15 Dezembro 2023
"Deixamos viva a esperança da transição energética, mas esse termo está sendo tolerado apenas e somente porque a alternativa seria (é) a revolução energética, que teria assustado muitos. Mas aqui falta visão: nenhum dos poderosos do planeta Terra consegue sequer imaginar um mundo sem combustíveis fósseis e se você não imaginar tal mundo agora, nunca será possível, a menos que se autorrealize por trauma e/ou tomada de consciência".
O artigo é de Mario Tozzi, geólogo italiano e divulgador científico, em artigo publicado por La Stampa, 14-12-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Dessa vez quase caímos na conversa, mas a culpa é do mecanismo de comunicação habilmente implementado por aquela boa gente dos Emirados Árabes Unidos: fazer com que o negacionista Sheikh Al Jaber saísse na frente para nos informar que ao abandonar os combustíveis fósseis se retorna às cavernas (não que ele perca dinheiros e privilégios de casta), jogar todos os homens de boa vontade na consternação de um próximo resultado negativo e depois realmente fracassar, nos fatos, mas enfeitados com informações condescendentes que fazem com que todos se sintam um pouco menos culpados. E, em seguida, com tons entusiasmados e “resultados históricos”:
1) não haverá uma phase-out progressiva dos combustíveis fósseis, mas sim uma transition-away (termo que não poderia ser mais ambíguo), mas sempre sem mencionar a palavra “oil”;
2) permaneceremos dentro do aumento de 1,5°C das temperaturas médias atmosféricas, desde que não se olhe para o que as grandes petrolíferas estão fazendo hoje;
3) reduziremos a zero as emissões que alteram o clima em 2050, mesmo sem saber quem irá reduzir quanto e como, nem quem irá controlar, antes dessa data.
E o melhor é que também dessa vez mordemos a isca: festeja-se o resultado positivo, porque pelo menos são citados alguns conceitos (que são os mesmos de sempre, aqueles que não atrapalham muito), como " combustíveis fósseis", por exemplo, esquecendo que a verdadeira obra-prima foi feita pela indústria de petróleo e gás, conseguindo ficar esquecida durante décadas em todas as conferências climáticas anteriores até à de Madrid de 2019 (!), na qual finalmente fez a sua estreia no banco dos réus. E acrescenta-se que um péssimo compromisso ainda assim é melhor do que zero acordos, o que poderia ter sido verdade no tempo da conferência de Quioto em 1997, mas não hoje, depois de anos de notícias e dados cada vez mais graves.
Esquecendo que essa lógica talvez se aplique aos negócios, enquanto aqui está em jogo o estado da saúde da humanidade. E, pensando bem, esse é justamente o principal resultado alcançado: todos nós entendemos que da saúde dos sapiens e do bem-estar dos ecossistemas indispensáveis a essa saúde nada importa aos poderosos do gás, petróleo e carvão do mundo; eles só estão interessados em fazer negócios até o último grama de carvão ou o último metro cúbico de gás. Um conceito que não foi questionado nem por um instante em Dubai.
É claro que conseguimos algo, por exemplo um começo, ainda que impalpável, sobre o "Fundo de Perdas e Danos": entende-se finalmente que se deve compensar aqueles que estão substancialmente perdendo todas as possibilidades de sobrevivência nos seus territórios. É claro, os negacionistas do clima foram silenciados: se todos os países reconhecem que devemos fazer alguma coisa, significa que a crise climática depende de nós e não do Sol (este é um bom resultado, mas indireto). Claro, alguma proposição de princípio foi feita, mas, justamente, sem muitos contornos concretos, aliás, propositalmente nebulosa como não poderia ser mais nebulosa. Mas diante do ano mais quente desde que se fazem medições, diante da avalanche de violentas perturbações meteorológicas, diante do avanço do deserto ou da submersão pela elevação do nível do mar, registramos um substancial “tô nem aí”: aqueles que puderem se adaptarão, enquanto os outros migrarão, possivelmente diminuindo de número ao longo da empreitada. Se eu fosse um ativista da Última Geração, me aparafusaria ao asfalto de uma rodovia, o mero bloqueio de trânsito é pouco.
Mas o golpe de cena mais extraordinário é aquele pelo qual nos regozijamos, satisfeitos pelo fato de a temperatura média atmosférica não aumentará mais de 1,5°C no futuro próximo (?), como já prometido por todos os líderes mundiais há alguns anos: 1,5°C é a fronteira além da qual os especialistas do clima argumentam que não se pode e não se deve ir, sob pena de consequências inimagináveis e imprevisível, mas de toda forma gravíssimas. Pena que esse cenário, duro, mas ainda suportável, já foi superado pelos fatos: comparando os dados relativos aos investimentos no setor de petróleo e gás (e carvão) com os cenários de aumento de temperatura, o que vemos é que já estamos muito além daquele cenário.
Atualmente o corpo dos investimentos em combustíveis fósseis levará, se for mantido constante, a um aumento de 2,7°C, trazendo um dos terríveis cenários temido pelos cientistas (production gap). Uma boa notícia teria sido uma diminuição dos investimentos na área, revertendo-os, sei lá, para as fontes renováveis, mas há algo disso na resolução de Dubai? Um sucesso teria sido o fim dos financiamentos públicos, sempre mascarados, no setor, enquanto só no ano passado esses subsídios chegaram a sete trilhões de dólares (FMI). Houve algum sinal disso? Não parece. Outro resultado teria sido o fim do novas pesquisas, explorações e perfurações de combustíveis fósseis, porque se você os extrai, depois os queima: temos alguma notícia? Não, obviamente. Sobre fatos concretos o vácuo absoluto.
Deixamos viva a esperança da transição energética, mas esse termo está sendo tolerado apenas e somente porque a alternativa seria (é) a revolução energética, que teria assustado muitos. Mas aqui falta visão: nenhum dos poderosos do planeta Terra consegue sequer imaginar um mundo sem combustíveis fósseis e se você não imaginar tal mundo agora, nunca será possível, a menos que se autorrealize por trauma e/ou tomada de consciência. Como se, no entanto, a transição dependesse de nós e se pudesse, talvez no último minuto, escapar do desastre graças a uma inexistente (por enquanto) engenhoca tecnológica.
Não é esse o caso, porque essa transição é como o destino do velho conto: para o senhor que o havia enviado ao mercado de Bagdá, o servo conta que fugiu e voltou mais cedo, porque havia encontrado a morte que o ameaçara. O senhor o tranquiliza e lhe dá o seu melhor cavalo para fazê-lo fugir, de forma que ele toma a estrada para Basra a galope. Intrigado o senhor vai procurar a morte no mercado e, ao encontrá-la, pergunta por que ameaçou o seu servo. Mas a morte lhe responde que não o ameaçou de jeito nenhum, apenas tinha ficado surpresa por tê-lo visto ali: estava esperando por ele em Basra, e é para lá que está indo. Pois bem, podemos fingir que nada acontece mesmo diante dos fatos, mas mais cedo ou mais tarde eles nos desencovam e nos colocam diante das nossas inadimplências.
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Sem proibir novos poços de petróleo, as temperaturas subirão 2,7 graus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU