23 Novembro 2023
"Setor se diz vítima da mudança do clima e alega que quem desmata é algum sujeito indeterminado; no mercado de carbono, quer "trade" sem "cap", escreve Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima, uma rede formada por 56 organizações da sociedade civil. Tem graduações em Gestão Pública, Políticas Públicas e Direito Constitucional. Trabalhou por 13 anos no Greenpeace, onde coordenou a campanha da Amazônia, a agenda de clima e a área de políticas públicas da instituição. O artigo é publicado por Observatório do Clima, 22-11-2023.
No último dia 8, o presidente-executivo da Abiove, André Nassar, publicou no Broadcast Agro um artigo atacando o SEEG, o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima. Entre outras coisas, o texto acusa o OC de ter, de alguma forma, contribuído para a exclusão ao agronegócio do mercado regulado de carbono ao atribuir 75% (na verdade, 74%) das emissões do país aos sistemas alimentares. Ocorre que o estudo em referência só foi publicado após a exclusão do agro do projeto de lei que regulamenta o referido mercado – exclusão esta que ocorreu a pedido do próprio setor. Esse é um dos problemas técnicos e lógicos da missiva, dos quais trataremos adiante. Na raiz de todos eles está uma narrativa cada vez mais utilizada pelo agronegócio brasileiro: o setor não quer assumir as emissões de desmatamento.
Há 11 anos o SEEG publica anualmente, com cálculos feitos a partir de uma metodologia robusta e publicada numa das principais revistas científicas do mundo, as estimativas de emissão do Brasil. As análises do SEEG são tão sólidas que três estados brasileiros usam o sistema do OC para fazer os próprios inventários de emissões. Ano após ano, as contas do SEEG mostram que a devastação perdulária dos nossos biomas responde por cerca de metade das emissões brutas de gases de efeito estufa do país.
Agora, às vésperas da COP28, o agro decretou que não tem nada a ver com isso. Tem-se ouvido de figuras importantes do setor, dentro e fora do governo, que desmatamento e clima são coisas distintas; e que, se há alguém desmatando no país, esse alguém não é o agronegócio. A historinha é que a agropecuária só participaria do drama do clima global na condição de vítima.
Em 24 de outubro, 20 dias depois de o agro ter exigido – e ganho – sua exclusão do PL do mercado de carbono, o OC publicou um relatório calculando pela primeira vez as emissões totais dos sistemas alimentares do Brasil. A forma de fazer a conta é nova. Como Nassar aponta, ela de fato “rompe a fronteira” dos inventários de emissões ao considerar tudo o que é emitido nas fases de pré-produção agropecuária (mudança de uso da terra e produção de fertilizantes), produção (emissões diretas do rebanho, por exemplo) e pós-produção (transporte de alimentos e uso de energia do varejo, por exemplo). Os autores do SEEG aplicaram no Brasil um método desenvolvido pela FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura).
Embora a conta seja nova, a notícia é velha: o desmatamento responde pelo grosso do 1,8 bilhão de toneladas de CO2 equivalente emitidas pelos sistemas alimentares no Brasil, com 56,3% do total, seguido pelas emissões diretas da agropecuária, com 33,7%, energia, com 5,6%, e resíduos, com 4,2%.
Confrontado com a febre, o presidente da Abiove preferiu atirar no termômetro: Nassar se bate contra a “alocação” das emissões, em especial as de desmatamento, ao setor. Segundo ele, a metodologia de alocação usada pelo OC no SEEG levaria a uma “atribuição exagerada” da responsabilidade das commodities pelo desmatamento. O oposto é verdade: o método da alocação, que parte das emissões totais do país (calculadas pelos seguros métodos de inventários que o SEEG adota rigorosamente) para então atribuí-las a um conjunto específico (no caso, os sistemas alimentares), busca justamente evitar que as emissões sejam superestimadas ou subestimadas.
Um aparte aqui: o peso direto do agro no PIB do Brasil é de cerca de 7%. Só que o setor computa efeitos indiretos, como a venda de máquinas agrícolas, insumos e serviços para chegar ao número mais frequentemente usado de 25% de participação. Isso tem nome: alocação. Aceitar alocações para a composição do PIB do agro, mas rejeitá-las quando o assunto são emissões, tem outro nome: duplo padrão.
O corolário desse raciocínio é que, se não se deve atribuir ao agronegócio as emissões de desmatamento, é porque o agro não desmata. Se isso é verdade, alguém mais está desmatando – a menos que as árvores da Amazônia venham programadas para entrar em apoptose e depois em combustão espontânea. Mas quem seriam os responsáveis? E o que ocorre com essa área convertida?
Utilizando as matrizes de transição do MapBiomas, que olham o que aconteceu com cada quadrado de 30 metros por 30 metros do território brasileiro desde 1985, os autores do SEEG concluíram que, desde 1990, 92% das emissões por desmatamento ocorreram devido à formação de pastagens, e outros 5% à produção de soja. Decerto há muito desmatamento especulativo, feito para tomar posse de terras públicas e não para produzir. Só que o destinatário final da maior parte da área aberta por grileiros é um pecuarista. Não há, portanto, nenhum erro em alocar todas as emissões por mudança de uso da terra, atividade que se beneficia de pelo menos 97% delas, à agropecuária. Ao contrário, é obrigação de quem calcula emissões fazê-lo.
Mas, se o agro não tem nada a ver com quem desmata, fica aqui então um desafio para o setor: aprovar um projeto de lei aumentando a punição aos crimes por desmatamento, ou outro para punir de forma rigorosa e definitiva o crime de grilagem de terras, que afinal tanto lhe prejudica a imagem.
No mundo real, infelizmente, o que se vê é o contrário: representantes do agro no Congresso estão neste momento em campanha para aprovar uma anistia potencialmente eterna à grilagem de terras no país e avançando sobre os direitos e territórios indígenas, estes os verdadeiros guardiões das florestas. Pior ainda, a julgar pela sugestão de André Nassar sobre o mercado de carbono, o setor quer ganhar dinheiro vendendo créditos de carbono, mas não quer reportar e muito menos limitar suas emissões. No sistema de “cap and trade”, o agro quer o “trade”, mas não o “cap”.
A agropecuária brasileira é melhor que isso. É um setor que obteve ganhos imensos de produtividade com uso de tecnologia e que há dez anos pratica o maior programa de agricultura tropical de baixa emissão do mundo, com sequestro líquido de carbono em solos bem manejados (como o SEEG mostra há oito anos). Faria melhor o setor para si, para o país e o planeta se encarasse seus problemas – todos solucionáveis – de frente em vez de tentar se esconder atrás de contorcionismo retórico ou negacionismo.
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O agro quer empurrar a conta do clima (para você). Artigo de Marcio Astrini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU