28 Outubro 2023
Francisco, e isto é bom, mudou de rumo sob as pressões agora insustentáveis. Não é verdade que ele tenha agora decidido intervir. Ele sempre acompanhou pessoalmente o caso Rupnik. Agora tenta corrigir seus erros.
O comentário é publicado por Il Sismografo, 28-10-2023.
Na história de todos os pontificados há dias belos, menos belos e muito feios. Porém, também existem dias dissociados em que vivenciamos momentos bons e ruins ao mesmo tempo. No caso do pontificado de Francisco, queremos evocar duas datas muito relevantes deste tipo: domingo, 22-10-2018, e depois ontem, sexta-feira, 27-10-2023. Estes dias, bonitos pelo anúncio feito, mas feios pelos acontecimentos que narram, ambos têm a ver com abusos de poder na Igreja e seus inexoráveis derivados: abusos de consciência e abusos sexuais.
Queremos recordar brevemente estes dois dias, separados por cinco anos, nos quais se registou uma surpreendente virada nas posições do Pontífice, na sua conduta, especialmente no seu silêncio.
No Chile, o Papa irritado com as perguntas, ainda vestindo as vestes sagradas da missa final, respondeu a um grupo de jornalistas que no caso do acusações dirigidas por três chilenos contra o pedófilo em série Fernando Karadima e também contra seu protegido, dom Juan Barros, “não tive provas”. Mais tarde, no avião de regresso a Itália, o Santo Padre corrigiu a sua linguagem dizendo “não há provas” e reconheceu que ter usado a palavra “provas” não era adequado. Desta forma, ele mudou a sua posição ilustrada no Chile e abriu um novo caminho que levou a investigações sérias, imparciais e autorizadas. E sobretudo levou a uma abordagem sincera às vítimas, muitas delas.
A pessoa lúcida e coerente, delicadamente fraterna e com posições muito firmes e convincentes, que fez o Papa mudar a sua análise e a sua estrutura de pensamento a este respeito, foi o arcebispo de Boston, cardeal Sean O'Malley. O cardeal, presidente da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores desde 2014, esteve no Peru durante os dias da visita do Papa após a sua estadia no Chile, e encontrou uma forma de transmitir a sua triste opinião a Francisco: tratar as vítimas desta forma – Juan Hamilton, Juan Carlos Cruz e José Murillo, mas também muitos outros, incluindo padres – é inadequado e contraproducente. As vítimas, como prioridade da Igreja, devem ser uma escolha visível e transparente, nunca ambígua ou indecifrável.
Ontem ocorreu uma viragem semelhante, mas noutro caso: o do ex-jesuíta Marko Ivan Rupnik, primeiro excomungado e depois perdoado com a revogação da excomunhão (tudo no mês de maio de 2020), deslitado da Companhia de Jesus e incardinado na Diocese de Koper, na Eslovênia, desde 23 de agosto. A Santa Sé, num comunicado multilíngue, afirma: em setembro passado, a Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores denunciou “ao Papa os graves problemas na gestão do caso do Pe. Marko Rupnik e a falta de proximidade com as vítimas. Consequentemente, o Santo Padre pediu ao Dicastério para a Doutrina da Fé que examinasse o caso e decidiu renunciar à prescrição para permitir a realização de um julgamento”.
Neste caso muito atual, o ponto de inflexão está completamente descrito no comunicado de imprensa de ontem já mencionado. O caso Rupnik tornou-se insustentável para o Papa e assim permanecerá até que esta história horrenda de abusos de adultos vulneráveis durante décadas seja encerrada de uma forma transparente e cristalina. Trata-se principalmente de vítimas femininas, muitas vezes suas colaboradoras, cujas assinaturas se encontram ao lado da do padre mosaicista num canto de inúmeras obras instaladas em igrejas e santuários de todo o mundo.
São todas vítimas tratadas com esnobismo, com altivez repugnante e silenciadas. Ele nem sequer se preocupou em responder às suas cartas, em particular às enviadas a grandes especialistas na área dos abusos clericais. Nenhum delas foi convidada para Santa Marta, mas puderam contar experiências muito úteis para a luta contra os abusos na Igreja. Também aqui, como no Chile, não havia provas, não eram pessoas credíveis.
Durante anos a impressão foi a de um poder supremo que só queria proteger o jesuíta Rupnik, um homem rico, famoso, venerado e autoritário. Os estrategistas do caso não fizeram bem os cálculos. Pensaram que para encerrar o assunto bastava dizer que ele não era mais jesuíta. Subestimaram seriamente a questão da excomunhão que foi revogada e nunca esclarecida. E subestimaram o barulho de pelo menos parte da imprensa. Assim como compreenderam tardiamente que em assuntos tão sérios do ponto de vista moral, não bastam os jornalistas “amigáveis” que hoje aplaudem.
A verdade é mais forte que a mentira. Esta verdade é hoje clara: o Papa mudou de rumo porque já não conseguia aguentar a pressão, em particular de centenas de bispos. É inútil escrever que decidiu intervir para corrigir uma má gestão anterior do caso Rupnik. É falso. Foi o Papa Bergoglio quem compreendeu que cometeu graves erros pessoais na gestão deste caso, e isto é sempre bom, consolador e bem-vindo.
Agora há muito a fazer, mas ainda há muitas incógnitas. Por exemplo:
• Rupnik participará no julgamento canônico que o espera? No passado desertou diversas vezes quando convocado pelos jesuítas.
• O processo será tranquilo e transparente?
• O que pode ser dito de verdadeiro e convincente sobre a excomunhão revogada e o que será dito às vítimas e à opinião pública?
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As duas “correções” fraternas do cardeal O’Malley. Dois casos: Karadima e Rupnik - Instituto Humanitas Unisinos - IHU