Sinodalidade: católicos demandam uma reforma do sacerdócio clericalista

Vaticano. Foto: Divulgação do livro "Vatican: la fin du munde".

07 Março 2022

 

 

“Se o clero tem um propósito firme de ajuste, o clero precisa pensar seriamente em desmantelar muitas de suas estruturas hierárquicas. Seria sensato não aceitar pessoas no sacerdócio até que tenham passado vários anos fazendo um trabalho. Numa altura em que as pessoas estão sem-abrigo, não é decente que muitos padres vivam sozinhos, ou em pares, em casas que poderiam acomodar uma grande família. É claro que não há razão para que um padre não se case. Isso lhe daria muito mais credibilidade com o resto da paróquia e muito possivelmente lhe ensinaria muito sobre paciência e humildade. Tanta coisa precisa ser mudada, mas a primeira coisa é que vocês, sacerdotes, monsenhores, bispos, cardeais, devem reconhecer a necessidade de aprender com os leigos. Do jeito que está, não estamos deixando a Igreja, mas uma parte considerável da Igreja parece inclinada a nos deixar”, escreve Cecilia A. Hatt, pesquisadora sobre a história intelectual católica com ênfase na Inglaterra medieval, em artigo adaptado do seu testemunho submetido ao processo sinodal para a Arquidiocese de Southwark, Inglaterra, publicado por La Croix International, 03-03-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

Eu sou uma mulher que carrega a prática da fé católica, a qual da minha melhor forma tentei por toda a vida servir, proclamar e transmitir para meus filhos e netos.

Durante essa vida eu encontrei todo o tipo de homens e mulheres na Igreja, alguns preenchidos pelo amor de Cristo, outros, obviamente, nem tanto.

No entanto, eu sempre acreditei que, apesar das esquisitices temperamentais e a severidade de muitos clérigos católicos, eles poderiam confiar pelo menos em manter uma honestidade básica e a justiça em suas relações com os leigos que são chamados a servir.

Os acontecimentos dos últimos anos mostraram que essa crença piedosa era infundada, uma descoberta que, obviamente, envergonhou profundamente o clero católico e, não é exagero dizer, partiu o coração dos leigos. Pior de tudo, trouxe descrédito à própria fé católica.

 

Vou santificar o meu nome grandioso, que foi profanado entre as nações, porque vocês o profanaram entre elas. Então as nações ficarão sabendo que eu sou Javé – oráculo do Senhor Javé – quando eu mostrar a minha santidade em vocês diante deles” (Ezequiel, 36, 23).

 

Como se manifestará a santidade do nome do Senhor, se não é permitido aos leigos falar a verdade à hierarquia?

 

Necessidade de total honestidade

 

Para que o Sínodo proposto não seja um gesto vazio, deve haver um claro compromisso com a justiça e a verdade por parte do clero e das ordens religiosas.

Compreendemos prontamente que o Papa Francisco está tentando estabelecer novas relações dentro da Igreja e uma maior abertura entre leigos e clero.

Isso é muito desejável, mas, como em todos os relacionamentos, não pode progredir se não houver, desde o início, total honestidade entre os parceiros.

Todos sabemos, com pesar, que, durante um longo período de tempo, alguns membros do clero se aproveitaram de sua posição de confiança e autoridade para abusar de crianças, tanto em atos sexuais diretos quanto em violência física que muitas vezes parece ter tido um efeito motivação sexual.

Ninguém está tentando negar a natureza horrível deste crime e reconhecemos que a grande maioria dos padres recuaria da própria ideia. No entanto, na imaginação do público, o crime se incrustou no clero católico, na medida em que sua reputação está agora em pedaços.

Por isso, deve-se dizer, vocês, o clero, têm apenas a si mesmo para culparem

O processo de descrer e depois ocultar as queixas dos leigos, a recusa de suspender os padres acusados e, em vez disso, transferi-los para outras paróquias, e a tentativa consistente de encobrir a natureza e a extensão do crime, por mais que tenha sido inicialmente a resposta de pânico e, posteriormente, de vergonha, foi de fato, se não intencionalmente, perversa.

 

Clero acima dos leigos

 

A extraordinária e chocante simetria com que essa maldade se repetiu nas dioceses católicas de todo o mundo trouxe à tona repentinamente, para os leigos católicos, a natureza da formação sacerdotal que ao longo dos séculos produziu um efeito finalmente corruptor.

Este efeito foi promulgar um modelo de duas partes da Igreja, de clero e leigos, no qual o primeiro tem precedência. A instrução original dada aos apóstolos era falar às pessoas sobre o amor de Deus articulado na vida, morte e ressurreição de seu filho Jesus Cristo e, por preceito e exemplo, mostrar o caminho para segui-lo com humildade e amor, por exemplo, ou o reflexo dos acontecimentos da nossa vida humana nos sete sacramentos.

Tais desenvolvimentos eclesiais aconteceram de maneira mais ou menos inevitável e razoável, tendo em mente as estruturas tradicionais de nossas vidas.

No entanto, foram introduzidas outras coisas que não são características necessárias ou inevitáveis da Boa Nova. Uma delas é a prática de chamar um sacerdote (priest) de padre (Father/padre/pai), que, por inocente que possa parecer à primeira vista, carrega consigo um pressuposto de relacionamento próximo, confiança e o hábito da obediência.

 

Quanto a vocês, nunca se deixem chamar mestre, pois um só é o Mestre de vocês, e todos vocês são irmãos” (Mateus 23, 8).

 

Jesus disse essas palavras para deixar claro para seus seguidores como sua prática deveria ser diferente daquela dos escribas e fariseus, que colocavam fardos sobre o povo que eles não queriam que ascendesse.

É perceptível nos evangelhos como Jesus foi movido à ira apenas por duas coisas, a hipocrisia do sacerdócio e o uso do templo como mercado, um “covil de ladrões”.

Ao desafiar os fariseus, Jesus estava mostrando como a formulação excessiva de regras e uma insistência excessiva em demonstrações externas podem se transformar em tirania de uma parte do povo sobre outra.

 

Sacerdotes sem confiança nos fiéis batizados

 

Esta não foi apenas uma observação da parte de Cristo sobre a estrutura contemporânea da comunidade judaica: foi também uma advertência sobre os perigos e tentações futuras, inerentes ao ensino de qualquer tipo, de fazer leis onde deveria haver apenas exortações, de virar instrução em mandamento. O próprio Jesus exortou apenas os dois grandes mandamentos, do amor de Deus e do amor ao próximo.

Assim como a hipocrisia dos escribas e fariseus se tornou fossilizada em um conjunto inflexível de códigos que oprimiam o povo, também dentro da Igreja a sobreposição do clero sobre os leigos endureceu em uma separação de papéis que muitas vezes se manifestou como uma tirania.

Como é que cresceu entre muitos sacerdotes uma desconfiança perceptível em relação aos leigos, como se fossemos suspeitos de tentar roubar um tesouro que eles guardam?

 

Batismo, Comunhão, Matrimônio

 

Esses sacramentos que celebram os detalhes ordinários de nossas vidas humanas são muitas vezes mantidos como reféns para garantir comportamentos particulares de nossa parte, atos aceitáveis de submissão a regulamentos que nosso Senhor não sugeriu.

Eles são dons do Senhor, não acessórios do poder do clero, mas o clero aprendeu a usar os sacramentos e a missa como meios de controle.

Não é mais uma questão de educação. Os leigos são, em sua maioria, tão bem – ou até melhor – educados do que muitos clérigos de hoje.

Os sacerdotes passaram a emitir diretivas em vez de explicar o Evangelho. Em vez de nos lembrar que o mandamento nos diz para santificar o sábado por amor a Deus, os bispos de hoje falam de obrigações e dispensações, questões de disciplina, não de doutrina.

 

Homens com direitos separados

 

A triste verdade é que os padres foram gradualmente treinados para se verem como homens separados, que, em virtude do inestimável privilégio que receberam, têm o direito de estabelecer regras e o direito de que sejam obedecidas. No entanto, não existe esse direito.

Um padre será – como outras pessoas são – respeitado, confiável, talvez amado, por como ele se comporta em relação aos outros, não pela ordenação.

O fato de haver muitos padres tão respeitados e confiáveis é um sinal animador de que são bons homens cristãos, mas não confere a toda a instituição do sacerdócio um nihil obstat automático.

Aqui, a relutância dos leigos ingleses em fazer barulho trouxe seus próprios problemas.

Ao longo dos séculos, aceitamos serenamente o bezerro de ouro que nos foi dado para venerar: uma fantasia de homens e mulheres em ordens sagradas e votos religiosos cuja vocação era “mais alta” do que nossa própria vocação de ser mães e pais, escritores, agricultores, médicos ou motoristas de ônibus.

Na Grã-Bretanha, especialmente, temos sido leigos dóceis, ainda valorizando como insígnias de orgulho as antigas injúrias da Reforma e mantendo vivas as memórias populares de uma população intolerante que evitava os “romanos”.

O bicho-papão dessa população hostil foi fomentado por nossos padres, se bem me lembro, e, consequentemente, fomos ensinados a considerar com suspeita até mesmo os frequentadores de Igrejas Anglicanas, em vez de procurar segurança para nossos companheiros católicos e nosso clero.

Foi um desenvolvimento perigoso e ajudou a encorajar a concepção de dignidade sacerdotal em todo o clero, que a todo custo não deve ser manchada por qualquer respiro de escândalo.

 

O mal do clericalismo e o escândalo dos abusos sexuais

 

O Papa Francisco chama isso de mal do clericalismo, mas não há muitos sinais de que o clero e a hierarquia tenham levado isso a sério. Mas esse mundo mais amplo, ao qual nós católicos devemos nos sentir superiores, o entende muito bem e julga a Igreja conforme o rigor e a hipocrisia.

Aqui vocês vão responder: foram apenas alguns padres culpados, não todos nós!

Mas vocês fecharam o espaço para milhares dos seus.

Vocês se voltaram para seus irmãos sacerdotais e não para nós, nem para as leis e a justiça das sociedades que o abrigavam.

Vocês deixaram as ovelhas feridas e se agarraram aos mercenários.

Recentemente, a força policial britânica que suprimiu evidências de sua própria criminalidade para proteger sua reputação foi considerada culpada de “corrupção institucional”. Se o sacerdócio faz a mesma coisa, não devemos chamar isso de corrupção institucional também?

Muitos bispos e clérigos falaram, com emoção, sobre o passado e o futuro, mas nenhum parece apreciar o fato de que não se trata de uma coisa ruim que aconteceu no passado e agora acabou.

O abuso sexual não deixa suas vítimas em paz. Uma pessoa que sofre violência num primeiro encontro sexual pode nunca, ao longo desse grande segredo vergonhoso, conseguir livrar-se da consciência da degradação.

Que criança, criada por pais católicos devotos para respeitar e obedecer a um padre, saberia rejeitar as propostas do homem? Que palavras ele poderia encontrar para descrever sua experiência para um pai, quando ele não tinha ideia do que o padre queria ou por quê?

Para muitas dessas crianças abusadas, sua primeira percepção do que estava acontecendo só teria acontecido quando eles começaram a aprender os fatos da vida.

As crianças modernas provavelmente têm mais conhecimento sobre sexo, mas esses crimes clericais foram cometidos, muitos deles, anos atrás.

 

Ignorando as pessoas do seu ministério

 

Talvez alguns desses abusadores imaginassem que a criança não se importaria ou esqueceria. Se a hierarquia alguma vez tivesse pensado em procurar ajuda de leigos profissionais, teriam sido informados de que as crianças não esquecem essas coisas.

Um sacerdócio mais bem educado em psicologia e patologia do desvio sexual saberia que o abusador de crianças não se reforma. Ele pode se arrepender repetidas vezes, mas não para o que está fazendo.

Um sacerdócio que respeitasse a perícia leiga e a lei secular não teria buscado refúgio no segredo para os ofensores em vez de socorrer os ofendidos.

Deixando de lado o mal do que foi feito a todas aquelas crianças e jovens, e colocando-o tão suavemente quanto possível, o clero era teimosa e culposamente ignorante das pessoas para cujo serviço eles foram ordenados.

Mesmo agora, quando se poderia pensar que a hierarquia começou a compreender a enormidade do dano que presidiu, ouvimos que as queixas das vítimas de abuso não estão sendo ouvidas pelos bispos porque os denunciantes são considerados problemáticos ou carentes ou confrontadores.

Como o cego Bartimeu, “muitos o repreendiam e lhe diziam que ficasse quieto” (Marcos 10, 48). Ou como a mulher cananeia, que, queixaram-se os discípulos, “continua gritando atrás de nós” (Mateus 15, 24), as pessoas que fazem alvoroço pelas injustiças que sofreram são uma vergonha.

“Erros foram cometidos e estruturas serão postas em prática” não é o suficiente a se falar da situação. Não deixar uma criança em um quarto sozinha com um padre não é um remédio e certamente não é um pedido de desculpas.

Até que vocês confessem a nós, os leigos, que no orgulho de seu chamado pecou coletivamente contra nós, como pode haver perdão?

 

Caindo sobre o povo da Igreja como um luto

 

Milhares de mulheres na Irlanda passaram anos em escravidão virtual enquanto os “frutos de sua vergonha”, – no idioma odioso daquele ódio rançoso e histérico ao sexo disfarçado de amor à pureza – seus bebês inocentes em outras palavras, eram ou dado a amigos sem filhos do clero ou morreu de negligência. Isso é mais do que um erro e é difícil ver que tipo de estrutura pode fazer tudo certo.

Precisamos que vocês peçam desculpas e expresse um firme propósito de emenda.

Alguns clérigos em outros países já entenderam essa necessidade e começaram a abordar a situação com tribunais conjuntos e suas próprias comissões de verdade e justiça. Nada comparável foi tentado neste país e até que seja, não pode haver nenhum significado neste sínodo.

Uma comunidade da Igreja não pode caminhar ao lado de outra que se recusa a nos olhar nos olhos.

Como diz São Paulo, “O corpo não é feito de um só membro, mas de muitos” (1 Coríntios 12, 14). Da mesma forma, não pode haver mais conversa clerical sobre os leigos “trazendo” algo para a Igreja: a Igreja é leigos e clero juntos.

Deus dispôs o corpo para que seja dada mais dignidade às partes que estão sem ele, e que não haja divergências dentro do corpo, mas que cada parte se preocupe igualmente com todas as outras. Se uma parte está machucada, todas as partes estão machucadas com ela. (1 Coríntios 12, 24-26).

Nossas crianças foram abusadas criminalmente, mas todos nós fomos abusados de muitas maneiras, pela depreciação secular das mulheres, pelas muitas ocasiões em que nos foi recusado um sacramento com base em não comparecimento a não – reuniões preliminares necessárias, quando os jovens que têm todo o direito de se casar na igreja foram negados por razões ociosas, irregularidade processual ou, às vezes, simplesmente por capricho de um padre autocrático (não são casos fantasiosos: muitas famílias católicas têm tais experiências para relatar, ao meu conhecimento pessoal).

A revelação do abuso infantil generalizado é simplesmente a afronta mais recente, e a dor dela caiu sobre os leigos da Igreja como um luto.

 

Desmantelar estruturas hierárquicas e aprender com os leigos

 

O recente casamento do nosso primeiro-ministro na Catedral de Westminster, em circunstâncias pessoais que durante anos constituíram obstáculos intransponíveis aos casamentos na igreja de milhares de católicos sinceros e praticantes, causou profundo embaraço aos leigos e apresentou ao público em geral uma fonte de escárnio e confirmação de que a Igreja Católica sempre pode encontrar uma maneira de contornar suas próprias regras para agradar os ricos e poderosos.

Dadas essas circunstâncias, é difícil para um leigo católico não se sentir insultado. Todas essas pessoas decentes agora devem ser bem-vindas de volta aos sacramentos? Seria um bom começo.

Se o clero tem um propósito firme de ajuste, o clero precisa pensar seriamente em desmantelar muitas de suas estruturas hierárquicas. Seria sensato não aceitar pessoas no sacerdócio até que tenham passado vários anos fazendo um trabalho.

Numa altura em que as pessoas estão sem-abrigo, não é decente que muitos padres vivam sozinhos, ou em pares, em casas que poderiam acomodar uma grande família.

É claro que não há razão para que um padre não se case. Isso lhe daria muito mais credibilidade com o resto da paróquia e muito possivelmente lhe ensinaria muito sobre paciência e humildade.

Tanta coisa precisa ser mudada, mas a primeira coisa é que vocês, sacerdotes, monsenhores, bispos, cardeais, devem reconhecer a necessidade de aprender com os leigos. Do jeito que está, não estamos deixando a Igreja, mas uma parte considerável da Igreja parece inclinada a nos deixar.

 

Caminhando juntos, escutando um ao outro

 

Se devemos caminhar juntos e anunciar a Boa Nova, nossa escuta deve funcionar nos dois sentidos e nossa maneira de andar deve seguir genuinamente os caminhos da bondade, em vez de trilhar um caminho cuidadoso – e cheio de cuidados – por meio de condenações, regulamentos e dispensas do que nada têm a ver com a Palavra de Deus.

Jesus nos pede para irmos até ele porque ele nos dará descanso, um descanso de que precisamos desesperadamente porque trabalhamos por muito tempo sob os pesados fardos que o clero colocou sobre nós.

Em 1508, o bispo John Fisher, comentando o quinto salmo penitencial, Domine Exaudi, escreveu o seguinte:

 

Todo temor a Deus/ também o desprezo de Deus vem e se fundamenta do clero,/ pois se o clero for bem e legitimamente ordenado dando bom exemplo a outros de vida virtuosa/ sem dúvida o povo, por isso, será mais temente ao Deus todo-poderoso. Mas, ao contrário, se o clero vive desoladamente de maneira que não deve dar conta de sua vida passada e feita antes / não farão os leigos o mesmo?... Portanto, nós do clero dependemos tanto do temor a Deus quanto do desprezo de Deus”.

 

John Fisher é agora merecidamente venerado como um mártir católico, mas antes que houvesse qualquer questão de martírio ele era um bispo humilde, sábio e trabalhador, que podia ver muito claramente as falhas de seus próprios irmãos e como, se não reconhecidos e não corrigidos, eles provocar um cisma na Igreja e o desprezo de Deus.

Se estamos condenados a repetir essa triste história, cabe agora em grande parte ao clero católico.

 

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