12 Janeiro 2024
"Às vezes a sua voz [Papa Francisco] grita no deserto, mas certamente se faz sentir, mesmo por aqueles que parecem não a ouvir: é a única que sobrou de um líder moral global que, com o Evangelho nas mãos, luta pelo futuro num contexto em que o direito internacional, bélico, humanitário parece não existir mais".
O artigo é de Antonio Spadaro, publicado por il Fatto Quotidiano, 09-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A situação no mundo tornou-se gravíssima. “E agora quem nos salvará?”, pergunta-me Antonio Padellaro das colunas do Il Fatto, meditando sobre a situação e refletindo sobre o papel do Pontífice. As suas palavras – que convido os leitores a meditar – desenham um quadro que me lembra o Guernica de Picasso.
Mas é o próprio Francisco que - enquanto o falatório clerical se prende no significado de bênção divina precisamente quando todos mais precisamos dela – escreve uma Exortação Apostólica que parece um último apelo antes da catástrofe, aliás, mais um grito do que um apelo. Os tons diplomáticos traem a percepção de que estamos num ponto sem retorno: “O mundo está desmoronando." As imagens têm um acre sabor apocalíptico. O alegre título da Exortação Laudate Deum torna as suas palavras ainda mais trágicas, um verdadeiro oximoro, como o desespero de um palhaço que anuncia o desastre no meio das risadas generalizadas.
Recentemente estive em Roubaix, no norte de França, para visitar uma exposição intitulada Chagall político, na minha opinião, extraordinária. Finalmente pude admirar La Commedia dell'arte, uma obra monumental encomendada ao artista para o foyer do Teatro de Frankfurt após a tragédia de Segunda Guerra Mundial. Representa um picadeiro de circo, que para Chagall – um dos pintores mais amado por Bergoglio – é um espelho do seu tempo. Na tela, acrobatas, malabaristas e músicos, trapezistas e escudeiros se revezam em uma pista colorida, destilando uma atmosfera alegre. No centro, uma figura zoomórfica de violoncelista está diante de um galo vermelho com o olho escancarado, o único que olha para o espectador questionando-o. Este mundo aparentemente encantado esconde um universo metafórico e simbólico no qual a risada se mistura com as lágrimas. Chagall associa o mundo dos saltimbancos à tragédia da existência, e a destruição e os genocídios desembocam no sombrio carnaval da humanidade.
Francisco é como o galo vermelho de Chagall com o olho escancarado – o único que olha para o espectador e o desafia – que simboliza a lucidez e a clarividência. Sua voz transforma-se hoje num apelo duríssimo, entre os mais duros do seu pontificado. O Pontífice levou a sério mais do que qualquer outro as palavras esquecidas do Concílio Vaticano II que definiam o nosso tempo como uma simples fase para “aproveitemos o tempo de que ainda dispomos para, tornados mais conscientes da própria responsabilidade, encontrarmos os caminhos que tornem possível resolver os nossos conflitos dum modo mais digno de homens” (Gaudiun et Spes, n. 81). Um tempo, não uma paz! O olho de Francisco sobre a realidade deste mundo está bem aberto: ele sabe que o pior do século XX está retornando. E são as escolhas dos homens que moldam o futuro. O Papa é um ateu em relação a um pagão “Deus ex machina” que resolve o problema dos homens com uma solução brilhante, com um golpe de borracha ou uma pirueta. Conhece as dinâmicas perversas da política internacional que renunciou enfrentar as questões de modo multilateral: escreveu isso em todos os seus documentos mais oficiais.
É por isso que a sua diplomacia costura sempre e nunca quer cortar. É por isso que quer raciocinar mantendo todos juntos, os “bons” e os “maus”. É por isso que a diplomacia vaticana é incansável nos seus canais oficiais e não oficiais. Sabe que sem uma visão global sobre o bem comum – tão típica do catolicismo, aliás – a política internacional, firmemente ancorada nos interesses econômicos, produz descartes, e o descarte produz conflito. E Francisco sabe que o verdadeiro problema da implosão da ordem mundial - que em breve se confrontará com eleições nacionais cruciais que poderão mudar o panorama global – é que não temos mais nem as palavras para balbuciar um outro. Estamos perdendo o logos da ciência política enquanto o mal assume as feições de metafísica, deixando-nos áfonos, capazes apenas de registrar as carnificinas de um “massacre inútil”. Mas os próprios conflitos parecem não ter uma verdadeira estratégia, e as possíveis vitórias não são orientadas por ideias claras e praticáveis de futuro. Quais seriam, no caso da Ucrânia e do Oriente Médio, por exemplo?
A tragédia é que ainda se acredita que as guerras possam resolver os problemas. Além de ser uma estupidez, essa é uma decisão livre dos homens e dos Estados, incluindo as democracias.
O Concílio ainda advertia: “Não sabemos aonde nos levará o caminho perverso que trilhamos”. O Papa repetiu isso quando recebeu em audiência o corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé, na segunda-feira, 8 de janeiro, delineando o atlas dos conflitos que estão “se gangrenado”.
Eu já o disse outras vezes, caro Padellaro: a figura petrina de Francisco – nesta fase tão lúcida e extrema do seu pontificado – sobrepõe-se à figura franciscana de louco moderado e rebelde paciente pasoliniano, de idiota dostoievskiano, de louco felliniano. O seu apelo é à nossa liberdade. As decisões são nossas. Às vezes a sua voz grita no deserto, mas certamente se faz sentir, mesmo por aqueles que parecem não a ouvir: é a única que sobrou de um líder moral global que, com o Evangelho nas mãos, luta pelo futuro num contexto em que o direito internacional, bélico, humanitário parece não existir mais.
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Caro Padellaro, o Papa grita: cabe a nós escutá-lo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU