O primeiro passo para enfrentar os fenômenos climáticos extremos “é fugir da atitude negacionista que ainda caracteriza boa parte dos gestores públicos”, afirma o fundador do Comitesinos
A pressão para preservar um bioma, como a Amazônia, em detrimento de outros, segue uma lógica “totalmente equivocada”, diz o engenheiro agrônomo Arno Kayser ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “Todos os biomas são igualmente importantes, pois eles são a expressão mais equilibrada dos fatores climáticos e ambientais que ocorrem em cada canto do mundo. Toda a cadeia viva da Terra é interligada e interdependente. Existem conexões entre todos eles por agentes biológicos”, explica.
Segundo ele, “uma visão materialista da natureza tende a considerar como mais importantes aqueles biomas com mais biodiversidade”. Áreas de deserto são associadas a “pobreza e vazio”, enquanto florestas são sinônimos de “riqueza”. Esse tipo de incompreensão, adverte, “faz com que o senso leigo tenda a aceitar que alguns biomas devem ser preservados e outros podem ser devastados. O Pampa, que está sendo invadido por lavouras de soja, é um exemplo de como essa lógica opera. Ele é menos valorizado que a Mata Atlântica. A própria legislação ambiental espelha isso. Alguns biomas são considerados patrimônio natural, outros, não”.
Na esfera internacional, esclarece, “essa lógica tem sido usada em negociações políticas em que alguns biomas, como o amazônico, são vistos como dignos de serem preservados, mas outros, como o Cerrado, podem ser postos abaixo. Isso gera uma política de gestão ambiental distorcida que é usada para justificar a continuidade de atividades com forte emissão de gases de efeito estufa mundo afora, como as políticas de compra de redução de emissões por grandes empresas poluidoras”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao IHU, Kayser comenta os eventos climáticos ocorridos no Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul, e os desafios das políticas preventivas. “No campo da prevenção ainda se faz pouca coisa. Já temos um sistema de alerta relativamente bom para prever a magnitude e localização da ocorrência de eventos extremos. Mas ainda não geramos uma cultura de trabalho na fase da prevenção que reduza os danos desses fenômenos. (...) A ajuda ainda depende muito de apoio de iniciativas voluntárias da sociedade que, ainda que muito meritórias, são feitas sem planejamento e de forma muito improvisada”, sublinha.
Arno Kayser (Foto: Divulgação)
Arno Kayser é engenheiro agrônomo formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFGRS, ecologista, membro do Movimento Roessler para Defesa Ambiental e um dos fundadores do Comitesinos, primeiro comitê de bacia do Brasil. É fiscal ambiental da Fundação Estadual de Proteção Ambiental – Fepam.
Nesta quinta-feira, 21-09-2023, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove a videoconferência Novo Regime Climático e as propostas para uma política de sobrevivência, com Luiz Marques, da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. O evento será transmitido na página eletrônica do IHU e no canal do IHU no YouTube às 17h30.
IHU – Nos últimos meses, ocorreram enchentes e ciclones no Rio Grande do Sul, mas eventos extremos também estão ocorrendo em outras regiões do mundo. Como compreender estes fenômenos? Quais são suas causas?
Arno Kayser – Estes fenômenos todos são decorrentes das mudanças climáticas que os climatologistas vêm estudando desde a década de 1970 que, segundo eles, decorrem do aumento da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera desde o início da Revolução Industrial. Este aumento ocorreu principalmente por conta da queima de combustíveis fósseis como carvão e petróleo, que injetaram na atmosfera grandes quantidades de carbono que estavam enterrados há milhões de anos. Mas também decorrem da queima das florestas nativas e das emissões de gases de aterros sanitários e de grandes concentrações de animais confinados.
O efeito estufa sempre existiu na Terra e ajuda a manter o calor decorrente da energia solar radiante junto à superfície do planeta. Funciona com o mesmo princípio das estufas em que a luz entra e se desdobra em calor, ficando retido no seu interior. Mas com esse incremento de gases aumentou a retenção, fazendo com que a dinâmica da circulação da atmosfera e nos oceanos esteja cada vez mais acelerada, aumentando a velocidade e a potência de chuvas, de correntes de ar e marinhas, ventos e tempestades em todo o mundo. O produto disso tem sido os eventos climáticos extremos que vêm ocorrendo cada vez mais ultimamente.
IHU – Qual é o impacto dos eventos climáticos para as pessoas e os territórios que são atingidos? Em termos de políticas públicas, que transformações são necessárias para o enfrentamento dos efeitos desses eventos climáticos?
Arno Kayser – Estes eventos extremos têm grande impacto na vida das pessoas porque nossas infraestruturas não foram planejadas para aguentá-los. Além disso, muitas pessoas vivem em áreas de risco que estão sendo atingidas com mais potência destruidora quando ocorrerem. Muitas regiões não estão preparadas para lidar com as mudanças que têm ocorrido numa velocidade cada vez maior e atingido pontos do planeta que antes não sofriam com eles.
Estes fatores têm nos obrigado a repensar todas as políticas públicas e privadas de uso do solo no campo e na cidade, criando estratégias de adaptação e convívio com os efeitos dessas mudanças. Em paralelo, os eventos extremos nos levam a uma transição na produção de bens e serviços com base em tecnologias que reduzem as emissões de gases de efeito estufa e aumentam sua fixação fora da atmosfera. Isso representa um esforço de governança mundial que vem sendo conduzido desde 1995 pela Organização das Nações Unidas – ONU, mas ainda enfrenta muita resistência de setores e países que têm sua riqueza derivada de processos que emitem muito carbono na atmosfera.
Colapso Climático no Rio Grande do Sul. Causas, desafios e perspectivas:
IHU – Em entrevista recente, ao comentar sobre o Sistema Estadual de Gestão das Águas do RS, criado em 1994, o senhor disse que muitos problemas teriam sido evitados se todas as ações previstas tivessem sido implementadas. Pode dar exemplos de ações previstas que ainda não foram implementadas?
Arno Kayser – O Sistema Estadual de Gestão das Águas do RS ainda não foi plenamente implementado. Faltam as agências de bacia e a cobrança pelo uso da água. Por conta disso, as obras e as ações previstas nos planos de bacia, para garantir água em quantidade e qualidade para todos os usos humanos e para a vida selvagem, vêm acontecendo em ritmo muito lento. Entre elas há muitas obras destinadas à regularização de vazão de rios; construção de obras de proteção contra enchentes; programas de reservação de água no meio rural; programas de recuperação e proteção às áreas estratégicas para a produção de água de qualidade e sua infiltração no solo; ações de relocação de populações em áreas de risco e de controle da ocupação inadequada destas áreas, entre outras iniciativas necessárias para minimizar os impactos das mudanças climáticas. Se o Sistema Estadual de Gestão das Águas do RS estivesse em pleno funcionamento, provavelmente estaríamos muito mais avançados em termos de estratégias para lidar com esses eventos e sofrendo muito menos seus efeitos trágicos como agora.
IHU – Qual é a situação da bacia hidrográfica do Rio Taquari-Antas?
Arno Kayser – Em termos de gestão das águas, é a mesma de todas as bacias gaúchas. Tradicionalmente é uma região bem-organizada em termos de comitê de bacia por conta da iniciativa da base da sociedade da região. Mas, como todos os locais do Estado, também está despreparada para lidar com impactos de eventos extremos, assim como outras regiões onde eles também ocorreram nos últimos tempos.
IHU – Na mesma entrevista, o senhor refere-se à cobrança pelo uso da água. Pode explicar essa ideia? Em que consiste a proposta, a quem seria destinada e por que seria importante neste contexto?
Arno Kayser – A cobrança pelo uso da água é um instrumento de gestão previsto na legislação gaúcha que criou o Sistema Estadual de Gestão das Águas do RS. Basicamente é uma cobrança de um valor por quantidade de água captada do meio natural pelos agentes econômicos que as usam em seus processos produtivos. Parte do princípio de que a água é um bem público, cabendo ao Estado autorizar seu uso aos agentes econômicos, de acordo com critérios técnicos e definições políticas acordadas nos plenários dos comitês de bacia. Os recursos são destinados ao financiamento de obras e ações previstas nos planos de bacia que são construídos em acordos políticos pelos comitês com base em avaliações técnicas sobre a disponibilidade de água numa bacia que garanta tanto os usos humanos possíveis como a preservação da vida selvagem da região. Ela também serve para sustentar as despesas de funcionamento do Sistema Estadual de Gestão das Águas do RS.
IHU – Quais têm sido as respostas locais aos efeitos climáticos?
Arno Kayser – De modo geral, as respostas locais ainda se concentram na ajuda aos atingidos depois que os eventos extremos acontecem. No campo da prevenção, ainda se faz pouca coisa. Já temos um sistema de alerta relativamente bom para prever a magnitude e localização da ocorrência de eventos extremos. Mas ainda não geramos uma cultura de trabalho na fase da prevenção que reduza os danos desses fenômenos. A própria ajuda ainda se faz de modo muito improvisado, usando equipamentos públicos e comunitários para acolher as vítimas, equipamentos que não foram pensados para tal fim. Além disso, a ajuda ainda depende muito do apoio de iniciativas voluntárias da sociedade que, ainda que muito meritórias, são feitas sem planejamento e de forma improvisada.
IHU – Para além da recuperação das matas ciliares, o senhor chama a atenção para a necessidade de arborização das cidades. A arborização pode contribuir para o enfrentamento das mudanças climáticas e dos eventos extremos? Em que sentido?
Arno Kayser – A arborização urbana pode ajudar muito na amenização de eventos de calor extremo nas cidades. A combinação de maior fotossíntese e sombreamento reduz a temperatura média em locais onde ela é mais presente. Isso evita a formação de ilhas de calor nos ambientes urbanos que, em casos extremos, podem levar à morte de pessoas, como tem sido noticiado. A arborização também pode aumentar a proteção contra vendavais por quebrar a força do vento, diminuindo o efeito dele sobre as construções. Para isso, ela precisa ser mantida em boas condições de saúde e ser feita com espécies adequadas, plantadas de acordo com um bom plano diretor de arborização. A falta de cuidados com as árvores leva ao incremento de doenças e fatores de risco que podem aumentar o risco de quedas dessas plantas em situações com fortes ventos.
IHU – No seu artigo “Um bioma é mais importante que outro?”, o senhor chama a atenção para o risco e o uso político, em escala global, da defesa de um bioma em detrimento de outro, como a pressão para preservar a Amazônia, mas pouca pressão para preservar o Cerrado ou o Pampa. Quais os problemas dessa lógica e como ela tem sido fomentada no país e no mundo?
Arno Kayser – Esta lógica é totalmente equivocada. Todos os biomas são igualmente importantes, pois eles são a expressão mais equilibrada dos fatores climáticos e ambientais que ocorrem em cada canto do mundo. Toda a cadeia viva da Terra é interligada e interdependente. Existem conexões entre todos eles por agentes biológicos. Todavia, uma visão materialista da natureza tende a considerar como mais importantes aqueles com mais biodiversidade. Além disso, a nossa própria linguagem, quando faz uso deles de forma metafórica, desconsidera alguns e valoriza outros. Deserto é sinônimo de pobreza e vazio; floresta é sinônimo de riqueza. Isso faz com que o senso leigo tenda a aceitar que alguns biomas devem ser preservados e outros podem ser devastados. O Pampa, que está sendo invadido por lavouras de soja, é um exemplo de como essa lógica opera. Ele é menos valorizado que a Mata Atlântica. A própria legislação ambiental espelha isso. Alguns biomas são considerados patrimônio natural, outros, não.
Em escala global, essa lógica tem sido usada em negociações políticas em que alguns biomas, como o amazônico, são vistos como dignos de serem preservados, mas outros, como o Cerrado, podem ser postos abaixo. Isso gera uma política de gestão ambiental distorcida que é usada para justificar a continuidade de atividades com forte emissão de gases de efeito estufa mundo afora, como as políticas de compra de redução de emissões por grandes empresas poluidoras.
IHU – Os ambientalistas têm dito que o enfrentamento à emergência climática deve ser prioridade do poder público. Em sua avaliação, como este enfrentamento poderia se efetivar na prática? Quais são as políticas, as ações e os programas necessários?
Arno Kayser – É difícil dizer tudo que precisa ser feito por ser uma realidade nova para toda a humanidade. Mas o primeiro passo é fugir da atitude negacionista que ainda caracteriza boa parte dos gestores públicos. É necessário reconhecer que o problema é real e não uma possibilidade futura. A partir daí deve-se começar a desenvolver políticas públicas que tratam do problema.
Uma delas seria justamente dar mais atenção ao Sistema Estadual de Gestão das Águas do RS, fazendo-o avançar. Também é preciso aperfeiçoar os mecanismos de previsão de eventos extremos e combiná-los com uma política de alerta efetiva para as populações em áreas de risco. A Defesa Civil terá que estar melhor equipada e contar com infraestrutura permanente de apoio e de serviços para acolher pessoas atingidas. Também é preciso tomar medidas de recuperação das matas ciliares, banhados e nascentes para melhor regular a vazão dos rios. Na agricultura, devem-se incentivar práticas de proteção ao solo que controlam a erosão e façam a água entrar mais na terra, atenuando o risco de enxurradas.
Será preciso fazer também uma avaliação das áreas de risco para evitar que elas sejam ocupadas ou mesmo para apontar populações que necessitam ser realocadas para áreas seguras. Tem-se que pensar um sistema de controle de vazão de rios com estruturas descentralizadas que possam servir tanto como reserva de águas nos momentos de seca quanto como acumuladores de excessos de chuvas torrenciais pontuais.
Medidas de incentivo à geração de energia sem emprego de combustíveis fósseis são necessárias. Programas de incentivo ao transporte coletivo também precisam ser pensados junto com uma promoção de formas alternativas de deslocamento nas cidades.
É preciso combater todas as formas de poluição, as queimadas e evoluir para sistemas agrícolas que fixem mais carbono e estejam em equilíbrio com a proteção da natureza. Cada vez mais temos que apoiar os povos tradicionais que têm um modo de vida muito menos impactante. É preciso recuperar ambientes degradados para que passem a fixar carbono, e apoiar as unidades de conservação, que também têm um importante papel nesse sentido.
Temos que melhorar a vida das populações mais pobres para fazer delas parceiras nesse trabalho, reduzindo seu grau de risco aos efeitos das mudanças climáticas. Isto tudo numa escala local e nacional.
Em nível global, é preciso acelerar a transição para uma sociedade de baixo carbono em todas as nações. É um processo que ainda depende de muita pressão dos governos para equilibrar o grande lobby das empresas ligadas ao consumo de combustíveis fósseis, que insiste em postergar o cumprimento de metas acordadas nas Conferências das Partes promovidas pela ONU.
Novo Regime Climático e as propostas para uma política de sobrevivência:
IHU – Deseja acrescentar algo?
Arno Kayser – Estamos diante de um desafio global que pede uma mudança civilizatória na nossa relação com a natureza e as demais nações do planeta. Não é uma tarefa fácil, mas precisa ser feita porque os riscos de seguirmos fazendo o que temos feito até hoje podem nos levar a cenários muito mais traumáticos e sem controle. Cremos que a capacidade humana de mudar seu papel na ecologia do planeta é bem grande. Mas ela precisa acontecer num ritmo cada vez mais rápido antes de ser tarde demais.