05 Dezembro 2023
"Um apocalipse está em andamento, em todos os sentidos da palavra. Uma revelação, acima de tudo", escreve a filósofa italiana Roberta De Monticelli, professora da Universidade San Raffaele, de Milão, em artigo publicado por Il Manifesto, 01-12-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
* Nesta semana nas livrarias “J'Accuse”, um livro de Francesca Albanese – relatora especial das Nações Unidas sobre os territórios palestinos ocupados – em conversa com Christian Elia (Fuora Scena, RCS) que oferece em sete curtos capítulos um glossário para entender o que aconteceu na Palestina e em Israel. Publicamos um trecho do posfácio.
Gaza não existe mais – é apenas um monte de dor e ruína. Um apocalipse está em andamento, em todos os sentidos da palavra. Uma revelação, acima de tudo. Não apenas dos extremos de que somos capazes quando os vínculos do direito e da civilidade são violados. Mas também do outro lado da esplêndida lua de Israel, o lado que estava na sombra: a Palestina.
Agora o outro lado da lua, terrível, está à luz da nossa consciência, apesar do corte total de eletricidade e comunicações imposto – como se somente a escuridão pudesse ser testemunha de um sacrifício humano tão sem limites e sem sentido. Mas, apesar disso, nunca tão visível, nunca tão descarada em toda a sua tragédia, é hoje a inteira história do nascimento e crescimento de Israel na terra que foi a Palestina histórica, dos caminhos que a construção daquele Estado trilhou e cada vez mais sistematicamente perseguiu, da dor que essas escolhas, não inevitáveis, causaram: sobretudo no lado escuro da lua, mas também no lado claro, num gotejar de veneno e morte. Uma dor que atinge hoje o seu insuportável zênite.
Conta um grande escritor que um livro deve ser “um machado para quebrar o mar de gelo que está dentro de nós" (Franz Kafka). Esse J'accuse deveria ser um machado desse tipo para cada um de nós. Que seja pelo menos um formão fino ou até um cinzel, que com a lâmina incida nas profundezas da memória, para que possamos aprender quanto foi terrível a nossa indiferença até hoje, e como todos os dias do nosso ignorar a face escura da lua, cada hora do nosso silêncio, tenha fornecido um pouco de energia para a bomba atômica do mal que agora está destruindo a nossa humanidade, juntamente com os corpos dos inocentes.
O texto que vocês têm nas mãos vem diretamente do gabinete de um “funcionário da humanidade”: porque essa pessoa, na sua independência que a eleva acima dos funcionários remunerados, é uma relatora especial das Nações Unidas, e bem se amolda ao seu papel o apelido que Edmund Husserl reservava para os herdeiros de Sócrates. Esse J'Accuse está escrito em nome dos ideais e das correspondentes normas e instituições que a comunidade internacional reservou para si para prevenir e extinguir as guerras; para que onde ficava a selva geopolítica das potências sentasse o governo da lei, o direito internacional e seus órgãos de garantia; para que onde estavam as raízes de sangue e de terra das nações, brotasse o bálsamo da razão, e todos nos lembrássemos das raízes de papel e pensamento plantadas em nós para sustentar a nossa humanidade acima das camadas de ressentimento, dor, impunidade e violência que agora trancam as nossas gargantas.
Talvez ainda seja possível. Que o dom dos vínculos da razão, acolhido pela melhor parte da tradição humanística e da filosofia e, finalmente, pela comunidade internacional, prevaleça: e derrote mais essa catástrofe do mundo global de que a Europa anunciou, com as suas guerras novecentistas, o advento. Porque o que separa, em todo o mundo, a sutilíssima camada de civilidade que nos permite nos chamarmos de humanos do subjacente oceano de estupidez e ferocidade que nos ameaça, é apenas o empenho de brandi-las, as cartas de que são feitas essas raízes, em vez de brandir as armas.
Isso significa: reanimá-las com o nosso sopro, essas cartas e essa letra que só o espírito torna viva. Reanimá-las com o sopro pelo qual só o ideal supera o real, e o valor supera o fato - e sobretudo a pesquisa, a dúvida, a vigilância crítica e a transparência lógica excedem o dogma, o berro tribal, a fúria ideológica. Excedem, quer dizer: não se deixam reduzir a. Excedem, apenas por um sopro. Sem esse sopro, a nossa humanidade está perdida. Parece-me que hoje estamos nessa encruzilhada.
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Um sopro de razão em vez de armas. Uma prévia. Artigo de Roberta De Monticelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU