03 Dezembro 2019
"Não devemos ter medo de deixar claro que a tolerância aos casos de abuso sexual clerical contradiz-se totalmente com o cerne da mensagem evangélica. Ao reconhecer essa verdade, começamos a responder ao chamado para avançarmos no caminho da purificação eclesial com solidariedade, sinodalidade, conversão e transparência", escreve Blase J. Cupich, cardeal-arcebispo de Chicago, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 29-11-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Este artigo baseia-se na palestra proferida pelo cardeal-arcebispo de Chicago, Dom Blase Cupich, no Congresso Latino-Americano sobre a Prevenção de Abuso Infantil na Igreja Católica, realizado na Pontifícia Universidade do México, em 08-11-2019.
Certo dia, um homem em seus 50 anos veio até meu gabinete e compartilhou uma história dolorosa, em que fora abusado sexualmente por um padre de sua diocese. Ele começou trabalhando nas missas aos 9 anos, e um padre sempre o pedia que ficasse até mais tarde para arrumar a sacristia. Num desses dias, o padre o levou para um outro recinto e o abusou sexualmente. Fez isso todos os domingos durante quatro anos. Depois de abusar, o padre levava o menino para casa e jantava com a família. Acrescentando uma outra camada de dor ao abuso sexual em si, todos os sábados o padre levava o menino para outra cidade e o forçava confessar os supostos pecados a um outro padre. Finalmente, o menino teve a coragem de contar ao pai, e o abuso cessou. Vendo o sofrimento nos olhos desta vítima-sobrevivente, testemunhando sua coragem em dividir comigo esta experiência horrível, vi que precisava agir.
Este homem queria ver o seu abusador, então organizei um encontro, no qual também participei. O padre não negou as alegações. Também notifiquei as autoridades jurídicas locais, destituí as faculdades ministeriais do religioso e informei o caso à Santa Sé, que acabou removendo-o do estado clerical.
Igualmente, viajei com a vítima no fim de semana seguinte para a paróquia onde os abusos ocorreram e contei à comunidade sobre o que havia se passado. Depois da missa, convidei a comunidade a se juntar a mim no vestíbulo da Igreja, e removemos o retrato do ex-pastor.
Tudo o que quero dizer sobre a purificação eclesial encontra-se nesta história do meu encontro com esta vítima. Ela põe em foco muitos elementos da purificação que tenho tentado realizar desde a visita feita à paróquia.
O primeiro elemento é a solidariedade. Ao ouvir esta vítima, percebi que estava ouvindo um menino de 9 anos de idade, falando a mim com toda a vulnerabilidade que circunda esta tenra idade. É neste nível de profunda vulnerabilidade que devemos nos conectar com os que sofreram abusos. Se não o fizer, ficaremos tentados a nos relacionar com as vítimas de maneira defensiva, na pior das hipóteses, ou desapaixonadamente, na melhor delas, como um inconveniente a ser suportado.
Meses depois de os escândalos de abuso sexual em Boston virem à luz em 2002, a nossa conferência episcopal se reuniu em Dallas, sabendo que primeiro devíamos escutar. Ouvimos as vítimas-sobreviventes, um historiador e um psicólogo. O último palestrante a falar foi a jornalista Margaret O’Brien Steinfels, que, na época, trabalhava como editora-chefe da Commonweal, revista católica escrita por leigos. Entre outras coisas, ela relembrou importantes ideias do grande teólogo francês Henri de Lubac, no livro “O esplendor da Igreja”:
“Somos todos humanos”, escreve Lubac, “e nenhum de nós desconhece a própria miséria e incapacidade; pois, afinal, continuamos sabedores das nossas próprias limitações. Todos nós (…) nos pegamos em flagrante (...) tentando servir a uma causa santa por meios dúbios”.
Lubac chega a dizer que quando um autoengano se apresenta sob a forma de uma “crítica que sempre se dirige para fora, ele pode ser simplesmente a busca por um álibi, projetado para nos auxiliar em esquivar-nos do exame de consciência”. O único antídoto para um autoengano como este, conclui, é “uma aceitação humilde da solidariedade católica que, talvez, seja-nos mais proveitosa quando apontar para as nossas próprias ilusões”.
A estrada para a purificação eclesial começa no nível da solidariedade com as vítimas, acolhendo a nossa conexão com elas no nível profundo da nossa vulnerabilidade comum. Isso significa, segundo disse Steinfels aos bispos, reconhecer que “estas são as vítimas da Igreja, as nossas vítimas; e que estes são os vitimizadores da Igreja, os nossos vitimizadores. Raras são as vezes em que a solidariedade foi tão dolorosa ou tão difícil de demonstrar, ou tão humilhante ou, por fim, tão importante”.
Foi por isso que o Santo Padre, em preparação para o encontro realizado em fevereiro deste ano voltado à proteção dos menores, pediu aos participantes que se reunissem com as vítimas em seus países. Francisco entende que a purificação começa com a solidariedade.
Mas a purificação que começa na solidariedade deve se profundar via sinodalidade. Viajar com a vítima à paróquia de sua infância onde os abusos ocorreram e pedir à comunidade para que me acompanhasse, depois da missa, até o vestíbulo tornou-se, para mim, um símbolo da abordagem a que o Papa Francisco nos convida diante deste escândalo. A Igreja inteira deve caminhar junta em direção à cura das vítimas-sobreviventes, em direção à proteção dos vulneráveis e da responsabilização dos que causaram sofrimento.
Assim como a sinodalidade permite que nos conectemos com os que sofreram em um nível humano profundo, da mesma forma a sinodalidade nos inspira a colocarmo-nos próximos e caminhar juntos. Nunca deveremos sugerir que as vítimas devam “superar” ou que chegou o momento de seguir em frente, deixando tudo no passado. O que aconteceu faz parte da nossa história. Sim, devemos caminhar de cabeça erguida, mas devemos caminhar também de braços dados com os que foram machucados. Não é este o convite do Senhor ressuscitado, que apareceu aos discípulos não em estado perfeito glorificado, mas com feridas profundas plenamente expostas? Somente quando Tomé aceitou o seu Senhor e tocou as suas feridas é que ele e os demais discípulos puderam entender o que significava seguir o Senhor ressurreto: caminhar com o ferido em nosso meio. As vítimas-sobreviventes são uma manifestação do Senhor ressurgido, a nos lembrar o que significa ser seu discípulo. O Santo Padre está dando um exemplo poderoso a todos os bispos quando regularmente se encontra com as vítimas e mantém contato com elas. Ele nos recorda que o primeiro mandamento de um apóstolo é testemunhar o Senhor ressurgido e ferido.
Assim como a sinodalidade dá sustentabilidade à purificação necessária, a conversão a mantém autêntica. Em 2002, a nossa conferência episcopal e cada uma das dioceses [dos EUA] estabeleceram procedimentos para lidar com os padres que cometeram abusos. No entanto, como hoje ficou claro, não tivemos sucesso em nos responsabilizar enquanto bispos. Isso expôs uma falha em nossa abordagem à purificação da Igreja para com este flagelo. Perdemos de vista a verdade na nossa tradição de que a purificação vem através de uma conversão que nos custa algo e que faz exigências, não só em uma área, mas em todos os aspectos das nossas vidas.
O falecido teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer escreveu sobre dois tipos de graça: a barata e a preciosa. “A graça barata é a pregação do perdão sem arrependimento, é o batismo sem a disciplina de uma congregação, é a Ceia do Senhor sem confissão dos pecados, é a absolvição sem confissão pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a graça sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado”, escreveu.
Assim também existem dois tipos de purificação: a barata e a preciosa. A purificação barata prioriza salvar a nossa pele, a achar que os procedimentos, por si só, bastam. A purificação barata não consegue corrigir a visão distorcida de que proteger a Igreja dos escândalos significa proteger o Povo de Deus da verdade. A purificação barata faz vista grossa a uma cultura que crê que os bispos estão além da responsabilização ou que ser membro do clero acarreta privilégios sobre os mais frágeis. Esse tipo de purificação não tem custos e não faz exigências à Igreja ou a mim como bispo.
Novamente, voltemo-nos a Bonhoeffer para entender o significado da purificação preciosa na ocasião em que escreve sobre a graça preciosa: “Chega até nós como gracioso chamado ao discipulado de Jesus; vem como palavra de perdão ao espírito angustiado e ao coração esmagado. A graça é preciosa por obrigar o indivíduo a sujeitar-se ao jugo do discipulado de Jesus Cristo. As palavras de Jesus: ‘O meu jugo é suave e o meu fardo é leve’”.
Naturalmente hesitamos em pagar o preço desta conversão e preferimos assumir compromissos mais fáceis. Lembremos as palavras de Lubac: “Somos todos humanos”, escreve ele: “Todos nós (…) nos pegamos em flagrante (...) tentando servir a uma causa santa por meios dúbios”.
Não era esta a purificação barata do acobertamento? Isso não era o mesmo que olhar para o outro lado quando placas de advertência nos exigiam atenção? Será que não estávamos diante de um verdadeiro fracasso na responsabilização uns dos outros enquanto bispos? Não era a preguiça moral de acreditar que meras diretrizes apontadas sobre um pedaço de papel seriam, por si sós, suficientes?
Uma purificação preciosa não se contenta com diretrizes rígidas que desemboquem em uma forma de procedimentalismo. Essa maneira de pensar leva à complacência. Uma urgência em nosso diálogo é marca da verdadeira purificação.
O que não significa que as dioceses – e todas as instituições que se preocupam com os menores – não devam ter procedimentos rígidos que visem a segurança dos mais jovens, que visem estender a mão às vítimas-sobreviventes e que visem responsabilizar seus membros. Eis algo fundamental em todos os setores da sociedade. Na Igreja, significa proibir de ministrar todo aquele que representar um perigo às crianças e responsabilizar os que fracassarem no dever sagrado de proteger os vulneráveis.
Mas aqui é só onde começa o diálogo. A necessidade mais profunda é nós aceitarmos e pagarmos o preço do nosso chamado à conversão.
Por fim, enquanto reflito sobre este primeiro encontro que tive com uma vítima-sobrevivente, ocorreu-me que um sinal da purificação autêntica a que somos chamados é a transparência. A transparência abre novas possibilidades para a cura dos feridos e da Igreja. Não é esta a forma como Jesus apresenta a purificação? Ele apresenta-a como uma abertura à nova criação possibilitada pela misericórdia divina.
Estarmos abertos, sermos honestos e transparentes com as pessoas sempre que ocorrerem abusos e quando descobrimos casos do passado tem um efeito libertador. Estando abertos às pessoas, tratando-as com respeito, admitimos as nossas limitações e a nossa necessidade de ajuda. Isso é verdade também nos casos em que descobrimos práticas de acobertamento. Não precisamos mais fingir que as lideranças eclesiásticas eram incapazes de tomar más decisões. Quando nos confrontamos com o passado, descobrimos o senso profundo de expiação e a humildade que reconhece que o pecado invadiu o cerne da nossa vida eclesial. A transparência nos dá a liberdade de que precisamos para uma purificação autêntica.
A cegueira ao pecado institucional sempre nos impede de reconhecer a presença do mal em nosso meio. Em nenhum outro lugar isto é mais óbvio do que no caso do abuso sexual de menores, quando os demônios do coração e da alma humana prejudicaram a nossa capacidade de responder como deveríamos e de reformar verdadeiramente as nossas vidas em Cristo. Muito está em jogo se acaso não tivermos sucesso em buscar este tipo de purificação nos nossos ministérios. Não só continuaremos a afetar a nossa credibilidade, mas, como a jornalista Steinfels advertiu nós bispos em 2002, pomos em risco o nosso ministério diante do Senhor.
Ao reafirmar a crença de que os portões do inferno não prevalecerão, Steinfels disse que precisamos reconhecer os modos nos quais os portões do inferno fizeram avanços. “Os portões do inferno”, afirmou, “podem ser também passagens mais modestas, menos dramáticas, rotineiras, através das quais facilmente caímos em atos furtivos de acomodação, covardia, silêncio ou preguiça, como por algum ato ousado de rebelião”. Em seguida, Steinfels pediu que, neste momento, os bispos se cuidem contra o autoengano e que escolham um outro caminho a trilhar daqui para frente: o caminho da purificação que vem com a transparência.
Encerro com duas imagens que aproximam estas reflexões sobre a purificação autêntica necessária hoje. A primeira vem no conto intitulado “Revelação”, do romancista americano Flannery O’Connor. A história termina com uma cena onde uma cristã supostamente justa fica chocada por uma visão da vida após a morte na qual todos os que ela considerava indignos marchavam para o céu à sua frente. Ela reconhece que a pureza que havia cultivado não era a pureza que Deus queria de seu povo. De forma profunda, ela passa a perceber que as pessoas que insultou eram as mesmas a quem Deus dava preferência. A diferença foi que ela perseguira a pureza em seus próprios termos. Os outros escolheram caminhar juntos. Da mesma forma, devemos nós também buscar um caminho de solidariedade com os que sofrem, sabendo que assim o fazemos em resposta ao chamado purificador do Espírito Santo.
A segunda imagem me vêm à mente quando reflito sobre a palavra “sincero” e a sua derivação das palavras latinas “sine” e “cera”. Já foi dito que elas fazem referência à forma como a cera era usada para cobrir as falhas ou lustrar esculturas de mármore. Isto permitia ao escultor tornar a sua obra menos trabalhosa e menos custosa. Alguns etimologistas discordam dessa explicação. Porém, essa ideia tem o seu valor no presente contexto.
Assim como a luz do sol derrete a cera e expõe as falhas que estão por baixo, o mesmo faz este momento de abusos sexuais contra os pequeninos de Deus, em revelar a necessidade de reconhecermos as nossas próprias falhas. É uma lembrança de que a pureza autêntica tem o seu custo. Mas também nos recorda que, assim como o sol surge a cada dia, a verdade sempre virá. Erramos se pensamos que podemos jogar o jogo de esconder as falhas em nosso meio.
A purificação a que somos chamados enquanto Igreja – e, em particular, enquanto sucessores dos apóstolos – constitui uma grande fonte de esperança, não de desânimo. Não devemos ter medo de deixar claro que a tolerância aos casos de abuso sexual clerical contradiz-se totalmente com o cerne da mensagem evangélica. Ao reconhecer essa verdade, começamos a responder ao chamado para avançarmos no caminho da purificação eclesial com solidariedade, sinodalidade, conversão e transparência. Desse modo, nos tornamos, com mais força ainda, o sacramento de Jesus Cristo que a Igreja encarna.
Cabe a nós, portanto, responder a este chamado. Ousemos em assim responder.
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Como podemos acabar com o abuso sexual clerical e purificar a Igreja? Artigo de Blase J. Cupich, cardeal-arcebispo de Chicago - Instituto Humanitas Unisinos - IHU