“Aqui a água foi profundamente agitada”. Francisco em conversa com os jesuítas em Portugal

Foto: Reprodução | La Civiltà Cattolica

29 Agosto 2023

Em 05-08-2023, durante sua viagem apostólica a Portugal por ocasião da Jornada Mundial da Juventude, o Papa Francisco, às 17h, encontrou-se com os jesuítas no Colégio de São João de Brito, uma escola administrada pela Companhia de Jesus. Após a primeira recepção, o Provincial, Padre Miguel Almeida, saudou o Papa:

"Santo Padre, querido Papa Francisco, antes de tudo, agradecemos do fundo do coração por ter encontrado tempo, em uma agenda tão cheia e intensa, para estar conosco. Agradecemos de coração por passar esse tempo com seus irmãos, realmente nos sentimos todos irmãos". Então ele apresentou brevemente a Província. "Historicamente", disse ele, "somos uma Província antiga, fomos expulsos de Portugal três vezes e três vezes retornamos. Dizem que a erva daninha é difícil de arrancar, mas isso não aconteceu... Talvez por causa dessas expulsões, sempre fomos uma Província com pouco dinheiro, mas também por causa de nosso forte caráter missionário histórico. E parece-me que duas coisas em particular fazem parte da identidade da Província: em primeiro lugar, a criatividade, talvez porque tivemos que nos adaptar muitas vezes. E em segundo lugar, nossas obras são informais, pequenas, mas sempre próximas às pessoas. Acredito que essa seja uma característica de nosso ministério pastoral, e a consideramos uma grande graça. Somos pouco mais de 130 companheiros. Há 18 que ainda não foram ordenados e outros 18 que ainda não fizeram os Últimos Votos. Quase 40 estão em formação. No contexto europeu, podemos agradecer a Deus, estamos realmente gratos a Ele".

Em seguida, ele apresentou as obras da Província portuguesa: educação, pastoral universitária, paróquias, trabalho social e trabalho com o mundo da cultura. Ele então relatou como a comunidade inaciana e muitos amigos, colaboradores e benfeitores compartilham a missão e são uma graça para a Província. Por fim, falou dos jesuítas e das comunidades: há um bom ambiente, mas "por outro lado, é verdade que algumas relações entre nós foram mais tensas. Tivemos algumas crises que causaram feridas profundas em alguns de nós. Por isso, peço que rezem por nós, porque estamos em um processo de perdão e reconciliação, e não é fácil, somos todos humanos".

O Papa respondeu: "Obrigado por tudo. Mas especialmente pela última coisa que você disse: 'Sim, aqui também existem problemas', e assim você deu um toque de realidade, caso contrário, teria sido a descrição de um museu, onde tudo está em ordem e exibido. Agradeço por isso, pelo realismo. Obrigado por estar aqui, estou pronto para dialogar com vocês. Façam perguntas! Perguntem o que quiserem. Não tenham medo de serem imprudentes ao perguntar. Imprudente, talvez, serei eu ao responder o que penso! De verdade, vamos ter um diálogo fraterno e aberto".

Então, as perguntas espontâneas continuaram.

O diálogo foi publicado por Antonio Spadaro, jesuíta, diretor da revista La Civiltà Cattolica, 28-08-2023. 

Eis a conversa.

Saudações, Santo Padre, meu nome é Vasco, estudo Filosofia, sou o mais jovem da Província e por isso me pediram para falar primeiro: os últimos serão os primeiros... Eu gostaria de lhe fazer uma pergunta. Diante dos desafios de nossa geração, olhando para a nossa sociedade sexualizada, consumista..., de acordo com sua experiência como jesuíta, acredita que nossa formação está estruturada para enfrentar esses desafios? E como podemos cuidar sempre da melhor forma possível de nossa formação como jesuítas em nível afetivo, sexual e corporal?

Na verdade, você está fazendo duas perguntas, não está? Ou melhor, uma afirmação e uma pergunta. Vivemos em uma sociedade "mundanizada", o que me preocupa muito. Preocupa-me quando a mundanidade encontra espaço na vida consagrada. Hoje mesmo foi divulgada uma carta que escrevi para os padres de Roma sobre o clericalismo, que é uma forma de mundanidade [1]. Vejam, a mundanidade espiritual é uma armadilha muito frequente. Devemos aprender a distinguir: uma coisa é nos prepararmos para dialogar com o mundo – como vocês fazem no diálogo com o mundo da arte e da cultura –, outra coisa é nos comprometermos com as coisas do mundo, com a mundanidade.

Fiquei muito impressionado ao ler a conclusão de um livro do padre de Lubac: ele dedica as quatro últimas páginas de Meditações sobre a Igreja – são apenas quatro páginas, leiam-nas – à mundanidade espiritual. Vocês, que fazem discernimento, já se questionaram sobre a sua própria mundanidade espiritual pessoal? Eu sou mundano espiritualmente? Essa é uma pergunta que deixo a vocês. E sabem o que de Lubac diz? Ele diz que esse é o pior mal que pode entrar na Igreja, pior até do que a época dos papas libertinos.

Mas cuidado: é preciso dialogar com o mundo, porque vocês não podem viver isolados. Não devem ser religiosos introvertidos, que sorriem para dentro, falam para dentro, protegem seu próprio ambiente sem convocar ninguém. Portanto, é preciso sair para esse mundo, com os valores e desvalores que ele tem. E você destacou um pouco o problema da vida fácil, da vida burguesa, também "erotizada", como você diz, e é verdade...

Ano passado fiz um discurso – ou melhor, pronunciei duas ou três palavras e depois respondi a perguntas – para todos os padres que trabalham na Cúria. A maioria deles é jovem. Em certo momento eu lhes disse: "Há algo que vocês não dizem, ou seja, o uso do celular e da pornografia no celular. Quantos de vocês assistem pornografia no celular?" Depois que disse isso, me contaram que alguém comentou: "Dá para ver que ele passou horas no confessionário".

Quando eu era noviço, falavam sobre a castidade, a santa castidade. Nos pediam para não olhar para fotos um pouco ousadas... enfim, eram outros tempos. Tempos em que os problemas não eram tão agudos e que, aliás, eram escondidos. Hoje, graças a Deus, a porta está escancarada e não há motivo para os problemas permanecerem ocultos. Se alguém esconde seus problemas, é porque escolhe fazer isso, mas não é culpa da sociedade e nem mesmo de sua comunidade religiosa. É uma das virtudes atuais da Companhia: não coloca os problemas de lado, fala sobre eles, seja com o superior, seja entre vocês.

Hoje, o problema sério diz respeito aos refúgios ocultos da busca de si mesmo, que muitas vezes dizem respeito à sexualidade, mas também a outras coisas. O que fazer? Eu encontro ajuda no exame de consciência, como Santo Inácio pedia. Santo Inácio raramente dispensava disso. Ele dispensava do tempo de oração se você estivesse doente, se não pudesse, mas não dispensava do exame, porque ele ajuda a ver o que está acontecendo dentro de você. E há pessoas consagradas que têm o coração exposto aos quatro ventos, com janelas abertas, portas abertas. Enfim, elas não têm consistência interna.

Ao que você pergunta, eu respondo: "Faça a si mesmo uma pergunta: qual é o espírito que me move? Qual é o espírito que normalmente me move e qual me move hoje ou me moveu aquele dia?"

Não tenho medo da sociedade sexualizada, não; tenho medo de como nos relacionamos com ela, isto sim. Tenho medo dos critérios mundanos. Prefiro usar o termo "mundanos" em vez de "sexualizados", porque o termo abrange tudo. Por exemplo, a ânsia de autopromoção. A ansiedade de se destacar ou, como dizemos na Argentina, de "subir na vida". E pensar que quem sobe acaba se machucando sozinho.

Minha avó, que era uma velha sábia, um dia nos disse: "Na vida, você deve progredir", comprar um terreno, os tijolos, a casa... Palavras claras, vindas da experiência do imigrante, meu pai também era um imigrante. "Mas não confunda progredir", acrescentava minha avó, "com subir. Na verdade, quem sobe, sobe, sobe e, em vez de ter uma casa, criar um negócio, trabalhar ou conquistar uma posição, quando está lá em cima, a única coisa que mostra é o traseiro". Isso é sabedoria.

Boa noite, Santidade, mais uma vez muito obrigado. Me chamo Lorenzo e trabalho com crianças e jovens em um bairro pobre nos arredores de Lisboa. O senhor nos falou muitas vezes da importância da proximidade e da amizade com os pobres e com os migrantes. Eu gostaria de perguntar o que podemos fazer nós, jesuítas, pessoalmente e em nossas comunidades, para que nosso estilo de vida e nosso testemunho sejam cada vez mais um sinal profético, de modo que tenhamos um impacto maior na vida dos mais pobres. Obrigado.

O trabalho com os pobres, que está implícito na Fórmula Inaciana, na Companhia seguiu várias direções, várias trilhas; também houve algumas desvios, mas foi uma busca muito intensa, especialmente no século passado.

Lembro-me que na Argentina, quando eu era estudante, um dos padres foi viver numa favela [2], e olhavam um pouco para ele de lado, um pouco como acontecia com o padre Llanos, em Madri [3]. Ele era considerado um louco. Agora isso não é mais assim. Hoje vemos que a mesma espiritualidade nos leva nessa direção, em direção a um compromisso com aqueles que estão à margem: não apenas à margem da religião, mas também à margem da vida.

Então, na época do padre Janssens, nasceram os centros de pesquisa e ação social, que naquela época abriram um bom caminho de reflexão, e finalmente veio a "inserção" direta, a escolha de viver com as pessoas pobres. Por isso mencionei aquele padre, um daqueles que tiveram a coragem de se inserir. Hoje, a inserção entre os pobres nos ajuda, nos evangeliza. Santo Inácio nos faz fazer um voto, o de não mudar a pobreza na Companhia, a menos que seja para torná-la mais rigorosa. Nisso há uma intuição, um espírito de pobreza que acredito que todos devemos ter.

Em resumo, o que há na espiritualidade inaciana? Sim, há a opção pelos pobres e por acompanhar os pobres. Mas será que é a única maneira de realizar a justiça social? Não é a única maneira. Existem mil maneiras de abordar os problemas sociais. A inserção, provavelmente, tem uma autenticidade maravilhosa, porque significa compartilhar. E permite conhecer e seguir a sabedoria popular.

Vou lhes contar uma coisa. Eu gostava de ir às favelas quando era arcebispo. Um dia, fui de ônibus a uma das favelas e me disseram que o Papa João Paulo II estava muito doente. Celebrei a missa com as pessoas e depois paramos para conversar. Uma senhorinha me perguntou: "O senhor pode me dizer como se elege um Papa?" Eu expliquei... "E o senhor poderia se tornar Papa?" Eu disse: "Qualquer um pode se tornar papa". Ela respondeu: "Vou te dar um conselho: se o senhor se tornar papa, compre um cachorrinho". "Por quê?", perguntei. "Alimente o cachorrinho primeiro", ela respondeu. A velhinha era pobre, de uma favela, mas entendia das coisas da Igreja...

É algo interessante. Os pobres têm uma sabedoria especial, a sabedoria do trabalho, e também a sabedoria de assumir o trabalho e sua condição com dignidade. Quando o pobre fica "amargurado" porque não suporta sua situação – e é compreensível –, então o ressentimento e o ódio podem surgir. Esse também é o nosso trabalho: ao acompanhá-lo, devemos evitar que o pobre seja arrastado por isso, na perspectiva de ajudá-lo a caminhar, a progredir e a reconhecer sua dignidade. Nos bairros pobres, há problemas sérios, que não são mais sérios do que os que às vezes existem nas áreas residenciais, exceto pelo fato de que esses permanecem ocultos.

Existem problemas sérios, mas também há muita sabedoria nas pessoas que vivem de seu trabalho, que tiveram que emigrar, que sofrem, e isso é perceptível na forma como lidam com a doença, com a morte. A pastoral popular é uma riqueza e, portanto, aqueles de vocês que são chamados a exercê-la, façam isso de coração, porque é um bem para toda a Companhia.

Papa Francesco, eu gostaria de lhe fazer uma pergunta como um irmão religioso [4]. Ano passado passei um ano sabático nos Estados Unidos. Houve algo que me impressionou muito lá, e que às vezes me fez sofrer. Vi muitas pessoas, até mesmo bispos, criticarem a forma como o senhor conduz a Igreja. E muitos também acusam os jesuítas, que costumavam ser uma espécie de voz crítica em relação ao Papa, de não o serem mais agora. Até quereriam que os jesuítas o criticassem explicitamente. O senhor sente falta da crítica que os jesuítas costumavam fazer em relação ao Papa, ao Magistério e ao Vaticano?

Você verificou que nos Estados Unidos a situação não é fácil: há uma forte atitude reacionária, organizada, que estrutura um senso de pertencimento afetivo. A essas pessoas, quero lembrar que ser retrógrado é inútil, e é necessário compreender que há uma evolução justa na compreensão das questões de fé e moral, desde que se sigam os três critérios que Vincenzo di Lérins já indicava no século V: que a doutrina evolua "ut annis consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate". Em outras palavras, até mesmo a doutrina progride, ela se consolida com o tempo, ela se expande e se consolida e se torna mais firme, mas sempre progredindo. A mudança se desenvolve a partir das raízes para cima, crescendo com esses três critérios.

Vamos falar concretamente. Hoje é pecado possuir armas nucleares; a pena de morte é um pecado, não pode ser praticada, e isso não era assim antes; quanto à escravidão, alguns Pontífices antes de mim a toleraram, mas as coisas hoje são diferentes. Portanto, as mudanças acontecem, mudam, mas com esses critérios. Gosto de usar a imagem do "rumo ao alto", ou seja, "ut annis consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate". Sempre seguindo esse caminho, que parte das raízes com uma seiva que sobe e sobe, e por isso a mudança é necessária.

Vincenzo di Lérins faz uma comparação entre o desenvolvimento biológico do homem e a transmissão de uma época para a outra do "depositum fidei", que cresce e se consolida com o passar do tempo. Portanto, a compreensão do homem muda ao longo do tempo, e assim também a consciência do homem se aprofunda. Até mesmo as outras ciências e sua evolução auxiliam a Igreja nesse crescimento na compreensão. A visão da doutrina da Igreja como um monólito está errada.

Mas alguns se excluem, retrocedem, são aqueles que eu chamo de "retroativistas". Quando retrocedemos, criamos algo fechado, desconectado das raízes da Igreja e perdemos a seiva da revelação. Se não mudamos para cima, retrocedemos, e então assumimos critérios de mudança diferentes dos que a própria fé nos dá para crescer e mudar. E os efeitos na moral são devastadores. Os problemas que os moralistas precisam enfrentar hoje são muito graves, e para abordá-los eles devem correr o risco de mudar, mas na direção que eu mencionei.

Você esteve nos Estados Unidos e diz que sentiu um clima de fechamento. Sim, percebo que se pode experimentar esse clima em algumas situações. Mas assim se perde a verdadeira tradição e se recorre a ideologias para ter apoio e suporte de todos os tipos. Em outras palavras, a ideologia substitui a , a pertença a um setor da Igreja substitui a pertença à Igreja.

Quero homenagear a coragem de Arrupe. Arrupe encontrou uma Companhia que havia, por assim dizer, estagnado. O geral Ledóchowski redigiu o Epitome... vocês jovens sabem o que é o Epitome [5]? Nem de longe, do Epitome não sobrou nada! Era uma seleção das Constituições e Regras, tudo misturado. Mas Ledóchowski, que era muito organizado, com a mentalidade da época, disse: "Vou compilá-lo para que os jesuítas tenham tudo o que devem fazer bem claro e evidente". E ele enviou o primeiro exemplar a um abade beneditino de Roma, seu grande amigo, que respondeu com um bilhetinho: "Você matou a Companhia com isso".

Em outras palavras, formou-se a "Companhia do Epítome", a Companhia que eu vivenciei no noviciado, também com grandes mestres, que eram de grande ajuda, mas alguns ensinavam coisas que fossilizaram a congregação. Essa é a espiritualidade que Arrupe recebeu, e ele teve a coragem de colocá-la em movimento. Algumas coisas escaparam de suas mãos, como é inevitável, como a questão da análise marxista da realidade. Depois ele teve que esclarecer algumas coisas, mas ele foi um homem que soube olhar para frente. E com que ferramentas Arrupe enfrentou a realidade? Com os Exercícios Espirituais. E, em 1969, ele fundou o Centro Inaciano de Espiritualidade. O secretário desse centro, Pe. Luís Gonzalez Hernandez, foi encarregado de viajar pelo mundo dando Exercícios e abrindo esse novo panorama.

Vocês, os mais jovens, não vivenciaram essas tensões, mas o que você diz sobre alguns setores nos Estados Unidos me lembra o que já vivemos com o Epitome, que gerou uma mentalidade totalmente rígida e quadrada. Esses grupos americanos dos quais você fala, tão fechados, estão se isolando por conta própria. E em vez de viver da doutrina, da verdadeira doutrina que sempre se desenvolve e dá frutos, eles vivem de ideologias. Mas quando na vida abandonamos a doutrina para substituí-la por uma ideologia, perdemos, perdemos como em uma guerra.

Santo Padre, para mim, o senhor é o Papa dos meus sonhos após o Concílio Vaticano II. O que o senhor sonha para a Igreja do futuro?

Muitos estão questionando o Vaticano II sem mencioná-lo. Estão questionando os ensinamentos do Vaticano II. E quando penso no futuro, acredito que devemos seguir o Espírito, ver o que Ele nos diz, com coragem. Na semana passada, li o documento que avalia o estado da Companhia de Jesus, o "De statu Societatis". Ele fala sobre o hoje, mas sempre com abertura. Indica a possibilidade de avançar, a necessidade de continuar nesse caminho. Portanto, meu sonho para o futuro é estar aberto ao que o Espírito nos diz, aberto ao discernimento e não ao funcionalismo.

Tenho em mente o "testamento" de Arrupe, quando na Tailândia ele se dirigiu aos jesuítas que trabalhavam em centros de refugiados. Sobre o que ele falou com eles? Sobre a oração. Para aquelas pessoas que estavam muito envolvidas no trabalho com refugiados, ele falou sobre a oração. No retorno da viagem, ele sofreu um derrame, então isso foi o testamento dele.

Com a oração, o jesuíta continua avançando, não tem medo de nada, porque sabe que o Senhor lhe inspirará no momento certo o que deve fazer. Quando um jesuíta não ora, ele se torna um jesuíta ressequido. Em Portugal, diríamos que ele se tornou "um bacalhau"...

Santidade, agradeço muito por ter vindo até nós. Sou Federico, e recentemente o Provincial me nomeou Mestre dos Noviços. O senhor falou dos Exercícios Espirituais. Santo Inácio os descreve no início como um momento para ordenar a vida, para não ser determinado por um afeto desordenado. Quais afetos desordenados acredita serem mais comuns na Igreja, especialmente na Companhia?

Hoje foi publicada a carta sobre a mundanidade e o clericalismo. São esses dois pontos que quero destacar ao nosso clero. O clericalismo que se infiltra nos padres, mas pior ainda quando se infiltra nos leigos. Os leigos clericalizados são assustadores. Respondo-lhe com esses dois espíritos, a mundanidade e o clericalismo, que podem causar muito dano à Companhia.

Qual espírito me moveu? Tive um grande mestre espiritual, o Pe. Fiorito, autor de muitos livros. Foi ele quem me fez conhecer as obras de um diretor espiritual do século XVIII, do noviciado de Chantilly, um jesuíta, padre Claude Judde, ao qual se deve um escrito muito bom sobre o discernimento das palavras motrizes, ou seja, as palavras que digo a mim mesmo para tomar uma decisão, ou quais me orientam por um caminho em vez de outro.

Volto ao assunto. A preocupação dos grandes jesuítas sobre qual espírito se infiltra pode nos ajudar. Sim, hoje você provavelmente está sendo guiado pelo bom espírito, e deve agradecer ao Senhor. Mas amanhã o outro pode se infiltrar. Não se esqueçam da parábola do Evangelho. Quando o espírito maligno sai de um homem, vagueia pelo deserto e fica entediado. Enquanto isso, o homem começa sua conversão, muda tudo. Depois de um tempo, um dia o espírito diz a si mesmo: "Quero ver como está a casa que eu tinha antes, vamos ver em que condições está". Olha pela janela e não acredita no que vê: tudo em ordem, tudo limpo. Então ele vai procurar sete piores do que ele, e com aqueles diabinhos, com os outros sete demônios, entra na casa. Mas ele entra educadamente, sem se fazer notar.

Portanto, um exame de consciência sério deve nos alertar sobre os demônios que tocam a Companhia, que pedem "permissão", que parecem insignificantes e depois tomam posse da casa. Jesus conclui que a condição daquele homem no fim é pior do que antes. Em outras palavras, tenham cuidado para não escorregar gradualmente. Há um tango argentino muito bonito chamado "Barranca abajo", "descendo o precipício". Quando alguém começa a descer o precipício, está perdido. Escorrega para baixo e, de baixo, o precipício atrai você. Daí a importância do exame de consciência, para que os demônios "educados" não entrem silenciosamente.

É verdade, muitas pessoas – vocês terão visto nos Exercícios, pessoas boas, zelosas – após algum tempo acabam na desolação, acabam vivendo de maneira mundana, de uma maneira não cristã. Como chegaram a isso? Por essa falta de introspecção, de exame de consciência, que é ficar alerta para ver se há sete demônios piores do que o primeiro.

Por isso, recomendo: levem o exame a sério, não o negligenciem, e sejam honestos, porque não se trata apenas de pecado – deixem isso para a confissão –, pois o exame é uma prática diária: o que aconteceu em meu coração hoje? Não abandonem essa prática.

Caro Santo Padre, sou irmão José, o irmão mais jovem da Província de Portugal. Tenho 56 anos de idade e 32 de Companhia. A Companhia de Jesus enfrenta uma grande crise de vocações de irmãos em todo o mundo, particularmente na Europa, e obviamente também em Portugal. No momento, de acordo com as estatísticas da Cúria Geral, os irmãos representam apenas 5% dos jesuítas da Companhia. Eu gostaria de lhe perguntar: o que acha que a Companhia de Jesus pode fazer, no campo vocacional, para sair dessa crise e talvez viver em paz, de modo a ter mais jovens que queiram ser irmãos jesuítas?

Ano passado, o Padre Geral me convidou para falar em uma reunião de irmãos de todo o mundo. Eles estavam realmente entusiasmados não apenas em viver como irmãos, mas também em dar a conhecer essa vocação. Sim, houve um tempo em que na Companhia havia muitos irmãos, muitos.

Quando eu era Provincial, os melhores relatórios para a ordenação de um escolástico me eram dados pelos irmãos ou pelas mulheres que trabalhavam na casa de formação. Lembro-me de um irmão, um verdadeiro homem de Deus, que raramente falava, cumpria suas tarefas sempre com um sorriso, rezava muito. Uma vez lhe pedi para falar sobre um caso. Ele veio me ver e disse: 'Veja, não ordene aquele escolástico. Não o mande embora, mas não o ordene, e espere para ver'. Seis meses depois, o escolástico em questão deixou a Companhia, porque não suportou não ser ordenado no tempo previsto. Uma vida afetiva muito confusa havia surgido.

Os irmãos têm um bom olho, de alguma forma são a memória da Companhia, a memória do dia a dia. Recentemente, La Civiltà Cattolica noticiou o falecimento do irmão Carlo Rizzo. Quantos anos ele tinha, Antonio? Bem, 97! E esse santo homem sabia tudo o que estava acontecendo com os intelectuais com quem convivia! Servia em silêncio.

Eu diria que, para a vocação de irmãos, não precisamos procurar candidatos – o Senhor cuidará disso –, mas precisamos abrir as portas para perceber essa possibilidade em muitos jovens".

Santo Padre, sou João. Eu lhe abracei em Roma alguns anos atrás, mas naquela época não disse meu nome porque estava muito emocionado. Trabalho no centro universitário de Coimbra. Quero fazer uma pergunta difícil. Em seu discurso na cerimônia de boas-vindas na última quinta-feira, aqui em Lisboa, o senhor disse que somos todos chamados como somos e que há lugar para todos na Igreja. Eu trabalho diariamente com jovens universitários no trabalho pastoral, e entre eles há muitos que são realmente bons, muito engajados na Igreja, no centro, e são amigos próximos dos jesuítas, mas se identificam como homossexuais. Eles se sentem parte ativa da Igreja, mas muitas vezes não veem na doutrina uma forma de viver sua afetividade, e não veem no chamado à castidade um chamado pessoal ao celibato, mas sim uma imposição. Dado que em outras áreas de suas vidas são virtuosos e conhecem a doutrina, podemos dizer que todos estão errados porque não sentem, em consciência, que seus relacionamentos são pecaminosos? E como podemos agir pastoralmente para que essas pessoas sintam, em sua forma de viver, um chamado de Deus para uma vida afetiva saudável e frutífera? Podemos reconhecer que seus relacionamentos têm a possibilidade de se abrir e dar frutos de verdadeiro amor cristão, como o bem que podem fazer, a resposta que podem dar ao Senhor?

Eu acredito que sobre o chamado dirigido a "todos" não há discussão. Jesus é muito claro sobre isso: todos. Os convidados não quiseram vir à festa. E então ele disse para ir aos cruzamentos e chamar todos, todos, todos. E para que fique claro, Jesus diz: "sãos e doentes", "justos e pecadores", todos, todos, todos. Em outras palavras, a porta está aberta para todos, todos têm seu espaço na Igreja. Como cada um vai viver isso? Ajudamos as pessoas a viverem de forma que possam ocupar esse lugar com maturidade, e isso vale para todos os tipos de pessoas.

Em Roma, eu conheço um padre que trabalha com jovens homossexuais. É claro que hoje o tema da homossexualidade é muito forte e a sensibilidade em relação a isso muda dependendo das circunstâncias históricas. Mas o que realmente não gosto, em geral, é que o chamado "pecado da carne" seja ampliado, assim como foi feito por tanto tempo em relação ao sexto mandamento. Se você explorasse os trabalhadores, mentisse ou enganasse, não importava, mas os pecados abaixo da cintura eram relevantes.

Portanto, todos são convidados. Este é o ponto. E é necessário aplicar a atitude pastoral mais adequada para cada um. Não devemos ser superficiais e ingênuos, forçando as pessoas a fazer coisas e comportamentos para os quais ainda não estão maduras ou não são capazes. Para acompanhar espiritual e pastoralmente as pessoas, é preciso muita sensibilidade e criatividade. Mas todos, todos, todos são chamados a viver na Igreja: nunca esqueçam isso.

Aproveito sua pergunta para adicionar mais uma coisa que diz respeito às pessoas transgênero. Nas audiências gerais das quartas-feiras, participa uma freira de Charles de Foucauld, irmã Geneviève, que tem oitenta anos e é capelã do Circo de Roma, junto com outras duas irmãs. Elas vivem em uma casa móvel ao lado do circo. Um dia fui visitá-las. Têm uma capela, cozinha, área onde dormem, tudo bem organizado. E essa freira trabalha muito também com meninas que são transgênero. E um dia ela me disse: "Posso levá-las à audiência?" "Claro!", respondi, "por que não?" E grupos de mulheres transgênero vêm sempre. Na primeira vez que vieram, choraram. Eu perguntei o porquê. Uma delas me disse: "Nunca imaginei que o Papa pudesse me receber!" Depois da primeira surpresa, elas se acostumaram a vir. Algumas me escrevem, e eu respondo por e-mail. Todos são convidados! Percebi que essas pessoas se sentem rejeitadas, e é realmente difícil.

Olá, Santidade, sou Domingo, estou começando a etapa de formação que é o "magistério". O senhor sempre nos pede para rezar por si... Poderia compartilhar conosco o que mais pesa em seu coração neste período? O que o faz sofrer mais? De um lado, o que pesa em seu coração e, de outro, quais alegrias está experimentando neste período?

A alegria que tenho mais presente é a preparação para o Sínodo, mesmo que às vezes eu veja, em algumas partes, que há deficiências na maneira como é conduzido. A alegria de ver como belas reflexões emergem dos pequenos grupos paroquiais, dos pequenos grupos de igrejas, e há um grande entusiasmo. É uma alegria.

Nesse sentido, quero reafirmar uma coisa: o Sínodo não é uma invenção minha. Foi Paulo VI, no fim do Concílio, que percebeu que a Igreja Católica havia perdido o sentido de sinodalidade. As igrejas orientais mantêm isso. Daí ele disse: "Precisamos fazer algo" e criou a Secretaria do Sínodo dos Bispos. Desde então, tem havido um progresso lento. Às vezes, de maneira muito imperfeita. Tempos atrás, em 2001, participei como presidente delegado do Sínodo sobre o bispo, servidor do evangelho de Jesus Cristo para a esperança do mundo. Quando estava preparando as questões para a votação do que havia vindo dos grupos, o cardeal encarregado do Sínodo me disse: "Não, isso não deve ser incluído. Tire isso". Em resumo, queria-se um Sínodo com uma espécie de censura, uma censura curial que bloqueasse as coisas.

Durante o percurso, houve essas imperfeições. Eram muitas, mas ao mesmo tempo representavam um caminho. Quando completamos cinquenta anos da criação da Secretaria do Sínodo dos Bispos, assinei um documento elaborado por teólogos especializados em teologia sinodal. Se quiserem ver um resultado significativo após cinquenta anos de trabalho, olhem para aquele documento. E nos últimos dez anos, continuamos a progredir, até chegar, acredito, a uma expressão madura do que é a sinodalidade.

A sinodalidade não se trata de buscar votos, como faria um partido político, nem é uma questão de preferências ou filiações a um certo grupo. Num Sínodo, o protagonista é o Espírito Santo. É Ele o protagonista. Portanto, devemos permitir que o Espírito guie as questões, permitindo que Ele se manifeste como fez na manhã de Pentecostes. Acredito que esse seja o caminho mais genuíno.

Em relação às preocupações, obviamente, uma coisa que me preocupa muito, sem dúvida, são as guerras. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, as guerras têm sido uma constante em todo o mundo. E hoje vemos o que está acontecendo no mundo. Não há necessidade de acrescentar mais palavras.

Eu lhe agradeço muito, Santidade, por ter vindo a Lisboa. Eu também me chamo Francisco. O senhor realmente mudou o ambiente desta cidade, deste país, e diria de todo o mundo cristão. Fui um dos últimos três a fazer os últimos votos. Sinto muito a consciência de estar trabalhando ao seu lado. Por isso, pergunto: qual é a nossa missão como Igreja, como Companhia Universal e como Província Portuguesa? Qual é o nosso papel em colher os frutos desta Jornada Mundial da Juventude? As coisas estão realmente mudando, as pessoas estão realmente entusiasmadas: o que devemos fazer para não perder a grande oportunidade que o senhor nos deu?

A Jornada Mundial da Juventude está envolvendo muitos jovens portugueses. Vocês devem acolher a inquietação dos jovens e ajudá-los a desenvolvê-la, para que essa inquietação não se transforme em uma lembrança do passado. Em outras palavras, a inquietação deve ser capaz de se desenvolver gradualmente. A Jornada Mundial da Juventude é uma semente no coração de cada rapaz e moça. E, portanto, não pode se tornar apenas a memória de uma sensação do passado. Ela deve dar fruto, e isso não é algo fácil. Peço que continuem com os jovens que estão presentes, mas também com aqueles que não participaram. Aqui, a água foi agitada de forma profunda, e o Espírito Santo aproveita isso para tocar os corações. Cada um destes rapazes e moças sai diferente, e esta diversidade deve ser mantida. Agora é com vocês: acompanhem-nos para que essa diversidade seja mantida e cresça. É o momento de lançar as redes, no sentido evangélico da palavra.

Obrigado, Santo Padre, por ter vindo!

Notas

1. Lettera del Santo Padre Francesco ai Sacerdoti della Diocesi di RomaDisponível aqui.

2. Na Argentina, são chamados de "villa miseria" os assentamentos informais compostos por barracos e casas muito pobres. O nome deriva do romance de Bernardo VerbitskyVilla Miseria también es América (1957), onde são descritas as terríveis condições de vida dos migrantes internos.

3. Padre José María de Llanos, conhecido como "padre Llanos" (Madri, 26-04-1906 - Alcalá de Henares, 10-02-1992), foi um jesuíta espanhol, o mais conhecido entre os chamados "padres operários" na Espanha.

4. Os irmãos jesuítas fazem votos religiosos sem receber a ordenação sacerdotal, consagrando suas vidas para auxiliar a missão comum do corpo da Companhia.

5. O Papa refere-se a um tipo de resumo prático usado na Companhia e reformulado no século XX, que foi visto como um substituto das Constituições. A formação dos jesuítas na Companhia foi moldada por esse texto por um certo tempo, a ponto de alguns nunca terem lido as Constituições, que são o texto fundamental. Para o Papa, durante esse período na Companhia, as regras corriam o risco de sufocar o espírito, e a tentação de explicitar e declarar demais o carisma prevaleceu.

6. Padre Miguel Ángel Fiorito, jesuíta, foi o diretor espiritual de Francisco. A revista La Civiltà Cattolica publicou seus escritos em 5 volumes: Disponível aqui.

7. Refere-se a uma etapa de formação de um jesuíta que geralmente implica em envolvimento em atividades apostólicas entre os estudos de Filosofia e Teologia.

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