20 Novembro 2023
Se no passado a indústria da moda incentivou a caça e o comércio ilegal de animais silvestres, hoje busca caminhos para ser mais sustentável.
A reportagem é de Robson Delgado, publicada por ((o))eco, 13-11-2023.
Desde o século XVIII, peles de animais eram usadas para fazer vestimentas para a alta burguesia, pois simbolizavam prestígio e riqueza. Atualmente traduzida na técnica do animal print, as estampas da fauna ainda são tendência. Se hoje as peles verdadeiras já perderam espaço, no passado a moda já contribuiu para a matança de inúmeros animais.
A demanda crescente fez aumentar a busca por animais que tinham a melhor pele para fabricação de peças de vestuário. Um dos mais buscados foi a ariranha (Pteronura brasiliensis), que pertence à subfamília das lontras. Ela é considerada Em Perigo de extinção na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). Uma das principais ameaças que a levou para essa lista foi a caça para a comercialização de sua pele que ocorreu até os anos 80.
“A ariranha foi uma das espécies do século passado que foram exploradas para o comércio da pele para o mercado, que na época era ‘legal’, não existia nenhuma legislação que banisse o comércio de pele para ornamentação e casacos. Uma exploração que foi de grande escala. Só no Porto de Corumbá, município do Mato Grosso do Sul, foram registradas cerca de 12 mil peles, entre as décadas de 60 e início dos anos 70. Existem estudos na Bacia Amazônica de números passando dos milhares”, explica a pesquisadora Caroline Leuchtenberger, coordenadora do Projeto Ariranhas.
Segundo um estudo publicado em 2016 na revista Science Advances, cerca de 23 milhões de animais silvestres de ao menos 20 espécies foram mortos para suprir o consumo de couros e peles entre 1904 a 1969, nos estados de Rondônia, Acre, Roraima e Amazonas.
No caso da ariranha, a caça deixou de ser uma ameaça para a espécie, que ainda sofre, entretanto, com alterações no habitat e mudanças climáticas, pois ela depende de rios saudáveis para viver. “A Conferência Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Educação, Ciência e Cultura, que foi realizada em Paris, em 1972, para a convenção internacional, estabeleceu regras de espécies de animais que não podiam ser exploradas e a ariranha estava entre elas”, explica Leuchtenberger.
Bosque da Ciência, Ariranha no Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA). (Foto: Fabrícia de Sá | ((o))Eco)
Embora a proibição tenha surtido efeito, no caso da ariranha, o país ainda convive com o tráfico de animais silvestres para diversos fins, como, por exemplo, a feitura de artefatos com pele de onça. Dados do Ibama apontam que, em 2016, 80% dos animais vendidos ilegalmente no Brasil são de aves, para fins como: criação em cativeiro, comercialização das penas ou plumas entre outros. Em 2020, ((o))eco fez uma reportagem sobre o tráfico de animais silvestres, que tinha como o epicentro a região amazônica. Na época, as estimativas apontavam que cerca de 38 milhões de animais são afetadas anualmente pela caça e comércio ilegal no país. Na Amazônia (legal e internacional), o alvo principal é a onça-pintada. No início do ano de 2023, bolivianos foram presos pela comercialização de peças como carteiras, chapéus e cintos realizados com a pele do animal.
A proibição da caça e o regramento internacional sobre o comércio de pele salvou a ararinha. Do ponto de vista ambiental, entretanto, a moda não é nenhum herói. A indústria têxtil é a segunda que mais polui no mundo, atrás apenas da petrolífera.
Aos poucos, porém, com a mudança da percepção dos consumidores, uma moda mais sustentável vem criando espaço dentro do mercado, com o aumento de pessoas procurando brechós ou marcas que tenham uma visão de mundo mais “ecológica”. Afinal, a moda costuma ser de vanguarda e representar as críticas do seu tempo.
Ao contrário do “homem branco”, que o faz por questão cosmética, usar animais em vestimentas é parte de tradições milenares de alguns grupos indígenas. A caça para subsistência, seja para consumo ou cultura, é parte do cotidiano desses povos. Alguns grupos indígenas amazônicos, como os Tukanos, Baniwas e Piratapuias, usam cocares com pena de aves. Os Bororos do norte de Mato Grosso usam pele de onça para rituais funerários.
As leis para proteção dos animais silvestres são essenciais para que o tráfico acabe, porém, a lei ainda se esquece de como os povos indígenas estão perdendo seu espaço de manifestação cultural através de atividades de terceiros.
Naine Terena, comunicadora e artista, explica como as comunidades indígenas realizam suas atividades. “Nós, que somos pertencentes aos povos indígenas por gerações, praticamos atividades culturais e ritualísticas que usam animais, mas não é que vamos acabar com tudo. Por exemplo, no ritual de funeral do Povo Bororo, se usa uma pele de onça que é usada na ocasião de morte e feita de tempos em tempos, diferente da prática ilegal que visa o lucro”, conta a indígena.
Atualmente, várias práticas religiosas e culturais desapareceram por não poderem mais ser praticadas de forma tradicional.
A liderança indígena Paulo Apurinã é exemplo de um dos vários indígenas que já foram constrangidos por estar na posse de um artefato feito de animais silvestres. Ele foi preso por desacato ao entrar em um voo na cidade de Manaus com um cocar, barrado pelos policiais federais, que não aceitaram que ele entrasse com seu ornamento pessoal.
O Ibama adotou medidas para que situações similares parem de ocorrer. Para isso, foi criado o “Selo Ibama”, uma autorização realizada pela própria instituição para casos de ornamentos indígenas com peças de animais silvestres. Entretanto, essa discussão ainda é pauta para os povos originários, pois muitas lideranças acreditam que ter o Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (RANI) seria o suficiente.
Homem bororo em frente a um couro de onça pintada, parte do ritual funerário – 1973. (Foto: Sylvia Caiuby Novaes)
Por outro lado, as marcas indígenas estão ganhando cada vez mais espaço na indústria de vestuário. Com a missão de consumo e produção mais sustentável, que vão além de usar menos água em sua realização, elas usam técnicas que estão ligadas à ancestralidade de seus povos. A Sioduhi Studio, Yanciã e a Vanda Witoto são exemplos de empresas de pessoas amazônidas que querem ter uma produção mais ecológica. A manufatura das peças é pensada desde a sua criação, ainda no desenho, e feitas para satisfazer demandas menores, dentro do movimento do Slow Fashion, ou seja, uma moda mais devagar, que faz o contrário dos grandes conglomerados do segmento.
Sioduhi é o fundador da empresa que leva seu nome e é do povo Piratapuya, da cidade de São Gabriel da Cachoeira, localizada no interior do estado do Amazonas. Ele diz que sustentabilidade dentro da moda é mais uma forma de negócio. “A sustentabilidade é uma forma de pensar e modelo de negócio, a gente não pode falar que vive na amplitude do que é sustentabilidade, a gente pode ter produtos com aspectos sustentáveis, assuntos sustentáveis, mas isso não quer dizer que é uma sustentabilidade de fato, por que talvez quase ninguém possa alcançar isso”, critica. O fundador reforça ainda a importância de dar destaque à pauta ambiental para incentivá-la cada vez mais.
“A junção de ações, de aspectos dentro de um produto, cria um movimento em massa que acaba sensibilizando as pessoas das mudanças climáticas, questiona de onde vem aquele produto, quem fez, o que ele impacta”, ensina Sioduhi.
Uma das técnicas usadas para uma marca ser mais sustentável é o uso de tecidos certificados, a viscose, que é um tipo de tecido semissintético com matéria-prima de origem natural e renovável. Resultante da extração de fibras de celulose do núcleo de algumas árvores regenerativas, esses tecidos podem ser rastreados através de suas fibras, feitas de celulose das árvores. E através do DNA é possível garantir que ela é um tecido certificado como sustentável, ou seja, que veio de uma produção onde são plantadas árvores como pinheiro, bambu e eucalipto de forma orgânica, utilizando a menor quantidade de produtos químicos, e com o acompanhamento de ciclo de vida.
Sioduhi relata ainda que sua última coleção foi feita com 80% de tecidos certificados que vieram da Áustria. “Felizmente, por ser uma marca pequena, eu consigo acompanhar o processo de ponta a ponta e consigo ver que as produções estão sendo feitas de modo sustentável. A marca nasceu com esse pensamento por ser indígena, temos que pensar assim, pois é a nossa cosmovisão”, diz.
Costureiras da Sioduhi Studio preparando a nova coleção – 2023. (Foto: Robson Delgado | ((o))Eco)
O que muitos ainda não sabem é que produtos regenerativos fazem parte do modo de vida de muitos povos indígenas, sobretudo os povos da Amazônia. O tecido do tururi, que é uma fibra da palmeira ubuçu, é regenerativo, assim como o tucum, outra fibra que é usada para adereços, roupas, artesanatos e tantos outros objetos de origem da árvore do tucunzeiro. Porém, por se tratar de tradições indígenas, são apagadas pelo preconceito que ainda existe.
Elijane Nogueira, fundadora da marca Yanciã, critica a falta de reconhecimento das produções indígenas. “Hoje elas sofrem muito com a falta de reconhecimento. Em muitos momentos, pude observar que elas davam mais valor para produtos que vendem de forma mais eurocêntrica do que o próprio trabalho delas, elas precisam ser reconhecidas por locais”, afirma.
Elijane defende a existência de incentivos para que produtores locais trabalhem com certificação e, assim, tenham uma renda mais justa com seu trabalho. “Eu já vi muitas vezes mulheres entrando em mata fechada indo atrás de um tucum, uma semente e tantos outros produtos para fazer as peças e serem pagas de forma injusta”, denuncia.
Biojóias da marca – 2023. (Foto: Robson Delgado | ((o))Eco)
Prestes a lançar sua nova coleção na semana no Brasil Eco Fashion Week, marcada para ocorrer nos dias 7 a 9 de dezembro, em São Paulo, Sioduhi reclama da falta de investimento na indústria têxtil no Amazonas, seja ela de maneira sustentável ou a mais tradicional. Segundo ela, o incentivo ainda está muito voltado para os grandes polos no Rio de Janeiro e São Paulo, no Brasil, e fora do país. “Os tecidos certificados que uso vem da Áustria. Seria interessante ser da região fazendo pequenos produtores aprenderem a se destacar no mercado e ainda enfatizar a sustentabilidade. Temos produtos que são regenerativos, só basta ter incentivo, seja pelo governo ou por empresas privadas”, finaliza.
A ativista e liderança indígena Vanda Witoto, que vive em Manaus, defende a importância de dar destaque não só à maneira sustentável que essas marcas trabalham, mas como elas podem se unir na busca de inovação e descoberta da biodiversidade amazônica. “Nossas florestas são imensas e muito dela ainda é desconhecida, e o conhecimento indígena é tão vasto que se pode aprender muito mais, usar técnicas que são menos agressivas, que os povos indígenas que possuem esse conhecimento podem realmente fazer a diferença na sociedade”, diz.
As técnicas que são de conhecimentos milenares pelos povos indígenas podem fazer a diferença para se pensar em uma sociedade menos consumista e ecológica, desde coloração natural, uso de sementes, dentre tantas outras atividades.
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Um crime fora de moda e o futuro inspirado por indígenas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU