31 Agosto 2023
"O que, em si, já é uma aberração (aberratio in legis), porquanto é uma absurda afronta imoral à lógica constitucional, especialmente porque a Constituição cidadã não pode ser um guia do mal, sendo invocada como um 'marco temporal' desmoralizante dos pressupostos, princípios, direitos e das garantias constitucionais", escreve Vinício Carrilho Martinez, professor do Departamento de Educação da UFSCar, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 30-08-2023.
O direito originário à terra sacralizada pela cultura que nos constituiu a todos só reconhece o Nomos da Terra. Não há direito fora disso, nem inteligência artificial permissiva a quem tente negar o óbvio.
Esse texto deveria se chamar apenas Marco temporal – esse mesmo que tem um PL (Projeto de Lei) em andamento e que será retomado hoje, 30 de agosto, no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF).
Pois bem, é na esperança de que a casa da lei das leis cumpra sua mais sagrada missão, guardar a Constituição Federal de 1988 (CF88), que escrevemos essa nota; porém, já antevendo que a briga não será fácil, é necessário seguirmos “atentos e fortes”.
Assim, desde já e sempre, aguardemos e lutemos para que o Marco temporal seja alvejado pelo bom senso e não mais nos atormente com outro ameaço de retrocesso moral/social, civilizatório e negacionista.
No “frigir dos ovos”, o Marco temporal atacará direitos fundamentais dos povos indígenas e a territorialidade que já adquiriram ao longo de longas e imensas lutas, retirando-os de suas casas. Ele busca desconstituir todas as demarcações indígenas e de quilombolas consentidas/conseguidas depois de 1988 – ano da promulgação da Constituição Federal de 1988.
O que, em si, já é uma aberração (aberratio in legis), porquanto é uma absurda afronta imoral à lógica constitucional, especialmente porque a Constituição cidadã não pode ser um guia do mal, sendo invocada como um “marco temporal” desmoralizante dos pressupostos, princípios, direitos e das garantias constitucionais.
As autorias do Marco temporal invocam a necessidade da “regulamentação” (desnaturalização, invalidação) do artigo 231 da Carta Política de 1988. Leiamos o texto constitucional:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.
Frisemos que o conceito de Indigenato significa assegurar aos povos indígenas o direito à terra como um direito originário, anterior à formação do Estado, do direito e da própria sociedade nacional miscigenada. Neste sentido, tratar-se-ia – mais do que direito fundamental – de real direito originário, eivado pelo húmus da história secular e do direito enquanto fonte e origem do tônus da vida.
O direito originário à terra sacralizada pela cultura que nos constituiu a todos só reconhece o Nomos da Terra. Não há direito fora disso, nem inteligência artificial permissiva a quem tente negar o óbvio. O direito dos povos originários corresponde ao “espaço vital” deles – e nosso.
Parece não haver confusão quanto ao português do que gravamos acima e na citação do artigo 231 da Constituição Federal de 1988: não deveria haver desinteligência quanto à sua compreensão; não poderia haver tergiversação quanto ao entendimento solene dos direitos ali assegurados, na condição de cláusula pétrea do Nomos da Terra.
Leia-se novamente, por gentileza: “As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis” (artigo 231, § 4º, da Constituição Federal de 1988). Afinal,os golpistas da Constituição também são detratores da língua pátria.
Exatamente por causa da tergiversação constitucional, a proposição de registro de interpretação constitucional incrustrada no Marco temporal se embrenha de forte deturpação constitucional, verdadeira transmutação constitucional – notadamente porque se utiliza de um tipo alvissareiro de interpretação para fins de deturpação da Constituição.
Tratam a lei das leis de 1988 como se fosse um Frankenstein, um monstro morto-vivo em que os braços mutilam as pernas e as pernas chutam a cabeça, como se o preâmbulo fosse o primeiro alvo de um cérebro ausente.
O caput, o espírito da Constituição, da nossa carta política de 1988, não pode sofrer investidas de interesses mesquinhos, destrutivos do meio ambiente, da cultura nacional, dos povos e das etnias que são os verdadeiros criadores deste país.
Os ancestrais dos “caras pálidas” que propõem o Marco Temporal já encontraram os povos originários quando aqui chegaram. Muitos desses caras pálidas já vieram com o intuito do butim, do saque, com a ânsia do enriquecimento rápido, com o gatilho apontado para a morte – e isso nunca pôde ser legitimado, tanto quanto não poderá ser legalizado.
Quando Ulysses Guimarães declarou que “traidor da Constituição é traidor da pátria”, nada mais fez do que chamar nossa atenção para o mais importante: a defesa da Constituição Federal de 1988, dos nossos direitos e garantias fundamentais.
Que no dia do julgamento final do Marco Temporal os traidores da Constituição e do povo brasileiro sejam lavados/levados daqui por um imenso temporal civilizatório. Que tenham decência para entender e respeitar minimamente o que está inscrito na Constituição Federal de 1998.
Além disso, aos jurisconsultos negacionistas, diga-se: lembrem-se do princípio da unicidade constitucional e do princípio do não-retrocesso moral/social – isto é, se a parca educação lhes permitir a nobre lembrança dos princípios gerais do direito.
Concluindo: o título do texto invoca a ocorrência de um grande temporal, e que recaiam sobre nós chuvas de lógica, de moralidade pública e decência diante dos povos originários.
Que os trovões tragam o totem originário, que conduzam este imenso apelo pela “vida originária”, e que nos rendamos ao direito de consciência – esse mesmo direito que nos garante interpretarmos com validade aquilo que lemos (vemos ou ouvimos), para que jamais nos submetamos às deturpações daqueles sempre motivados e interesseiros por golpes e sabotagens.
[ii] § 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
[iii] Artigo 215 da CF88: “§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”.
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Marco temporal – um temporal de indecência. Artigo de Vinício Carrilho Martinez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU