A Opção Francisco e a reforma da Igreja. Desafios e perspectivas. Conferência de Massimo Faggioli

Foto: Vatican Media

Por: A transcrição e a tradução são de Isaque Gomes Correa | 23 Outubro 2023

Massimo Faggioli proferiu a videoconferência intitulada “A Opção Francisco e a reforma da Igreja. Desafios e perspectivas”, em 10-08-2023, dentro da programação do Ciclo de Estudos “A Opção Francisco. A Igreja e a mudança epocal”, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU com o apoio dos PPGs em Filosofia e História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos e com o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul – FAPERGS.

Massimo Faggioli (Foto: FotoX)

Doutor em História da Religião e professor de Teologia e Estudos Religiosos da Villanova University, na Filadélfia, Faggioli é editor colaborador da revista Commonweal. De sua autoria, destacam-se os seguintes livros: Vaticano II: a luta pelo sentido (Paulinas, 2013), True Reform: Liturgy and Ecclesiology in Sacrosanctum Concilium (Liturgical Press, 2012) e Historia y evolución de los movimientos católicos: de León XIII a Benedicto XVI (PPC Editorial, 2011).

Na sequência de sua palestra, houve um debate com a participação dos ouvintes. As perguntas e respostas constam no fim desta publicação.

Eis a conferência.

Há alguns anos eu estive no Instituto Humanitas Unisinos – IHU em pessoa, por duas vezes. Me considero um amigo do IHU, da Susana e de todos vocês. Não lembro quantas vezes participei virtualmente, mas é sempre uma oportunidade muito boa para mim continuar pensando sobre estes temas, especialmente o pontificado do Papa Francisco. A minha relação com a Unisinos começou e coincidiu basicamente com esses dez anos de pontificado do Papa Francisco.

Falarei da contribuição do Papa Francisco para a reforma da Igreja, seus desafios e perspectivas, e creio que o ponto de partida deve ser que há pouco completou-se o décimo aniversário de sua eleição. Já se passaram quase dez anos e meio do pontificado de Francisco. Esse fato não é algo que devemos ignorar, pois lembramos que, no início do pontificado, este papa disse que achava que seu pontificado seria curto, de quatro ou cinco anos. Em vez disso, já estamos além da marca dos dez anos. Também porque houve pontificados muito importantes na história recente que não alcançaram esse marco temporal, nem João XXIII, nem o Papa Bento XVI. Portanto, temos um pontificado diferente dos anteriores, também por causa disso.

Eu acredito, e esta é a tese principal que tenho sobre este pontificado, que a mudança incontestável que o Papa Francisco trouxe à Igreja é que ele é, em certo sentido, o primeiro papa global, o primeiro papa que não vem da Europa ou do Mediterrâneo, embora tenha raízes italianas muito fortes. Ele realmente reorientou todo o discurso católico, o ensinamento papal, o estilo de governo, as principais escolhas em direção à dimensão mundial da Igreja, que é um passo em direção a um caminho mais universal da Igreja Católica. Global e católico significam coisas ligeiramente diferentes, mas penso que a virada em direção à Igreja global faz parte, realmente, de um processo em direção a uma maior catolicidade da Igreja Católica.

Portanto, quando olhamos para os últimos dez anos, devemos começar pela observação de alguns fatos que expressam algo de sua visão de reforma da Igreja. Não listarei as encíclicas e exortações, mas acho que há fatos importantes que devem ser mencionados. Primeiro, as assembleias gerais do Sínodo dos Bispos, começando com as duas sessões, em 2014-2015 sobre família; em 2018 sobre a juventude; em 2019 sobre a região amazônica, e com a convocação deste sínodo muito especial que faz parte do processo social começado em 2021, com duas assembleias planejadas para outubro de 2023 e outubro de 2024. Acredito que este é o primeiro fato, porque a reforma do Papa Francisco, começando com o ensino da Igreja ou com sua abordagem de algumas questões – família e casamento, p. ex. – passa por esses novos tipos de sínodos. É formalmente a mesma instituição que foi criada por Paulo VI em 1965 e que foi celebrada por todos os papas desde então. Porém, com Francisco, temos um tipo diverso de Sínodo, ligeiramente diferente até 2019. Em termos de membresia, é ligeiramente diferente, mas em relação ao estilo e ao espírito de celebração a diferença é acentuada.

Em segundo lugar, acredito que o Papa Francisco frequentes vezes é subestimado como legislador. No entanto, ele legislou bastante. Ele emitiu um grande número de motu proprio, estas normativas eclesiásticas que o papa, como legislador-chefe, tem o poder de promulgar. Nesse sentido, ele publicou um número muito elevado na comparação com seus antecessores. Houve mudanças importantes nos livros que contêm os ensinamentos da Igreja e naquele que dispões suas leis. Uma delas é a mudança no Catecismo [da Igreja Católica] sobre a pena de morte em 2018; a alteração no Livro VI do Código de Direito Canônico em reação à crise de abuso sexual; a criação da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores em 2014, que não existia antes; e a cúpula no Vaticano sobre a crise de abusos em 2019. O mais importante nestes últimos 18 meses foi a constituição apostólica para a reforma da Cúria Romana, Praedicate Evangelium, que é, em qualquer pontificado, um marco importante nos planos de reforma. Isso é algo sobre o qual o Papa Francisco e o Conselho de Cardeais, criado por ele em abril de 2013, falaram por cerca de nove anos, entre 2013 e março de 2022, quando a constituição apostólica foi publicada.

Do ponto de vista internacional, houve uma atenção muito maior ao Sul global, especialmente à Ásia. Houve o acordo diplomático histórico de setembro de 2018 com a República Popular da China, renovado em setembro de 2020 e, depois, em outubro de 2022. É um acordo muito polêmico, mas certamente algo que o Papa Francisco assinou, sabendo que é uma iniciativa que os antecessores, começando com João Paulo II, trabalharam para conseguir: um acordo diplomático com a China sobre as nomeações episcopais, que reconhece de uma nova maneira a presença dos católicos no país como membros de uma única Igreja Católica, não mais dividida entre a chamada Igreja clandestina e a Igreja patriótica. Houve importantes iniciativas de diálogo em termos de viagens, gestos e encontros com o Islã, tanto com o Islã sunita (especialmente com a Mesquita de Al-Azhar no Cairo, Egito) quanto com muçulmanos xiitas (especialmente quando viajou para o Iraque em 2021).

Com bastante ousadia, Francisco implementou uma nova política em relação aos novos movimentos leigos ou movimentos neoeclesiais, o que gerou ansiedade nesses grupos; tivemos um exemplo recente com a nova lei que rege o Opus Dei. Estamos diante de uma mudança importante em comparação especialmente com João Paulo II, que deu ao Opus Dei o status de prelazia, agora redefinida drasticamente pelo Papa Francisco. A visão de reforma deste papa fica clara em sua insistência no tema do clericalismo e da sinodalidade. Não vimos apenas palavras ou retóricas vazias, mas ações muito importantes. Uma delas foi interromper as duas investigações contra as religiosas dos Estados Unidos lançadas durante o pontificado de Bento XVI. Essas investigações, hostis ao principal grupo de freiras americanas, foram interrompidas no início do atual pontificado, em dezembro de 2014. Ele convocou duas comissões de estudo sobre o diaconato das mulheres, cujo resultado ainda não está claro, mas obviamente é algo que não ocorrera antes.

Algo relevante é que Francisco decidiu desacelerar e, depois, interromper as negociações entre o Vaticano e o principal grupo de católicos tradicionalistas, a Fraternidade Sacerdotal de São Pio X, que tomou medidas cismáticas para se separar da comunhão com a Santa Sé, por rejeitarem o Concílio Vaticano II. O que tinha acontecido, especialmente no pontificado de Bento XVI, foi uma negociação entre o Vaticano e uma comissão especial dentro da Congregação para a Doutrina da Fé, a Pontifícia Comissão “Ecclesia Dei”. Foi uma negociação sobre o que era possível para fazê-los retornar à Igreja Católica, em comunhão com o papa, de alguma forma marginalizando ou reduzindo o significado do Concílio Vaticano II no magistério. O Papa Francisco interrompeu tudo isso ao ponto de desmantelar a Comissão “Ecclesia Dei”, que estava alojada dentro da Congregação para a Doutrina da Fé, o antigo Santo Ofício. Essa comissão foi desmontada. Francisco disse muito claramente que há um debate fraterno em andamento com os tradicionalistas, mas não há mais negociação sobre a importância do Concílio Vaticano II no ensino católico. Isso foi muito importante, deixou bem claro o que este pontificado representa.

O Papa Francisco abordou a questão da reforma da Igreja de maneiras que não são apenas internas, não apenas intraecclesiais, mas começaram imediatamente como algo que se tornou notícia e popular. Devemos lembrar que, em 2013, o Papa Francisco foi nomeado Pessoa do Ano pela revista Time; ele apareceu na capa de muitas revistas populares, incluindo a Rolling Stone; concedeu inúmeras entrevistas; pelo menos dois filmes biográficos sobre ele foram feitos, e muitos documentários. Francisco virou um ícone do que o catolicismo tenta ser, com as declarações mais importantes na imprensa proferidas por ele, começando muito cedo em seu pontificado, já em julho de 2013 na coletiva de imprensa a bordo do avião que o trazia de volta do Brasil, onde havia ido participar da Jornada Mundial da Juventude (JMJ). A frase mais famosa feita pelo papa foi: “Se uma pessoa é gay e busca o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?” Esta foi a mais importante.

Mas logo depois, ele deu outras declarações. Por exemplo, a entrevista mais relevante que ele concedeu ao editor da revista jesuíta La Civiltà Cattolica, Antonio Spadaro, em setembro de 2013, quando falou: “Não podemos insistir somente em questões relacionadas a aborto, casamento gay e uso de métodos contraceptivos. Isso não é possível. Não tenho falado muito sobre essas coisas, e eu fui repreendido por isso. Mas, quando nós falamos sobre essas coisas, temos de falar delas em um contexto. O ensinamento da Igreja, nessa questão, é claro e eu sou um filho da Igreja, mas não é necessário falar todo o tempo desses assuntos. A proclamação em estilo missionário se concentra no essencial, no necessário: é isso também que fascina e atrai mais, o que faz o coração queimar, como aconteceu com os discípulos em Emaús”. Isto foi notícia e chocante para muitos católicos, porque o Papa Francisco disse que a Igreja não pode falar a todo instante sobre moral sexual e assim por diante. Não é desse jeito que a missão funciona.

Por fim, uma terceira declaração dada pelo pontífice em fevereiro de 2016 na coletiva de imprensa a bordo de seu avião de volta do México, quando lhe perguntaram sobre o então candidato à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump, e seus planos de construção de um muro na fronteira com o México. Francisco respondeu: “Uma pessoa que só pensa em construir muros, onde quer que estejam, e não constrói pontes não é cristã. Isso não está no Evangelho”. Lembremos das consequências desta fala para a relação complicada entre o Papa Francisco, não apenas com Donald Trump pessoalmente, mas também com certos setores do catolicismo e do protestantismo americanos e dos Estados Unidos em geral.

Aqui, listei uma série de fatos e acredito que, ao falarmos do Papa Francisco, da Igreja, da reforma, devemos pensar em termos históricos. Como historiador, busco ver diferentes fases, então aqui acredito que temos os primeiros cinco anos que foram um momento de aceleração do pontificado do Papa Francisco. Entre o início com “quem sou eu para julgar?”, as primeiras entrevistas, até 2019, até cinco ou seis anos de pontificado (até o fim de 2019), o Sínodo para a região amazônica; é quando ocorrem alguns passos em direção a mudanças profundas no magistério da Igreja. Nestes primeiros cinco ou seis anos, vimos uma variedade de reações e consequências, inclusive reações muito viscerais e violentas contra o Papa Francisco.

Acredito que depois há um segundo período de cinco anos, que começa e se sobrepõe ao fim da primeira fase. A meu ver, são cinco anos que representam um momento de decantação ou estabilização da situação eclesial, também em termos de política eclesiástica. Em 2018, há a terceira fase da crise de abuso sexual na Igreja, que realmente atinge duramente o pontificado de Francisco. Quero dizer, desde a visita ao Chile, ao então cardeal Theodore McCarrick, à Alemanha. Há, claro, a pandemia de covid-19 e um agravamento da situação internacional. A ordem mundial fica cada vez mais caótica. E acredito que este segundo período de cinco anos de reflexão e consideração termina no fim de 2022, início de 2023, também devido à morte do Papa Bento XVI, que não libera pessoalmente o Papa Francisco, mas libera outras energias na Igreja, o que foi um momento extraordinário na história do papado: um papa eleito que coabita, vive basicamente junto no Vaticano. Um papa emérito, que renunciou, é extraordinário. Isso chega ao fim.

Acredito também que existe a chance de vermos, neste pontificado, uma terceira fase, que começa com o Sínodo de outubro de 2023 e que poderá abrir um segundo momento de aceleração. É algo que talvez tenhamos visto nas últimas semanas ou nos últimos meses, nas escolhas do Papa Francisco de novos cardeais a serem criados no consistório no fim de setembro em Roma. Claro, a inauguração do Sínodo, a nomeação do novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, com Dom Víctor Manuel Fernández, um dos cardeais que receberão o barrete vermelho em Roma no fim de setembro. Estamos diante de uma mudança significativa, porque mais de 40 anos de Ratzinger e da linhagem de Ratzinger chegam ao fim com o primeiro prefeito da citada congregação vindo da América Latina, do sul do mundo, e não da Europa. Além disso, com o Sínodo em Roma, aberto em 04-10-2023, poderemos ver mudanças significativas ou, pelo menos, um debate sobre possíveis mudanças.

Quando falo das principais realizações do Papa Francisco, eu as divido em quatro categorias. A primeira é a ideia de reforma espiritual. Naturalmente, o Papa Francisco é jesuíta. Portanto, não nos deve surpreender a sua ênfase dada no discernimento no processo espiritual. Mas, para ele, essa ideia de urgência espiritual é muito forte, não exatamente cultural nem política ou institucional-estrutural, mas espiritual. No Papa Francisco, existe uma certa ideia de primazia da dimensão espiritual, mesmo quando falamos de reforma da Igreja. Se não começarmos a partir de uma conversão espiritual, de um exame espiritual do problema, não chegaremos a lugar algum. Esta é a primeira coisa que, creio, devemos considerar quando falamos da visão que Francisco tem de reforma, também porque ele é o primeiro jesuíta, mas acho que podemos nos perguntar – e teremos tempo para fazer isso – sobre que tipo de jesuíta é Francisco. Ele não é realmente apenas um jesuíta latino-americano, mas um jesuíta latino-americano com raízes italianas, é da Argentina e não do Brasil, por exemplo, nem da América Central. Informação deste gênero é algo que deve fazer parte do quadro quando falamos sobre Francisco e sobre o elemento espiritual em sua reforma.

Uma segunda categoria é a institucional. Nesse sentido, o Papa Francisco não se mostrou tímido em relação à necessidade de uma reforma institucional profunda na Igreja. Ele adotou uma abordagem muito diferente da de Bento XVI, que foi um pouco mais distante no que diz respeito ao governo eclesiástico. Por exemplo, o Papa Francisco fez mudanças importantes nas finanças vaticanas, no papel do Banco do Vaticano, no papel do que tipo de coisa a Cúria Romana e os dicastérios têm uma palavra a dizer, a participação destas instituições na gestão do dinheiro. Como eu falei, a grande reforma da Cúria Romana, com a constituição de março de 2022, Praedicate evangelium, que trata de uma Cúria Romana mais responsiva, mais receptiva ao que vem das periferias da Igreja. Houve o novo Livro VI do Código de Direito Canônico, projeto que começou antes de Francisco ser eleito, mas que este decidiu concluir. E, é claro, esse processo de sinodalidade, que não é apenas teológico, mas tem um impacto nas instituições, na cultura institucional, no funcionamento das instituições eclesiásticas. Ainda não sabemos exatamente quais serão as consequências, mas tenho certeza de que a sinodalidade faz parte de uma nova visão institucional.

E chegamos à terceira categoria. A visão que o Papa Francisco tem de reforma tem raízes profundas no Concílio Vaticano II. Em certo sentido, Francisco enfrentou uma nova etapa na história da batalha pelo significado do Concílio. Desconheço como é no Brasil, mas nos EUA e nos países anglo-americanos ficou claro que a sua decisão, em 2021, de reverter a lei que fora aprovada por Bento XVI, em 2007, e que permitia, de um modo bastante progressista, a celebração da missa pré-Vaticano II, foi uma decisão polêmica. Portanto, Francisco contribuiu enormemente para o debate sobre o significado teológico e fisiológico da reforma litúrgica. Ele ficou muito claro. Ele sugeriu sua opinião a respeito do papel do Concílio Vaticano II na Igreja não apenas para o que acontece dentro dos muros da Igreja ou nas sacristias, em nossas paróquias, mas para o que a Igreja quer ser no mundo.

E esta é minha quarta categoria. Temos realmente um pontificado global para uma Igreja que agora enfrenta um momento de interrupção da ordem global. Pensemos em como os católicos do mundo inteiro estão divididos em relação ao que é necessário, ao que pode ser feito, por exemplo, na questão da guerra na Ucrânia. Existem divisões mais profundas entre o leste e o oeste da Europa, o norte do mundo e o sul do mundo… Isto importa porque o Papa Francisco tem sido acusado, de forma muito estúpida, por alguns americanos de ser um progressista, mas Francisco não o é; ele tem plena ciência dos limites e das contradições presentes em uma certa cultura progressista. Sua mensagem gira em torno de algo diverso. Ele tampouco é reacionário, não é um nostálgico do mundo antigo, quando tudo teria sido perfeito. Ele não é nada disso. De um modo direto e corajoso, Francisco vem enfrentando o que significa ser católico no Oriente Médio, na Ásia, na Europa. Isso faz parte de sua visão sobre o que precisa mudar na Igreja Católica, que não pode ser governada apenas a partir de uma cultura italiana, de uma cultura romana, de uma cultura europeia, mas de fato precisa fazer parte de um diálogo que envolva todos os cantos da comunhão católica, o que é bem complicado. Claro, porque não é fácil levar pessoas de outros continentes para Roma e tudo será perfeito. As coisas não são assim.

Penso, pois, que, ao avaliarmos o balanço do que o papa fez em termos de reforma, eu dividiria em pelo menos três categorias diferentes.

Primeira categoria: o que já foi realizado, o que está, a meu ver, consolidado, o que foi feito com sucesso, o que se encontra assentado e o que é pouco provável de ser revertido, por fazer parte de trajetórias maiores.

Segunda categoria: o que ainda está com o fim em aberto, o que ainda está acontecendo e o que ainda veremos nos próximos meses e anos.

Terceira categoria: o que eu acho que são as incertezas ou ambivalências e ambiguidades do pontificado do Papa Francisco.

A primeira é aquilo que foi realizado, aquilo, penso eu, que foi bem-sucedido. A primeira tem a ver com esta ideia de Igreja como algo baseado na misericórdia, em um Deus misericordioso, em uma doutrina misericordiosa. Isso não é exclusivo do Papa Francisco, pois já sabíamos, por exemplo, que no Concílio Vaticano II havia a prioridade de uma dimensão pastoral, de que uma doutrina não pode ser usada como uma arma contra as pessoas. Mas com o Papa Francisco houve um destaque especial para a teologia da misericórdia, sobre o que significa ser misericordioso, não algo que seja opcional, algo que alguém, como pastor, bispo ou leigo, pode fazer apenas se tiver vontade. Não. É algo central, esta ideia faz realmente parte de como este pontificado começou.

Estas coisas ultrapassam a simples descoberta de um Jesus Cristo que é defensor da justiça social. É maior que isso. Esta noção é algo que eu acho que não pode ser revertido. Creio que essa linguagem da misericórdia penetrou profundamente no corpo da Igreja. Não acredito que um retorno a costumes de uma Igreja ao estilo policial seria aceito. Esta visão é realmente parte da visão que Francisco tem de Igreja, que é, como dizemos nos Estados Unidos, como uma grande tenda. Uma grande tenda de trabalho, espaçosa e que pode acolher e servir de lar para diferentes tipos de católicos, não apenas em termos raciais, mas também étnicos, sociais, econômicos, culturais. É uma grande Igreja-tenda.

Isso tem sido bem importante, porque o Papa Francisco respondeu muito claramente às tentações de uma Igreja sectária, onde há lugar apenas para algumas pessoas e, é óbvio, os que são sectários acham que são eles que merecem estar na Igreja e não outros. Esta dimensão faz parte de um contexto mais amplo estabelecido pelo Papa Francisco. Ouvimos isso recentemente, quando ele esteve na Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, onde a declaração mais marcante foi quando o Papa Francisco disse à multidão de jovens: a Igreja é para todos, todos, todos!

Aqui temos algo que é óbvio para alguém como eu, mas que não é tão óbvio para todos. Há poucos dias estive lendo algo e uma das frases citadas na meditação era um ditado que ouvi que era típico no Reino Unido: “A boa notícia é que Deus te ama. A má notícia é que ele ama todos os outros também”. Isso é importante não só porque o inclusivismo é uma das palavras de ordem de nosso tempo. Inclusão e diversidade são grandes valores que ouvimos falar também em nossas escolas e universidades. Mas é uma das maneiras típicas de Francisco de falar sobre como a Igreja deve mudar, que é uma ideia não moralista, não burguesa de ser cristão. Este pensamento vem de um papa do sul do mundo porque a tentação de ver a Igreja como uma empreitada moralista, burguesa, onde o valor da respeitabilidade, por exemplo, é mais relevante do que a sinceridade ou a caridade.

Portanto, isto faz parte do que penso ter se tornado inseparável de uma certa ideia de catolicismo, na qual o Papa Francisco tem sido muito forte e eficaz. É a sua abertura do catolicismo para uma ideia mais universal e, hoje, universal é inseparável do global. Global não significa que aceitamos a globalização em todos os seus aspectos: comercial, financeiro e assim por diante. Mas global é algo que deve fazer parte de uma certa consciência de que nós, como católicos, somos parte da única Igreja Católica que não é mais ocidental, não é mais europeia, que não mais é identificada com a cultura da classe média branca-burguesa. Nisso, o Papa Francisco tem sido muito claro e eficaz. Essa é a primeira categoria.

Segunda categoria. Penso no que ainda está acontecendo e ainda não conhecemos, porque é muito cedo. Uma delas é o que acontecerá com a reforma da Cúria Romana. A lei foi aprovada em março de 2022; entrou em vigor alguns meses depois, em junho ou julho de 2022, mas uma reforma desse porte leva tempo para ser implementada e para ver os resultados, pois a nova constituição possibilita, por exemplo, a nomeação de leigos como prefeitos dos dicastérios. Já existe um que é jornalista italiano, nomeado antes da publicação da constituição apostólica. Portanto, ainda não vimos os efeitos das reformas à Cúria Romana. Assim, devemos lembrar que a reforma da Cúria é sempre um esforço complicado e frustrante para todos os papas. Estou escrevendo um livro sobre a história da Cúria Romana, e isso é algo muito problemático a todos os papas. Há um famoso ditado que o Papa Francisco citou alguns anos atrás: “reformar a Cúria Romana é como limpar a Esfinge do Egito com uma escova de dentes”. É uma tarefa gigantesca que sempre é imperfeita.

Uma segunda coisa que não sabemos aonde irá chegar é como Francisco lidará com a renúncia de seu antecessor, o Papa Bento. Dito claramente, se o Papa Francisco aceitará a ideia de que agora os papas podem renunciar – ou de que deveriam renunciar – em certa idade. A este respeito, ele falou algumas poucas frases e, recentemente, levantou dúvidas sobre a ideia de que o papa deve renunciar como sendo uma escolha normal. Ele se manifestou, em particular na visita feita ao Congo e ao Sudão, enquadrando a ideia como algo que deveria ser excepcional, que foi justificado para o seu antecessor, mas que não necessariamente deva ser considerado por todos os papas. Então, iremos ver um importante fator nas tensões que vêm atravessando o seu pontificado nestes dez anos, até a morte de Bento XVI.

Certamente, a reforma mais aberta e em curso é a da sinodalidade. Qual é o significado de uma Igreja sinodal? Qual o seu significado para a forma como o Vaticano funciona, como os bispos funcionam e como as igrejas locais funcionam? E qual o sentido para o funcionamento das paróquias? Eis um campo de grandes possibilidades, mas que ainda não sabemos o seu significado.

Por fim, o que eu considero serem as incertezas, ambivalências ou ambiguidades do Papa Francisco. A primeira é uma certa incapacidade do Papa Francisco de ver a importância da questão do papel das mulheres na Igreja. Ele muitas vezes emprega uma linguagem inadequada aqui; ele pouco conhece sobre teologia feminina. É algo que ficou visível nestes dez anos. Portanto, aguardemos para ser se ocorrerá alguma mudança a esse respeito. Em seus documentos e entrevistas, este não é um tema sobre o qual Francisco nos deu muito o que pensar. Houve a ideia de que já fizemos isso, que a questão já foi aceita. Ou que ainda não somos capazes de incorporar, no ensinamento católico, a teologia feminista, a teologia das mulheres. Trata-se de um ponto em que a maioria dos teólogos de hoje discordaria. Aguardemos para ver se algo vai progredir nesse sentido, o que faz parte de um panorama maior sobre o qual escrevi na revista Commonweal há alguns dias: qual é o papel da teologia no pensamento do Papa Francisco e da teologia contemporânea?

O Papa Francisco tem uma implementação, e uma interpretação, muito radical e ousada da melhor teologia de seu tempo. Ele não é um saudosista, não é conservador, então quando lê De Lubac, Congar ou Balthazar, ele não carrega aquele sentimento nostálgico. Ao mesmo tempo, o Papa Francisco gosta de mostrar o quão distante ele está da teologia contemporânea ou dos teólogos contemporâneos, dos teólogos acadêmicos. Isso é algo que pode não ajudar naquilo que ele está tentando fazer na Igreja porque, gostemos ou não, por trás ou por dentro de toda visão de reforma católica há uma teologia, quer estamos cientes ou não. Eis um aspecto que emergiu e que, creio eu, terá consequências se uma certa implementação do processo sinodal ocorrer sem o apoio dos teólogos. É algo que penso ter estado presente desde o início do atual pontificado, a ausência de um certo diálogo e colaboração entre o Papa Francisco e a teologia católica atual.

Finalmente, nos últimos meses, houve um estilo de governo mais pessoal e vertical de parte do Papa Francisco. Algumas escolhas de bispos e cardeais que ocorreram de uma forma totalmente pessoal, e tal pode nem sempre ser o melhor critério para fazer escolhas em termos de recursos humanos. Com o Papa Francisco, nem sempre se consideram as consequências institucionais de algumas escolhas que parecem peculiares ou que podem não ajudar no plano de reforma da Igreja, ou que podem enviar uma mensagem mista de um papa que governa muito por si mesmo. Por exemplo, o Papa Francisco convocou o Colégio Cardinalício para se reunir apenas duas vezes em dez anos. Este é só um exemplo de um estilo de governo pessoal, muitas vezes sem a Cúria Romana em alguns tópicos, e tal é uma das incertezas, ambiguidades ou ambivalências no caminho do Papa Francisco em direção à reforma da Igreja – e é o principal desafio, acredito, neste momento.

Concluo aqui a minha apresentação e estou ansioso para ouvir os seus comentários e perguntas. Muito obrigado.

***

A seguir, publicamos as perguntas dos participantes da conferência: 

Quais perspectivas do papado de Francisco podemos considerar como “assumidas” no nosso contexto eclesiológico? Esta pergunta se situa no que foi dito sobre a próxima mudança dos cardeais. Mudam os cardeais, morre Bento XVI, mas a mentalidade eclesial parece que retarda nas mudanças mais urgentes.

Eu acredito que a essa altura o Papa Francisco já nomeou a grande maioria dos membros do Colégio Cardinalício. Não há dúvida de que ele os escolheu com base em um certa alinhamento ou convergência de sensibilidades, especialmente em uma Igreja que precisa ser mais global, mais missionária, uma “grande tenda” e assim por diante. O significado disso, entretanto, é ainda muito incerto, porque é inevitável, nesse sentido, que quando o Colégio Cardinalício é aberto para membros de um maior número de países – da África, Ásia e até da América Latina – há uma maior imprevisibilidade. Um cardeal da Europa ou da América do Norte é mais previsível, porque há algumas correntes culturais e teológicas. E sabemos de onde estes prelados vêm de maneira mais clara do que sabemos o histórico, as ideias ou intenções de um cardeal vindo do Sudeste Asiático, do sul da Ásia, do Oriente Médio ou da África Central, por exemplo. Claramente, o Colégio Cardinalício está lá, na tradição da Igreja, principalmente para uma coisa: eleger o novo papa. Mas ele também tem outras funções nas quais o Papa Francisco não os envolveu muito.

Há uma possível contradição, porque o Papa Francisco pode nomear esses cargos de importância, todavia parece que não vai além da nomeação para o Colégio Cardinalício, que funciona de um modo bastante particular, pelo menos nos conclaves. Portanto, veremos, no próximo conclave, qual será o resultado dessas nomeações. Acredito que será mais imprevisível do que o normal, porque poderemos ter uma ideia de como este ou aquele cardeal da Europa ou América do Norte votariam. Mais difícil será prever como um cardeal de Tonga ou de Myanmar votará.

Penso que um catolicismo global significa um catolicismo menos europeu, menos ocidental. Mas, ao mesmo tempo, isso não significa automaticamente uma teologia católica mais progressista. Em alguns casos, significa uma teologia mais tradicional. Por quê? Porque alguns deles vêm de igrejas pequenas, minoritárias em um contexto esmagadoramente muçulmano ou budista, e assim por diante. Dessa forma, um conclave será, realmente, uma das coisas mais fascinantes de observar, e ainda é cedo para saber o que haveremos de ver.

Nós sabemos a importância das igrejas locais para o Vaticano II e agora para o processo sinodal. Em seu pontificado, o Papa Francisco entende as realidades locais e as realidades experienciais como pontos importantes para a renovação, reforma e mudança de estruturas. Diferentes comunidades e lugares podem encontrar diferentes respostas para diferentes perguntas. No entanto, o processo sinodal tem sido vivido de diferentes formas em cada comunidade e igreja. Algumas vezes, mais perto de Francisco, algumas vezes mais distante. É possível que alguns lugares tenham progresso nestas questões enquanto outros, não. Como construir uma recepção positiva e criativa do processo sinodal em nossas igrejas locais? Como enxerga a importância do laicato neste processo, como uma estrutura organizada que pode construir coisas novas a partir de sua realidade, a partir de baixo?

São perguntas importantes. Com certeza, tem havido experiências muito diferentes de sinodalidade. Eu vivo na região da Filadélfia, e as experiências sinodais aqui têm sido muito limitadas. Portanto, acredito que aqui precisará haver um impulso, uma energia proveniente de Roma ou do Sínodo, para as igrejas locais reviverem muitas das nossas paróquias na região da Filadélfia. Elas se parecem com as paróquias europeias dos anos 1950, onde leigos vão apenas para receber os sacramentos. A prática sacramental, no entanto, ainda é muito forte, mas não há o interesse ou necessidade real de uma Igreja sinodal. Deve haver, como também aconteceu após o Concílio Vaticano II, um impulso vindo de Roma, do Sínodo. Isso significa que o atual processo sinodal ou esta reforma sinodal da Igreja serão vividos de maneiras muito diversas em diferentes partes do mundo.

Se a sinodalidade na região da Filadélfia, por exemplo, precisasse se sustentar inteiramente com suas próprias energias, não iria a lugar algum. Ela não existiria. Portanto, necessitamos de Roma nesse sentido. Isso faz parte do gênio católico.

Quanto à pergunta sobre o laicato organizado. Existem diferentes maneiras de os leigos se organizarem ao redor do mundo. Em um extremo, há a experiência alemã, com o congresso nacional do laicato organizado que funciona, essencialmente, como um parlamento. Esse é um exemplo, também devido a condições históricas e econômicas que permitiram aos leigos trabalhar para a Igreja. E existem outros exemplos.

No extremo oposto, que poderia ser encontrado nos Estados Unidos, onde não existe uma organização nacional de leigos. Para mim, o grande problema também nesse contexto normal, é o seguinte: que agora o significado de leigos na Igreja mudou radicalmente, porque na época do Concílio Vaticano II, leigos significavam aqueles que não são padres – e o fato de eles não serem ordenados gera uma certa unidade, uma certa coesão. Portanto, eles se encontram juntos nessa luta de alguma forma, contra uma Igreja clerical e assim por diante.

Em algumas Igrejas de outros estados, por exemplo, não há coesão alguma entre os leigos. Porque neste país, o fato de eu não ser ordenado não cria essa coesão. Tenho isso em comum com uma das católicas mais influentes deste país, a ex-mulher de Bill Gates, da Microsoft, Melinda Gates, uma doadora extremamente influente, que pode gastar muito dinheiro, e ambos somos leigos. Mas ela e eu vivemos em mundos completamente diferentes.

Por isso, há uma necessidade de desenvolvimento da teologia dos leigos advinda do Concílio Vaticano II, e o Papa Francisco tem pressionado nesse sentido, mas, ao mesmo tempo, realmente existem condições socioeconômicas muito diversas dentro das igrejas locais que dificultam muito dizer que os leigos ativos em uma paróquia no Brasil são iguais aos leigos que atuam em uma paróquia nos Estados Unidos, em Cingapura ou na Indonésia, por exemplo. Este é um dos grandes desafios da Igreja Católica global, que terá que depender dos leigos cada vez mais. Não há dúvida aqui. Mas como? Isto ainda resta saber e ser explorado de maneiras diferentes nas igrejas locais.

Na perspectiva das reformas, será que o Papa Francisco promoveria uma reforma no clero no atual formato, cujos moldes ainda são tridentinos?

O Papa Francisco usou palavras fortes para falar de um certo tipo de clero ou seminaristas, aos quais ele empregou o adjetivo “rígido”, como alguém que está enraizado em uma certa identidade e cultura e não está de fato aberto à realidade. Ele tem sido bastante claro sobre isso. Por outro lado, o Papa Francisco não tem demonstrado muito interesse, talvez porque seja muito complicado para uma reforma do ministério sacerdotal. Às vezes, ele deu isso por certo ao dizer que não deveríamos ser rígidos por um lado, mas, por outro lado, os leigos não deveriam ser clericalizados. No entanto, há uma certa incapacidade de trabalhar por uma nova ideia do sacerdócio que não foi amplamente reformada no Concílio Vaticano II e que não mudou muito – um pouco nos currículos dos seminários, mas o seminário para a formação dos padres é uma instituição concebida entre o fim do século XVI e no século XVII, há 450 anos, e não mudou muito.

Ainda lidamos com os moldes tridentinos, uma parte muito importante da hierarquia, estrutura e cultura católica que veio não do Concílio Vaticano II, mas do Concílio de Trento, no século XVI. O problema aqui é como reformar rapidamente, enquanto ao mesmo tempo é preciso continuar tendo uma hierarquia e formar padres. Estamos diante de um quadro extremamente complicado.

Existem experiências feitas localmente, existem alguns movimentos neoeclesiais que têm seus próprios seminários para a formação de padres, como o Caminho Neocatecumenal, a Comunidade de Sant’Egídio. É muito recente para saber já aonde estas iniciativas irão chegar, mas o fato é que não há um plano abrangente de mudanças. Isso é um grande problema porque estes seminários, nos Estados Unidos, viraram lugares para a formação de mentalidades ultraconservadoras, com uma visão bem problemática do Concílio Vaticano II e das mulheres na Igreja. Isso é um grande problema. É um tema que, creio, surgirá no Sínodo dos Bispos; aguardemos para ver o que aí será dito. Mas claro está para todos que são honestos, que este é um grande problema na Igreja atualmente.

É possível identificar com nitidez grupos interessados em acelerar a renúncia do Papa Francisco? Ou é apenas uma hipótese ligada à livre decisão do próprio pontífice?

Se houve quem esteve acelerando a renúncia do Papa Francisco, claro está que não funcionou. Nos últimos meses, Francisco disse que não pretende renunciar apenas por motivos de idade. Pode acontecer se ele não for mais capaz. Desde o início o Papa Francisco inspirou uma oposição muito forte contra ele. Um de meus ex-alunos, infelizmente, publicou, em uma revista on-line muito popular nos Estados Unidos, um artigo em maio de 2013 dizendo que o Papa Francisco poderia ser um herege. Ele escreveu isso antes mesmo de o papa começar a fazer qualquer coisa. Portanto, desde o início houve certos grupos católicos reacionários e conservadores que enxergaram o Papa Francisco como um herege, como alguém que não pertence, que não sabe o que está fazendo, e assim por diante.

Acredito que houve uma tentativa em agosto de 2018, cinco anos atrás, quando o ex-núncio papal nos Estados Unidos, dom Carlo Maria Viganò, fez acusações muito sérias contra o Papa Francisco, enquanto muitos bispos disseram que Carlo Viganò é um homem de grande honra. Foi uma tentativa de destituir o Papa Francisco e forçá-lo a renunciar. Não creio que veremos sua renúncia por causa da pressão. Certamente existem grupos políticos, quero dizer, política religiosa, mas também alguns membros da hierarquia que estão ligados a grandes doadores, alguns nos Estados Unidos e em outros países, que ficariam felizes em ver o Papa Francisco renunciar.

Eu acho que o Papa Francisco sobreviveu a todas essas tentativas e isso o fortaleceu. Por isso, hoje ele se encontra livre para falar da questão da renúncia, que não é mais vista como sensível, em parte porque o Papa Bento faleceu. Se lermos o que às vezes dom Carlo Maria Viganò publica na internet, estaremos realmente diante de um caso psiquiátrico. Por sua vez, o Papa Francisco emergiu como a versão do mesmo catolicismo comparado a tudo isso.

Portanto, penso que essa questão continuará sendo debatida, porque o que Bento XVI fez em 2013 chocou a muitos e ainda é um choque. E o Papa Francisco sabe disso. Ele está abordando essas questões com muito cuidado. Mas não o vejo ameaçado ou pressionado da mesma maneira como alguns tentam. Acredito que ele está resistindo bastante bem a esses desejos de que ele renuncie.

Como analisa a presença e o estilo do Papa Francisco como liderança mundial em relação ao pontificado de João Paulo II?

É uma pergunta complexa. Acredito que há uma diferença no estilo em relação ao Papa Bento, porque este último tentou evitar que a Igreja se envolvesse em questões sociais e políticas que não faziam parte de sua escolha, exceto quando se tratava do que era chamado de valores não negociáveis, como o aborto e a sexualidade, por exemplo. O Papa Francisco tem feito o contrário. Ele escolheu falar à Igreja enquanto fala ao mundo. Sua primeira visita foi a Lampedusa em julho de 2013, o que representou uma inversão da abordagem anterior.

O Papa Francisco e o Papa João Paulo II foram ambos líderes globais, mas principalmente porque eram papas e o papado é um papel e uma função únicos. A eleição ao papado automaticamente confere uma certa visibilidade e uma posição de autoridade específicas. Com certeza, o Papa Francisco concedeu um grande número de entrevistas – em minha opinião, até demais. Sim, dessa forma, ele se pôs em uma relação mais direta com o mundo e com a opinião pública do que seus antecessores. No entanto, acredito que há mais semelhanças do que diferenças.

Eu gostaria que você aprofundasse a problemática daquilo que chamou de milícias digitais católicas. No Brasil, este problema está cada vez mais grave, com grupos formados principalmente por leigos e que os torna ainda mais livres para agir agressivamente defendendo, paradoxalmente, uma suposta “sinodalidade” em suas ações. Que saídas são possíveis para este fenômeno para evitar uma subversão da ideia de sinodalidade? Como a Igreja institucional, particularmente os bispos, pode ou deve lidar com essa problemática?

Esta é uma situação complicada e problemática porque, como já descrevi e outros também descreveram, não há uma norma que possa deter as milícias digitais atuantes dentro de grupos católicos. Ninguém possui jurisdição alguma na internet, na Igreja Católica. Em alguns casos, as vozes mais ofensivas vêm dos bispos e, portanto, eles não estão em posição de autoridade para dizer aos fiéis e a estes grupos: “Ora, isso eles podem dizer” ou "ora, isso eles não podem dizer”.

Penso que vivemos no mundo das redes sociais globais, em um momento de crise. Porque se observarmos o que aconteceu com o Twitter, por exemplo, nos últimos meses, veremos uma desorganização ou desmontagem do que era. Estes grupos estão mais dispersos do que costumavam estar porque alguns ainda estão no Twitter, outros em suas próprias plataformas mais restritas, e assim por diante. Acredito que o que vimos nas redes sociais, nas mídias digitais nos últimos quinze anos, mais ou menos, está mudando. Não acho que esses grupos vão desaparecer. Também acho, no entanto, que o pior pode já ter passado, porque agora a desorganização das redes sociais, em plataformas mais restritas ou plataformas para quem tem uma opinião específica, está tirando parte do oxigênio que lhes dava vida. Essa é a minha experiência. Vejo menos conteúdo deles nas minhas redes sociais, e eu não os bloqueei. Mas é como a paisagem algorítmica inteira está mudando.

Claro, estes grupos têm um ressentimento contra a sinodalidade, eles não gostam do Papa Francisco. Mas acredito que o que vimos nos últimos dez anos foi único porque foi a Era de Ouro das redes sociais, foi a era da convivência entre Francisco e Bento. Essas condições agora mudaram. Uma dúvida que tenho, e estou realmente curioso para saber, é como eles participarão deste processo sinodal e o que acontecerá em Roma, os debates, contribuições e assim por diante.

Há uma zona cinzenta entre as milícias digitais desses grupos violentos e as revistas ou canais católicos mais respeitáveis; há uma sobreposição. Teremos que ver isso, mas acredito que é uma mudança no cenário midiático também em termos tecnológicos. Isto irá gerar um impacto no comportamento dessas pessoas. Acredito que eles percebem que não têm mais a mesma audiência que costumavam ter. Isso tudo pode mudar, novamente, para pior porque, por exemplo, Donald Trump poder se reeleger presidente e veremos muito disso, mas igualmente podemos estar virando uma esquina em direção a uma nova situação.

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