03 Abril 2023
Responder às perguntas de uma entrevista pode ser um trabalho versátil. Você pode começar, digamos, em um bar, diante de um computador. E continuar no metrô, de um celular, para terminar na metade do caminho entre um táxi e um avião que cruzará os Andes, de Buenos Aires a Santiago do Chile.
É assim que se dá o diálogo com o pesquisador argentino Pablo Blitstein, professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e especialista em história da China medieval e imperial tardia (séculos XIX e inícios do XX). Blitstein também trabalha em outra área: a modernidade.
Assim, antes que o copinho de café derrame por causa de uma turbulência no voo, o estudioso responderá às perguntas da revista Ñ, antecipando sua presença na Noite das Ideias.
A entrevista é de Débora Campos, publicada por Clarín-Revista Ñ, 28-03-2023. A tradução é do Cepat.
Em que momento de sua formação acadêmica a China medieval se transformou em um tema a ser explorado e que aspectos dele foram determinantes em sua escolha?
O meu interesse pela China chamada “medieval” (aproximadamente dos séculos III a X) surgiu durante a minha primeira estadia em Taipei, quando ainda não havia terminado a licenciatura na Faculdade de Filosofia e Letras (UBA). Naquela época, eu tinha uma dupla inquietação: por um lado, uma curiosidade antropológica por mundos desconhecidos, com linguagens e modos de raciocínio próprios; por outro, a necessidade de compreender a pluralidade de itinerários históricos que moldaram nosso mundo.
A China medieval me permitia satisfazer as duas inquietações: era um contexto suficientemente alheio para poder desnaturalizar meus próprios modos de pensar o mundo, e importante o suficiente na história para compreender, através das suas peripécias, como um “medieval” diferente poderia dar lugar a uma “modernidade” diferente.
As instituições chinesas contemporâneas, da organização territorial e administrativa até a relação entre as elites políticas e a população, não são produto do acaso, mas de uma série de trajetórias. Muitas dessas trajetórias remontam aos séculos XIX e XX; outras, ao mundo pós-conquistas mongóis, no século XIV; e outras, finalmente, à Idade Média e à “alta” Idade Média (220-589). Então, eu me interessei por esta última. Hoje, trabalho tanto sobre esse período quanto sobre os séculos XIX e XX.
A economia chinesa é o principal motor do capitalismo atual, senão ao menos um deles. É possível compreender esta evolução e este presente, a partir do estudo da China Medieval?
Depende de como você aborda o problema. Se alguém deseja entender o capitalismo chinês hoje, é claro que o mais importante é entender a conjuntura após a Reforma e a Abertura (a partir de 1978). Para entender essa conjuntura, é preciso entender como uma série de líderes com formação marxista pôde recorrer a mecanismos de mercado para transformar a sociedade.
Contudo, se alguém deseja entender os movimentos históricos de longo prazo, a “Idade Média chinesa” (uma categoria historiográfica popularizada por uma corrente historiográfica japonesa) é fundamental. Esse período medieval marcou a forma como a chamada China “imperial” e outras regiões do Leste Asiático organizaram suas instituições políticas até o século XX. Em alguns casos, foram marcadas pelo tipo de instituições que deixou, por exemplo, na forma de constituir uma administração (modelo histórico das chamadas “meritocracias” atuais); em outros casos, pela forma como as elites posteriores se posicionaram em relação às forças herdadas do mundo medieval.
O fato de o capitalismo ter encontrado seu lugar em uma China politicamente unificada, e não em um território dividido em múltiplas unidades políticas (como é hoje a Europa e como era a China da “alta” Idade Média), deve-se em grande parte aos esforços em preservar a herança medieval da unificação política.
Em relação ao capitalismo, os primeiros a pensar o capitalismo contemporâneo na China foram as elites imperiais do século XIX, e muitas de suas referências intelectuais, políticas e jurídicas provinham da época medieval. A Idade Média havia deixado importantes experiências históricas de regulamentações jurídicas, de políticas fiscais e de gestão pública da terra.
Já desde a antiguidade, as elites se perguntavam quanta supervisão política a produção de riqueza deve ter, quanto as considerações éticas devem pesar na produção e distribuição de riquezas, como a posse da terra e os frutos do comércio devem ser tratados e como os preços podem ser regulados. Suas respostas deram origem, em seu momento, a soluções eficazes para resolver os problemas de conjuntura.
Mesmo quando os atores reivindicam uma descontinuidade com esses modos de pensar, é possível reconstituir como certas reflexões e disposições políticas e econômicas passaram das elites imperiais às elites republicanas, e das elites republicanas às da República Popular. Um fio condutor é que, para grande parte delas, a economia não é uma esfera autônoma, mas simplesmente uma dimensão de toda construção política.
Em alguns de seus artigos, propõe a pertinência de estabelecer uma releitura do conceito de modernidade. Por que considera esta releitura necessária e que elementos precisam ser revistos ou deixados de lado?
Ao menos desde o século XIX, tenta-se definir a modernidade como se fosse algo fechado e definível ou, pior, como se fosse uma coisa que se pode ou não possuir. Diante dessa ideia de modernidade, com meus colegas sociólogos e historiadores, no seminário “Paradoxos da modernidade”, identificamos duas atitudes a partir da terminologia de Claude Grignon e Jean-Claude Passeron: a atitude miserabilista, que a partir de uma definição predeterminada do “pacote” moderno, classifica diferentes grupos e regiões com base no que lhes falta para serem modernos; e a atitude populista, que rejeita o “pacote” moderno como alheio a esta ou aquela “cultura” ou “nação”.
As duas atitudes pensam a modernidade como uma coisa ou um tipo ideal definível e, de fato, apesar de sua oposição mútua, ambas compartilham uma mesma linguagem. Contra esta ideia, propomos um conceito metodológico: a modernidade-presente. Ou seja, propomos tomar a humanidade tal e como é no presente, na unidade social e histórica que lhe confere o fato de pisar em um mesmo solo e compartilhar uma mesma atmosfera terrestre. A partir dessa constatação, propomos considerar que tudo o que acontece no mundo é moderno, pois tudo o que existe caracteriza nosso presente comum no globo.
Com base neste conceito puramente metodológico, a questão, então, não é se perguntar quem é moderno e quem não é, ou como o moderno substitui o não moderno. A questão é explorar como o movimento do presente se inscreve em uma pluralidade de trajetórias sociais que remontam a diferentes passados, e que desembocam em futuros também diferentes.
É justamente nesse seminário que você analisa os paradoxos que as mudanças que conduzem à modernidade tendem a gerar nas práticas sociais. Quais são esses paradoxos e tensões?
Um desses paradoxos aparece com as definições tipológicas da modernidade. Por um lado, a modernidade tem sido tratada como se fosse um tipo ideal, uma substância, uma coisa que alguns possuem e outros não. Por outro, é claro que a modernidade não só tem pontos de partida diferentes (se alguém estuda a história dos concursos e das “meritocracias” acabará chegando à China medieval...), como ainda não sabemos se podemos conferir a ela um final. E conforme o tempo segue o seu curso, o que ontem poderia parecer um traço específico e duradouro da modernidade, hoje, dissipa-se e nos obriga a repensar nossas definições.
Se alguém tivesse perguntado a um veneziano ou genovês, da primeira modernidade, o que caracterizava sua modernidade política, talvez teria dito a “cidade-estado”; se tivesse perguntado a um membro das elites monárquicas chinesas, em inícios do século XX, teria olhado para o Japão de Meiji e dito: a monarquia constitucional. Contudo, a forma “Estado-nação” substituiu a forma “cidade-estado” em quase todo o mundo, e a China, diferente do Japão, tornou-se república.
Se hoje nos perguntassem pela modernidade política, será que deveríamos dizer que é o Estado-nação? Não correríamos o mesmo risco de um veneziano em relação à sua cidade-estado? O que garante que o Estado-nação não seja um fenômeno efêmero, um parêntese em um processo mais longo e complexo? É muito cedo para pensar em definições que encerrem nosso presente. No momento, só nos cabe pensar neste presente aberto, com sua pluralidade de trajetórias, e ser conscientes de que nosso mundo atual, longe de ser a medida de todas as coisas, é apenas uma configuração efêmera de movimentos mais amplos.
Na programação da “Noite das Ideias”, anuncia-se que sua apresentação abordará a abundância entre o Leste Asiático e as Américas. Qual é a origem do mandato que nos incita a crescer e produzir sem parar e de que modo a China e a América respondem a esse imperativo?
Não estou certo de que seja possível pensar em uma origem dessa ideia, mas, sim, em quando se torna predominante no mundo. Esse momento-chave é o século XIX. É um momento em que as elites europeias, com suas preocupações provincianas, passam a dominar os desenvolvimentos políticos, econômicos e intelectuais do resto do mundo. Não se trata apenas da colonização, sem dúvida um fenômeno central e já velho de vários séculos, mas do aprofundamento das interconexões sociais, políticas e intelectuais entre regiões muito distantes. As elites liberais europeias e americanas pensam o mundo com uma espécie de otimismo civilizatório, convencidas de que o progresso humano é retilíneo, os recursos ilimitados e a riqueza multiplicável ao infinito.
Entre as elites do Leste Asiático, o otimismo é mais moderado, sobretudo após as Guerras do Ópio, em meados do século XIX, mas entra no mandato produtivista a partir de outros fundamentos intelectuais, em particular do pensamento legalista sobre a “riqueza e a força” e uma renovação do pensamento confuciano (penso em um personagem central como Wei Yuan). Em resumo: não houve na China “importação” do mandato produtivista, mas, sim, convergência de ideais a partir de trajetórias históricas diferentes.
Tomo, aqui, uma das questões propostas nessa conversa com Jimena Caravaca: você considera que existem formas de pensar a abundância fora das categorias da ciência econômica?
Sim. Em primeiro lugar, porque tanto as elites do Leste Asiático como as elites europeias, muito antes do surgimento da “economia” como ciência, durante séculos, pensaram a produção e a gestão de riquezas, e isso não apenas em contextos “simples” como os da produção agrícola, mas também em contextos complexos de desenvolvimento mercantil.
Em segundo lugar, como bem sabiam os próprios fundadores da ciência econômica, os intercâmbios que chamamos de “econômicos” nada mais são do que intercâmbios sociais, que supõem uma série de comportamentos orientados não apenas pela maximização do lucro, mas também pelos marcos sociais, históricos e jurídicos da produção e do intercâmbio.
Por exemplo, não há nada de natural no fato de que o direito de propriedade seja definido como usus, abusus, fructus, este princípio retomado do direito romano, e que possa destruir o produto do trabalho só porque tem um título legal que permite isto. Por acaso, não é possível abolir o “abuso” da propriedade ou limitar a livre disposição do “fruto” de um “capital”?
No Leste Asiático, como em vários lugares da Europa do Antigo Regime, essas questões podiam ser levantadas como um problema social e político, e podiam ser motivo para repensar um melhor uso da natureza e dos frutos do trabalho humano. A partir do século XIX, certas vertentes da ciência econômica (não todas) reduzem suas análises ao funcionamento do mercado e apagam de seus livros considerações mais gerais sobre a história, a sociedade e a natureza. Esquecem-se das particularidades das coisas, do tipo de objeto que vale a pena produzir, da limitação dos recursos, dos tempos das necessidades sociais e vitais, da interconexão das atividades humanas, remuneradas ou não. Suas análises costumam ficar reduzidas a pedidos de princípios: “se as coisas fossem como supõem os axiomas de nossa disciplina...”. O problema é que as coisas são o que são.
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Existe outra modernidade possível? Entrevista com Pablo Blitstein - Instituto Humanitas Unisinos - IHU