14 Novembro 2023
"Percebe-se que a ruptura da Teologia com relação aos dilemas da vida cotidiana contribuiu para a formação do pensamento teológico de Castillo, daí a sua preocupação com o tema da questão de Deus (deus da metafísica), das grafias excludentes e violentas do divino, da sobreposição da religião em relação ao Evangelho e da necessidade de pensar Deus de outra maneira, radicado na humanização de Deus, na Encarnação do Verbo, pelo viés do minimamente humano".
O artigo é de Glaucio Alberto Faria de Souza, Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), Professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e na Faculdade de Filosofia e Teologia Paulo VI – Mogi das Cruzes – SP.
A produção intelectual de José Maria Castillo demonstra o esforço de aproximar a teologia à complexa realidade histórica atual. Nela pode-se perceber uma profunda relação entre o seu pensamento científico entrelaçado aos aspectos da sua vida cotidiana. Antes de concluir meu doutorado intitulado A humanização de Deus como paradigma cristológico no pensamento de José Maria Castillo, tive a oportunidade de conviver com Pepe por alguns dias, e nestes dias, aquilo que aprendi por meio dos livros teve um outro sabor. Pois, percebi que o tema da humanização esteve sempre presente em sua vida não somente com relação à Deus, mas também a de cada um de nós.
Em nossas longas conversas diárias, o cotidiano e a teologia se encontravam, não restando nenhuma dúvida que a vida em sua integralidade sempre ocupou o primeiro lugar. Diante desta realidade foi fácil perceber que a sua teologia era como ato segundo, ou seja, ela tinha como ponto de partida a sua experiência existencial profunda. Por isso, ressalto que essa vivência não é mero detalhe; Castillo a deixou impressa na forma de expressar seu pensamento e na maneira como lidava com as questões que instigava o seu coração e seu intelecto de teólogo, não podendo ser confundido com sistemas racionais abstratos.
No entanto, o certo é que a cada dia tenho mais entusiasmo, mais esperança e também mais vontade de fazer algo (por pouco que seja) para que haja menos sofrimento neste mundo. E que, não só para aliviar (de alguma forma, pelo menos) aqueles que passam os piores momentos da vida, mas também porque, se acredito e acredito em Jesus e na sua mensagem, não entendo nem posso entender de outra maneira o que é fazer teologia. (BOSCH, 1999, p. 195-196).
Este texto têm a intenção de ser uma singela homenagem ao Pepe, ele pretende ser simples como toda a sua vida. Castillo nasceu em 16 de agosto de 1929 em Puebla de Don Fadrique, província de Granada, Espanha. Em seu livro Memórias, ele compartilhou uma das experiências mais marcantes de sua vida. Numa manhã, na escola, após ouvir uma explicação religiosa sobre a Santíssima Trindade, o jovem Castillo indagou a sua mãe sobre Deus ser um ou três? E a mãe lhe respondeu: “José, isso não se pensa.” (CASTILLO, 2021, p. 19). Pepe relacionou esse fato da sua época de criança com a sua percepção de que os ensinamentos religiosos de estilo eclesiástico estão baseados num conjunto de proibições, que não se limitam somente às atitudes e desejos dos seres humanos, mas que vão além, com interesse de formatar aquilo que se pode ou não pensar (CASTILLO, 2021, p. 21).
Outro aspecto importante de sua infância é o fato de ele ter vivido duas guerras – a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A vida em condições de conflito apresentava uma série de dificuldades, mas essa realidade, segundo Castillo, não foi forte o suficiente para endurecer seu coração: “Por isso que, certamente, em minha vida os sentimentos dominaram mais do que as ideias e os interesses e me mantiveram firme na retidão ética que possibilitava a ilusão de sempre: espalhar paz, calma e felicidade.” (CASTILLO, 2021, p. 23). Neste tipo de ambiente, onde as carências humanas gritam, a bondade deve antepor-se à razão.
De fato, a responsabilidade me fez viver atento, não só à realidade do que acontecia na sociedade e em meu ambiente, mas também às razões que poderiam explicar por que a sociedade e a convivência aconteceram como pude perceber. Por outro lado, a liberdade sempre me motivou a não me calar. (CASTILLO, 2021, p. 51).
Com relação a sua formação teológica, o teólogo granadino prontamente percebeu um distanciamento entre a espiritualidade e a vida, uma separação do humano e do divino, caracterizada pela precedência do divino sobre o humano. Outro aspecto importante para a edificação da sua teologia foi o fato de estar em Roma, mais precisamente na residência dos jesuítas, no período de preparação do Concílio Vaticano II. A proximidade da sua residência à universidade possibilitou uma intensa relação com os vários teólogos que trabalhavam no Concílio, entre eles, Rahner, Congar, Chenu, Daniélou, Schillebeeckx (Castillo 2021, p. 58). A união do ambiente conciliar e a inclinação de Castillo pelas questões humanas motivaram a escolha de uma tese doutoral relevante para a Igreja e a sociedade.
Castillo estava convicto que a abstração teológica era incapaz de responder as demandas do tempo moderno. Sua tese doutoral, defendida em 1964, teve como tema A afetividade nos exercícios segundo Francisco Suárez. Segundo Castillo, a preferência por Suárez se deu pelo fato de que esse teólogo lhe ajudou na compreensão dos exercícios de Inácio de Loyola, nos quais se tem claro que a afetividade humana decide mais a nossa forma de viver do que a razão. Em nossas conversas na Itália, Pepe enfatizava a força do sensível na edificação de uma linguagem capaz de tornar a teologia companheira dos nossos contemporâneos.
Porque, em última análise, afeto é paixão. O que nos apaixona é o que determina o que fazemos ou não fazemos; o que gostamos ou o que não apoiamos. Em suma, o que nos apaixona delimita e decide o que é a nossa vida ou como é a nossa conduta. Cada um é, portanto, aquilo pelo qual se apaixona. O afeto ou afetividade é a força que decide e manda em nossa vida. (CASTILLO, 2021, p. 59-60).
Após a conclusão dos estudos em Roma, ele voltou à Espanha assumindo por três anos o posto de orientador espiritual dos jovens jesuítas, estudantes de humanidades, na cidade de Córdoba (1964). Segundo Bosch (1999, p. 182), esses anos em Córdoba promoveram uma profunda mudança no itinerário teológico de Castillo, pois a convivência baseada na amizade e na fraternidade resultou em dois elementos importantes: o compartilhamento das questões humanas, que segundo o próprio Castillo (2021, p. 64) lhe “[...] ensinou que é o fator mais determinante na forma de pensar, nas perguntas que nos fazemos e nas soluções que absorvemos, não em livros ou em teorias, mas nos laços profundos que mantemos com os seres humanos.”
Após a experiência como formador em Córdoba, Castillo regressou à Faculdade de Teologia de Granada (1967), agora na posição de professor em alguns cursos sobre espiritualidade. Segundo ele, esse período foi fundamental no seu itinerário teológico, sedimentando a sua intuição de que a falta de proximidade e interação com a realidade do povo é um problema hermenêutico grave da teologia. O ambiente social do final dos anos sessenta e início dos setenta proporcionou uma série de novos temas para o pensamento teológico de Castillo. Neste ambiente plural iniciou sua carreira docente, reforçando sua percepção do descompasso entre a teologia e o mundo novo que se abria.
[...] toda a formação teológica instituída na Igreja teve um problema que não foi resolvido e continua sem solução: atribuiu-se mais importância à ortodoxia do Magistério eclesiástico do que à prática do Evangelho de Jesus. Isso significa que o fator central e determinante na Igreja é o clero. Os fiéis cristãos são os "clientes" daqueles que governam, os clérigos. (CASTILLO, 2021, p. 72, tradução nossa).
Esse descompasso tornou-se um assunto de extrema importância na vida e pensamento de Castillo. Ele ressalta o real desejo de fazer teologia junto à fé da Igreja, em linha com os ensinamentos contidos na Tradição, em conformidade com a Constituição Dogmática Dei Filius, mais precisamente na terceira sessão sobre a fé católica (DZ 3011). No entender de Castillo, aquilo que não se enquadra como verdade de fé aos moldes da Constituição Dogmática citada acima poderá ser trabalhado como uma proposição teológica aberta a diversas apreciações. A pluralidade teológica defendida pelo teólogo espanhol o conduz à percepção de que as teologias que defendem os mais necessitados e marginalizados devem ser respeitadas, promovidas e ensinadas (CASTILLO, 2021, p. 74).
A atividade teológica de Castillo não ficou restrita à docência acadêmica. Ele expandiu sua reflexão junto aos grupos populares, naquilo que ele mesmo nomeou como teologia popular. O labor teológico, neste ambiente popular, evidencia a sua escolha epistemológica de caráter narrativo, pelo qual se busca relacionar a vida pulsante do texto com a vida de cada participante desses encontros. “Os cristãos de verdade são as pessoas que querem viver de acordo com o que Jesus ensinou com a sua vida e com as suas palavras, considerando ainda que, para ser bons cristãos, temos de ser bons cidadãos.” (CASTILLO, 2016a, p. 13).
Em forma de síntese, a teologia popular prioriza os Evangelhos, os ensinamentos de Jesus, os relatos e a sua expressão narrativa que, por sua vez, tocam sensivelmente seus ouvintes, quebrando qualquer distanciamento e abrindo novos horizontes: “Sinceramente, me parece que a linguagem (e os conteúdos) que tratam com frequência a teologia não está ao alcance da maioria das pessoas.” (CASTILLO, 2021, p. 128, tradução nossa). A teologia popular ou teologia para o povo é uma reflexão da fé que confronta as necessidades e as preocupações das pessoas. Portanto, ela é urgente na Igreja em razão da manutenção de uma teologia clerical e abstrata, que propicia a defesa de privilégios e interesses não evangélicos e a divisão da história em sagrada e profana.
Percebe-se que a ruptura da Teologia com relação aos dilemas da vida cotidiana contribuiu para a formação do pensamento teológico de Castillo, daí a sua preocupação com o tema da questão de Deus (deus da metafísica), das grafias excludentes e violentas do divino, da sobreposição da religião em relação ao Evangelho e da necessidade de pensar Deus de outra maneira, radicado na humanização de Deus, na Encarnação do Verbo, pelo viés do minimamente humano.
Agradeço a Deus pela vida de José Maria Castillo (Pepe) e pelo seu trabalho, pois por meio da sua vida e reflexão compreendi que a boa teologia parte de um olhar atento, humilde e sereno, radicado na fé e nos Evangelhos, e que a vida precede o fazer teológico não prescindir do cheiro do povo e das suas vivências.
BOSCH, Juan (ed.). Panorama de la Teología Española: Cuando vida y pensamiento son inseparables. Pamplona: Editorial Verbo Divino, 1999.
CASTILLO, José M. Memorias, vida y pensamiento. Bilbao: Desclée De Brouwer, 2021.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
José Maria Castillo: a teologia como ato segundo. Artigo de Glaucio Alberto Faria de Souza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU