03 Agosto 2023
"Se os fatos invocados para justificar a reserva masculina como “de direito divino” não são apenas fatos, mas fatos interpretados, e se os dogmas formulados, para tornar perene a hierarquia, não são formalmente dogmas, mas expectativas doutrinárias desproporcionais em relação ao tema, a solução proposta é apenas mais uma complicação do problema. É assim, pelo menos, para todos os lugares onde a Igreja se encontra a viver, não só apesar de si mesma, uma sociedade da dignidade, na qual a liberdade de consciência e história da identidade não podem mais ser reduzidas, por ninguém e contra ninguém", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 01-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Pode ser útil descobrir como a cultura do descarte caracteriza não apenas o mundo pós-tradicional, mas também o mundo tradicional; isto é, não só a sociedade aberta, mas também a sociedade fechada, não só a societas aequalis, mas também asocietas inaequalis.
Na referência à “cultura do descarte”, tão forte no magistério do Papa Francisco, trata-se evidentemente de uma releitura favorecida pela preciosa aplicação do conceito nascido no âmbito da sociedade aberta, como justa denúncia do formalismo vazio da sociedade nascida com base nas ideias de liberdade e igualdade. A denúncia da “cultura do descarte” nasce no âmbito daquele projeto liberal e de sociedade aberta, que produz uma enorme quantidade de dejetos alimentares, de dejetos ecológicos, de dejetos humanos.
É óbvio que a noção nasce como reação às expectativas de um mundo "novo", que se acreditava fundado na liberdade e na igualdade e que, ao contrário, produz escravidão e discriminação: ainda mais graves por serem marginais, invisíveis, removidas, negadas. Essa denúncia é acompanhada, diria naturalmente, pela redescoberta da "fraternidade" como "terceiro conceito" do mundo liberal, que ficou quase esmagado pela "liberdade" e pela "igualdade". O mundo dos direitos e da igualdade de oportunidades, garantidos por princípio, parece não precisar mais pensar no mundo como povoado por “fratelli tutti”. Na realidade, só saindo do absolutismo liberal e igualitário é possível reconhecer tanto a irredutibilidade da relação “fraterna”, quanto o perigo de que o outro seja reduzido a “supérfluo”, a “desperdício” e seja reduzido a “dejeto”.
Não deve surpreender que este raciocínio, totalmente fundado, possa encontrar terreno fértil naquela "resistência ao moderno" que o antimodernismo do século passado tão amplamente difundiu na consciência católica. A ideia de que a "cultura do descarte" seja um produto da "modernidade liberal" pode levar-nos a cultivar a nostalgia do mundo "pré-liberal", que certamente não conhecia esse tipo de "cultura do descarte" e que por isso poderia ser idealizado como mundo da inclusão e da tolerância.
A tradição eclesial, porém, por sua tradição bimilenária, conserva em si os traços evidentes, e as evidências impensadas, de uma cultura diferente do descarte: que não está escondida dentro de procedimentos formalmente liberais e igualitários, mas afirmada decisivamente com base em uma outra forma de pensar o mundo e a tradição. Tal abordagem "marginalizadora" fica clara quando uma preciosa distinção proposta pelo filósofo católico canadense Charles Taylor é usada para interpretar o fenômeno. De fato, ele fala de duas formas diferentes de sociedade, que caracterizam a transição entre a idade pré-liberal e a idade liberal: à sociedade da honra, baseada no princípio da "diferença", sucede a sociedade da dignidade, baseada no princípio da igualdade.
Na sociedade da dignidade, o descarte é produzido de fato, contra os princípios, e com resultados dramáticos para o mundo natural, para os bens de produção e para as pessoas envolvidas com o primeiro e com os segundos. Assim, diferenças abismais são produzidas, contra o princípio de igualdade. Mas na sociedade de honra as coisas funcionam de maneira diferente: é a própria sociedade que exige e produz diferenças, que garante sua ordem e sentido. É difícil reconhecer a "cultura do descarte" na forma de sociedade da honra, porque a diferença que o descarte opera é pensada como "originária" e como "devida": é a diferença entre Deus e o homem, entre homens e mulheres, entre clérigos e leigos, entre livres e escravos, entre filhos legítimos e filhos ilegítimos, entre capazes e portadores de deficiência.
Obviamente, também a sociedade da honra, embora colocando como princípio diferenças intransponíveis, elabora critérios de "fraternidade": mas o faz sem de forma alguma pressupor nem liberdade nem igualdade.
O efeito de “descarte” é o mesmo, apesar de ser pensado de forma diferente. Ser "primogênito" ou ser "mãe solteira" nas duas sociedades diferentes implica um comportamento social e pessoal completamente diferente. O caso da "freira de Monza", em Os Noivos de Manzoni, ou a história de "Philomena" no conhecido filme inglês, constituem o importante vestígio de reflexão profunda sobre o efeito de "descarte" que a sociedade tradicional não só "impõe", mas considera como única possibilidade razoável de gerir as "anomalias" da vocação ou da maternidade. A “vocação forçada” ou a “maternidade negada” são produtos daquela sociedade.
O mesmo também acontece com a doutrina eclesial: em alguns aspectos, nós ainda pensamos no “ministério ordenado” como se estivéssemos na “sociedade da honra” e não na sociedade da dignidade. Produzimos assim uma "cultura do descarte" quando não vemos a mudança de paradigma cultural e podemos imaginar que a "formação do sujeito ministerial" ainda possa ser gerida com as lógicas tridentinas, ou que a reflexão sobre a "reserva masculina" possa silenciar totalmente a mudança de identidade da "mulher excluída", que a consideração magistral reduz à irrelevância.
E esse é o lado obscuro desta "diversa cultura do descarte": ela não é uma consequência de fato de uma orientação formalmente convincente, mas sim o efeito indireto de uma orientação institucional e sistematicamente distorcida. Uma igreja que, para pensar as condições do “sujeito ordenável”, continua na inércia de uma “perene hierarquia dos sexos”, como se ainda vivêssemos da sociedade fechada, mantém um pé na sociedade da dignidade, quando denuncia a cultura do descarte mundana contra os migrantes ou contra o saqueio dos recursos primários, mas mantém um outro pé na sociedade de honra, quando não reflete sobre os princípios institucionais distorcidos que, indireta mas eficazmente, fundam soluções consideradas definitivas, mas assumidas de acordo com uma perspectiva completamente limitada e sem futuro.
Se os fatos invocados para justificar a reserva masculina como “de direito divino” não são apenas fatos, mas fatos interpretados, e se os dogmas formulados, para tornar perene a hierarquia, não são formalmente dogmas, mas expectativas doutrinárias desproporcionais em relação ao tema, a solução proposta é apenas mais uma complicação do problema. É assim, pelo menos, para todos os lugares onde a Igreja se encontra a viver, não só apesar de si mesma, uma sociedade da dignidade, na qual a liberdade de consciência e história da identidade não podem mais ser reduzidas, por ninguém e contra ninguém, a quantités négligeables.
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As duas formas da “cultura do descarte”: na sociedade da honra e na sociedade da dignidade. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU