Estes são dias muito sombrios para todas as pessoas, cidadãos e fiéis que estão minimamente conscientes do que está acontecendo e do que isso significa para as várias Igrejas e religiões. Haverá tempo para estudar e refletir sobre as realizações desta primeira sessão da assembleia do Sínodo sobre a Sinodalidade. Mas, por enquanto, é importante fazer um balanço da situação global para dar uma medida adequada aos nossos debates intracatólicos.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, em artigo publicado por La Croix International, 02-11-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Concílios e sínodos da Igreja Católica frequentemente ocorreram durante tempos de guerra. O Concílio de Trento (1545-1563) deveria ter começado em 1542, mas foi adiado em alguns anos devido à guerra entre o imperador romano Carlos V e Francisco I da França. Depois, foi suspenso em 1552, devido às guerras entre o império e os príncipes protestantes.
O Concílio Vaticano (ou Vaticano I) foi convocado para suas sessões no dia 8 de dezembro de 1869. Mas foi suspenso indefinidamente em 20 de outubro de 1870, um mês depois que o recém-criado Reino da Itália capturou Roma e os Estados Papais às margens do Guerra Franco-Prussiana. A emergência do regime fascista na Itália foi uma das razões que alertaram contra a reconvocação do Concílio em meados dos anos 1920. O Vaticano I nunca foi oficialmente encerrado até 1960, pouco depois de João XXIII anunciar seus planos de realizar o Concílio Vaticano II (1962-1965).
Na intersecção entre a história dos concílios/sínodos e dos conflitos armados desde os primeiros séculos até ao período moderno, a Igreja e o papado frequentemente estiveram no centro desses conflitos – não como espectadores ou mediadores, mas como parte nas disputas.
Uma das expectativas do Vaticano II e da teologia conciliar era de que, após 15 séculos de cristandade europeia (quando o cristianismo reinou ou prevaleceu em todos os aspectos da vida), a chegada da era pós-constantiniana e a autorredefinição da Igreja como uma humilde serva acolheriam com satisfação uma ordem nova e mais pacífica.
Por meio da “Mensagem à humanidade”, emitida em 20 de outubro de 1962, os bispos presentes no Vaticano II prometeram “servir” aos outros, “seguindo o exemplo do Divino Mestre, que ‘não veio para ser servido, mas para servir’ [...] restabelecendo a paz com o sangue de sua cruz”. A mesma mensagem expressava uma representação-chave de si mesma: “Esta nossa assembleia conciliar, admirável pela diversidade de raças, nações e línguas, não é talvez testemunho de uma comunidade unida pelo amor fraterno, do qual resplandece como sinal visível?”.
A primeira sessão da assembleia do Sínodo sobre a Sinodalidade tentou ser tão sinal visível. Mas foi uma assembleia muda. Em tempos de redes sociais, parecia um filme mudo. Foi realizada a portas fechadas, protegida da mídia e, mais ainda, de suas divisões internas. Aconteceu à sombra do caso Marko Rupnik e das investigações nacionais em curso sobre a crise dos abusos.
Pouco antes da convocação da assembleia sinodal, houve uma reportagem da Suíça e a transmissão da série “Godvergeten” (Esquecidos por Deus) pela rede pública de televisão de língua holandesa na Bélgica. E, durante a última semana da assembleia, foi divulgado um relatório independente sobre o abuso sexual do clero na Espanha. Havia também divisões visíveis entre os católicos de todo o mundo relativas às guerras entre a Rússia e a Ucrânia e entre Israel e o Hamas.
Tudo isso apresentava um quadro muito diferente, em uma total diferença em relação ao estado de espírito do Concílio Vaticano II, que ocorreu no auge da Guerra Fria entre o mundo comunista (na Ásia oriental, na União Soviética, na Europa oriental e em Cuba) e o “mundo livre” liderado pelos Estados Unidos. Mas o Vaticano II se abriu e se fechou com sinais de pacificação: desde as intervenções de João XXIII em outubro de 1962 durante a crise dos mísseis em Cuba até à visita de Paulo VI às Nações Unidas em outubro de 1965, em Nova York, onde proferiu seu agora famoso discurso: “Jamais plus la guerre, jamais plus la guerre” – guerra nunca mais.
Em janeiro de 1964 – entre a segunda e a terceira sessões do Vaticano II – Paulo VI tornou-se o primeiro papa a viajar para a “Terra Santa” (ele nunca pronunciou a palavra “Israel” naqueles primeiros tempos de relações católico-judaicas e Vaticano-Israel). Onze meses depois – em dezembro de 1964 – viajou para Bombaim, naquela que era então uma Índia moderna, democrática e aberta à diversidade religiosa.
O Vaticano II também ajudou a lançar uma nova fase no engajamento diplomático da Santa Sé com a URSS e os Estados comunistas na Europa oriental, a Ostpolitik do Vaticano, em paralelo com a Ostpolitik da República Federal da Alemanha.
O Sínodo sobre a Sinodalidade ocupa uma posição muito diferente na história global. A invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022 lançou uma sombra sobre as consultas sinodais às bases na Europa, especialmente na fase continental em Praga em fevereiro de 2023.
Mais ainda, a primeira sessão da assembleia do Sínodo coincidiu de forma ameaçadora com o início da guerra entre Israel e Hamas. Na madrugada do dia 7 de outubro – no fim da primeira semana da assembleia, após um retiro de três dias liderado pelo renomado pregador e teólogo dominicano Timothy Radcliffe – o Hamas lançou seu ataque semelhante a um pogrom contra Israel, matando selvagemente 1.400 soldados e civis israelenses (homens, mulheres e crianças) e raptando mais de 200 outros (muitos deles conacionais de outros países).
Entre os dias 28 e 29 de outubro, bem no fim do Sínodo, as forças armadas israelenses expandiram suas operações na Faixa de Gaza, após três semanas de bombardeios ferozes que faziam pouca distinção entre membros do Hamas e palestinos.
No meio de tudo isso, o antissemitismo está novamente em ascensão, tanto em sua versão mais crua quanto em sua sofisticação intelectual. A narrativa neoconservadora dos anos 1990 sobre o “choque de civilizações” parece hoje contida à luz das divisões no mundo ocidental.
O Papa Francisco articulou o estado de espírito particular da Igreja nestes dias no dia 27 de outubro, na Basílica de São Pedro, durante a oração do Rosário e da Adoração Eucarística na conclusão do Dia de Oração, Jejum e Penitência pelo Oriente Médio e muitos outros lugares do mundo dilacerado pelas guerras. “É uma hora escura”, disse ele em uma súplica à Virgem Maria. “Esta é uma hora escura, mãe.”
Como cristãos católicos, sentimo-nos impotentes ao assistir à destruição mútua e à autodestruição dos dois irmãos mais próximos da família abraâmica. Sou um “Eighty-niner”, um daqueles que vieram ao mundo, como cidadão do mundo, mas também como membro ativo da Igreja, em 1989, quando era aluno do primeiro ano da Universidade de Bolonha.
O Muro de Berlim caiu no dia 9 de novembro daquele ano, e o mundo parecia não estar mais dividido por fronteiras, especialmente na Europa. Parecia que os efeitos da longa onda do Vaticano II tinham finalmente chegado: liberdade religiosa, dignidade de todas as pessoas, fraternidade humana na única família das nações. O papa polonês, João Paulo II, colocou a Igreja naquele que hoje é imprudentemente chamado de “o lado certo da história” (apenas para ser obscurecido por essa vitória ao lidar com as Igrejas da teologia da libertação na América Latina).
Meus anos 1990 passaram num piscar de olhos. Eu estava pedindo carona na Síria poucas semanas antes dos ataques do 11 de setembro nos Estados Unidos, e parecia o fim do mundo. Olhando para trás agora, aquele dia parece ter sido apenas um prólogo ou uma sequência, dependendo de onde você estava destinado a nascer. De fato, em certos países, o terror do 11 de setembro ocorre quase todos os dias.
Estes são dias muito sombrios para todas as pessoas, cidadãos e fiéis que estão minimamente conscientes do que está acontecendo e do que isso significa para as várias Igrejas e religiões. Haverá tempo para estudar e refletir sobre as realizações desta primeira sessão da assembleia do Sínodo sobre a Sinodalidade. Mas, por enquanto, é importante fazer um balanço da situação global para dar uma medida adequada aos nossos debates intracatólicos.
O Vaticano II – apesar de toda sua ingenuidade e hipocrisias demasiadamente humanas – pôde se beneficiar de um movimento global que apontava para um ideal de unidade e comunhão na única família humana. O Sínodo sobre a Sinodalidade não tem esse luxo, nem a Igreja Católica como um todo. Não faz diferença se você tem fé neste Sínodo ou não. O evangelista Lucas nos diz que Jesus “tomou a firme decisão” de ir a Jerusalém (Lucas 9,51). O verbo grego significa “fortalecer”, mas também “endurecer”. De fato, este é o momento de nos prepararmos para um tipo de viagem que é diferente do Vaticano II.
“Este é um momento de espera ativa”, disse Timothy Radcliffe aos participantes do Sínodo durante uma reflexão espiritual que proferiu no início da 16ª congregação geral da assembleia.
Depois, repetiu estas palavras de Simone Weil, que ele citou durante o retiro pré-sinodal:
“Não obtemos os dons mais preciosos indo em busca deles, mas esperando por eles (...). Essa forma de esperar (e) olhar é, em primeiro lugar, atenta. A alma esvazia-se de seus próprios conteúdos a fim de receber o ser humano ao qual olha, tal como ele ou ela é, em toda a sua verdade.”