28 Novembro 2023
"Os povos sabem onde estão seus territórios ancestrais. No entanto, a cobiça que essas terras despertam, sobretudo em tempos de intensificação do extrativismo, interpõe muitos obstáculos para que esses territórios sejam reconhecidos pelo Estado", escreve Silvia Beatriz Adoue, professora da Unesp e editora do Contrapoder, em artigo publicado por Contrapoder, 20-11-2023.
Na Constituição de 1988, os povos preexistentes à colonização conseguiram impor dois artigos que propunham o reconhecimento institucional das áreas na figura legal de demarcação de Terras Indígenas (TIs). O artigo 231 [1] reconhece o direito dos povos ao “uso exclusivo” de suas terras ancestrais. Porém, o texto apresenta brechas jurídicas que podem limitar ou anular tal direito. A letra da lei também é ambígua ao definir Tis como aquelas terras “tradicionalmente ocupadas” pelos povos, já que eles têm sido e continuam sendo expulsos com violência de seus territórios. Há também contradição quando se afirma, por um lado, que a razão e destino dessas áreas é “a reprodução física e cultural [do povo], segundo seus usos, costumes e tradições”, e, por outro, que podem ser aproveitadas para exploração de seus recursos sempre que o povo seja consultado e participe dos resultados de dita exploração.
As cadeias extrativas vêm tensionando essas duas brechas por dois caminhos jurídicos. Um deles é a exigência de estabelecer um “marco temporal” para comprovar a ocupação tradicional: o momento da promulgação da Constituição, em 1988. Outro é o de seduzir e pressionar parte das comunidades para que aceitem a exploração extrativa (agrícola ou mineral) em troca de uma pequena participação no negócio.
Trinta e cinco anos depois da promulgação da Constituição, ainda existem por volta de 600 áreas em processo de demarcação. Os lobbies empresariais a favor do estabelecimento de um marco temporal não apenas põem em risco os processos demarcatórios inacabados, senão que também poderiam reverter demarcações já concluídas. Como esses bonecos joão-bobo que as crianças derrubam e eles voltam a ficar em pé, a pauta do “marco temporal” não saiu do Congresso Nacional todos esses anos, renovada em diferentes projetos que tramitam em comissões, onde se demoram com a expectativa de achar um momento favorável, de distração e de desmobilização dos povos, para dar o bote. Para infelicidade dos lobbies, os povos permanecem atentos. O Supremo Tribunal Federal (STF) foi ativado para julgar a constitucionalidade desse dispositivo. Fora os votos dos juízes indicados por Jair Messias Bolsonaro, o marco temporal foi rejeitado por ampla maioria. No entanto, houve votos que, mesmo rejeitando o marco temporal, introduziram no debate dois dispositivos que interessam às cadeias extrativas.
Um deles é o pagamento de indenização aos atuais ocupantes, ainda que não tenham realizado benfeitoria nenhuma na área. O outro autorizaria o uso não exclusivo da terra pelos indígenas. Isso permitiria seu arrendamento por particulares ou empresas, as “parcerias”, os convênios de exploração conjunta, ou qualquer nome que inventarem. De fato, essas práticas vêm sendo realizadas, inclusive com a proteção legal de “termos de ajustamento de conduta” de caráter provisório, mas terminam sendo renovadas a cada 5 anos. Essas “parcerias”, arrendamentos e convênios para exploração destroem a relação com os outros seres da natureza que os modos de vida indígena asseguram. E introduzem relações mercantis nos territórios.
Tais práticas encontram resistência em parte importante da população indígena, especialmente entre as mulheres. Só neste ano, três autoridades espirituais Guarani e Kaiowá foram assassinadas com requintes de crueldade. Mediadores (e beneficiados) de arrendamento assassinaram e violentaram parentes em terras Kaigáng. Empresários do agronegócio vêm patrocinando templos de denominações religiosas pentecostais em terras indígenas para vencer a barreira espiritual que levantam rezadores e rezadoras contra a espoliação dos territórios. Os pastores acusam as autoridades espirituais de feitiçaria, semeando e alimentando desconfiança entre parentes.
O presidente anterior, abertamente anti-indígena, dizia que “os índios querem o mesmo que nós”, para estimular sua integração às cadeias mercantis com a promessa de enriquecimento.
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva, no dia da posse, 1º de janeiro de 2023, subiu a rampa do Palácio do Planalto para assumir a presidência acompanhado do cacique Raoni. A primeira medida que tomou foi a criação do Ministério dos Povos Indígenas, para o qual convocou a destacada liderança da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Sonia Guajajara. E entregou a direção da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) a outra liderança indígena, indicada pelas bases da APIB: Joenia Wapichana. Lula prometeu que demarcaria 14 Tis nos primeiros 100 dias de seu governo (o que não aconteceu).
Apesar de todos esses sinais, o presidente Lula vetou parcialmente o projeto de lei 2903, que vem tramitando no Congresso, independentemente da decisão do STF. O veto é parcial porque, ainda que rejeite o dispositivo do marco temporal, mantém 3 dispositivos que atentam contra a demarcação (reproduzo aqui os apontamentos da APIB):
– O Artigo 5º trata da participação efetiva de Estados e Municípios em todas as fases do procedimento de demarcação, o que pode protelar ainda mais, ad infinitum, as demarcações.
– O Artigo 26° regulamenta a cooperação entre indígenas e não indígenas para exploração de atividades econômicas e pode ampliar assédios de terceiros não indígenas sobre as TIs para fins de “cooperação” ou exploração econômica. O artigo atropela totalmente o direito de uso e usufruto exclusivo assegurado aos povos indígenas pela Constituição Federal de 1988.
– E o artigo 20° dispõe que o direito de usufruto exclusivo não pode se sobrepor ao interesse da política de defesa e soberania nacional. Esta decisão, além de perpetuar a doutrina de segurança nacional peculiar da ditadura militar, atenta contra o direito de autodeterminação – de autonomia – e de consulta livre prévia e informada dos povos indígenas, assegurado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), lei no país.
Esse veto parcial, cuja votação pelo poder legislativo está prevista para dia 23 de novembro, apresentado com o belo envoltório de rejeição ao marco temporal, introduz, escondidos em seu ventre, qual cavalo de Troia, esses 3 perigosos golpes contra os territórios e suas gentes.
A APIB denunciou, dia 10 de novembro, em comunicado [2], que o governo está usando esse veto parcial como moeda de troca na negociação política, dentro do Congresso, para conseguir aprovação de projetos de interesse do poder executivo, como é o caso da reforma tributária. Os povos se sentem usados por um governo que se apresentou como favorável aos indígenas, mas que prioriza os interesses das cadeias de exploração de commodities. Muitos povos já não confiam na sinceridade das promessas deste governo, nem acham que a demarcação de seus territórios compete ao Estado brasileiro. Estão, inclusive, demarcando as terras por conta própria. Longa vida aos povos!
[1] Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à união demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1o São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.]
§ 2o As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3o O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4o As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5o É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6o São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da união, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a união, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.
[2] Veja aqui o manifesto da APIB.
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Povos indígenas e “cavalo de Troia”. Artigo de Silvia Beatriz Adoue - Instituto Humanitas Unisinos - IHU