 de setembro de 2022.
[15] DNIT (Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes). 2009. Estudo de impacto ambiental da reconstrução da BR-319.
[16] Fearnside, P.M. & P.M.L.A. Graça. 2009. BR-319: A rodovia Manaus-Porto Velho e o impacto potencial de conectar o arco de desmatamento à Amazônia central. Novos Cadernos NAEA 12(1): 19-50.
[17] ClimaInfo. 2023b. Recursos do Fundo Amazônia podem parar na BR-319, que corta a floresta. ClimaInfo, 18 de agosto de 2023.
[18] Andrade, M.B.T., L. Ferrante & P.M Fearnside. 2021. A rodovia BR-319, do Brasil, demonstra uma falta crucial de governança ambiental na Amazônia. Amazônia Real, 02 de marçode 2021.
[19] Wenzel, F. 2022. Os Engenheiros da grilagem.
[20] Greenpeace-Brasil, 2020. Dia do fogo completa um ano, com legado de impunidade. Greenpeace-Brasil, 10 de agosto de 2020.
[21] Carneiro,, T. 2022. Ameaças do garimpo e invasões: o que se sabe sobre a Terra Indígena Baú, onde lideranças dizem ter detido garimpeiros no PA. G1, 21 de maio de 2022.
[22] Pinto, D. 2023 Terras Indígenas impactadas pela BR-163 estão sem acesso a recursos de mitigação. OEco, 16 de fevereiro de 2023.
[23] Pegurier, E. &·D. Bragança. 2017. Grileiros ganham meio bilhão com redução de Jamanxim. OEco, 14 de julho de 2017.
[24] Doblas, J. 2015. Rotas do Saque : Rotas do Saque Violações e Ameaças à Integridade Territorial da Terra do Meio (PA). ISA, São Paulo, SP. 46 p. h
[25] Fearnside, P.M. 2021b. As lições dos eventos climáticos extremos de 2021 no Brasil: 2 – A seca no Sudeste. Amazônia Real, 20 de julho de 2021.
[26] Fearnside, P.M. 2015. Rios voadores e a água de São Paulo. Amazônia Real
[27] van der Ent, R.J., H.H.G. Savenije, B. Schaefli & S.C. Steele-Dunne, 2010. Origin and fate of atmospheric moisture over continents. Water Resources Research 46: art. W09525.
[28] Zemp, D.C., C.-F Schleussner, H.M.J. Barbosa, R.J. van der Ent, J.F. Donges, J. Heinke, G. Sampaio & A. Rammig. 2014. On the importance of cascading moisture recycling in South America. Atmospheric Chemistry and Physics 14: 13.337–13.359.
[29] Fearnside, P.M. & R.A. Silva. 2023. A seca na Amazônia em 2023 indica um futuro desastroso para a floresta tropical e seu povo. The Conversation, 06 de novembro de 2023.
[30] Teixeira, K.M. 2007. Investigação de Opções de Transporte de Carga Geral em Conteineres nas Conexões com a Região Amazônica. Tese de doutorado em engenharia de transportes. São Carlos, SP : Universidade de São Paulo, Escola de Engenharia de São Carlos. 235 p.
[31] DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). 2016. Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental – EVTEA. DNIT, 24 de outubro de 2016.
[32] Fleck, L. 2009. Eficiência Econômica, Riscos e Custos Ambientais da Reconstrução da BR 319. Conservation Strategy Fund, Lagoa Santa, MG. 87 p.
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BR-319: O perigo chega a um momento crítico. Artigo de Philip Martin Fearnside - Instituto Humanitas Unisinos - IHU