19 Julho 2023
A cientista política italiana Silvia Bolgherini, professora associada do Departamento de Ciência Política da Universidade de Perugia (Itália), acaba de chegar a Buenos Aires para participar do 27º Congresso Mundial de Ciência Política da Associação Internacional de Ciência Política (IPSA). Ela é uma especialista na “antipolítica europeia” e suas implicações dentro do sistema democrático.
Doutora em Ciência Política pela Universidade de Florença, atualmente, trabalha como professora de Ciência Política na Universidade de Perugia e na Escola Nacional de Administração do Ministério do Interior da Itália. Pesquisou e lecionou em universidades da Europa e dos Estados Unidos. Além disso, é editora da Italian Journal of Electoral Studies (IJES).
Bolgherini analisa esse fenômeno que ultrapassa fronteiras não só na Europa, também está presente em grande parte do mundo. É claro, conhece o caso local de Milei e as reações que gera no eleitorado. Considera que a antipolítica é um fenômeno heterogêneo, transversal à sociedade como um todo e que “são os próprios políticos que se manifestam contra a política, seus atores, suas instituições. É o que se chama de antipolítica de cima”.
A entrevista é de Hector Pavon, publicada por Clarín-Revista Ñ, 14-07-2023. A tradução é do Cepat.
A partir de que momento se reconhece a existência do discurso antipolítico na Europa, em geral, e na Itália, em particular? Como os partidos políticos enfrentaram esse desafio?
Nas últimas décadas, em muitas democracias avançadas, houve um aumento substancial da desconfiança política e uma crescente insatisfação com o funcionamento da própria democracia. A antipolítica tornou-se, assim, um conceito muito popular que engloba todas essas dinâmicas de desconfiança na política e, em particular, em sua manifestação como democracia representativa.
No entanto, os conceitos de apatia, despolitização e alienação política circulam nas ciências sociais e no debate público desde os anos 1950 e 1960. De fato, na Europa, o crescimento generalizado do abstencionismo eleitoral, especialmente a partir dos anos 1970, junto à baixa participação nos partidos, tanto dos filiados como dos militantes, a acentuada desconfiança da política e dos políticos e o êxito dos partidos e líderes populistas ou antissistema levaram a essas transformações e ao surgimento da antipolítica.
Hoje, na Europa, fala-se do “paradoxo democrático”.
Com efeito, a nível global, a democracia se expande (hoje, nem tanto), mas os cidadãos dos países democráticos parecem estar mais insatisfeitos com o funcionamento da democracia. De fato, as democracias se tornam cada vez mais “democracias desafiadoras”.
A Itália não é exceção e confirma todos os fenômenos típicos da antipolítica (de baixo), ou seja, o abstencionismo eleitoral, o voto de protesto, a apatia pela política, a desmobilização e a não participação, as atitudes hostis aos partidos e políticos etc. Às vezes, traduzem-se no consentimento de reformas institucionais destinadas a “punir” a classe política.
O referendo constitucional de 2020, na Itália, que obteve 70% para o Sim, reduziu o número de deputados de 630 para 400 e o de senadores de 315 para 200. Uma pesquisa mostrou que mais de 50% dos entrevistados estavam convencidos de que a redução de deputados reduziria os custos políticos e enviaria uma mensagem muito crítica à classe política.
O objetivo de lutar contra a casta era, portanto, mais ou menos equivalente ao de reformar as instituições. O problema com os partidos é que, geralmente, eles próprios utilizam a antipolítica. Ou seja, são os próprios políticos que se manifestam contra a política, seus atores, suas instituições. É o que se chama de antipolítica de cima.
Que antecedentes históricos explicam esse fenômeno?
Esse fenômeno não é novo: sempre existiram figuras políticas que insultaram políticos, assembleias representativas, partidos. Por exemplo, o movimento de Pierre Poujade, na França, em inícios de 1950, o comediante Coluche, dos anos 1980, também na França, que anunciou sua candidatura à presidência em 1981. Na Itália, o movimento/partido Uomo qualunque, dos anos 1940, do comediante/jornalista Guglielmo Giannini, que inspirou o mais recente Movimento 5 Estrelas, fundado pelo ex-comediante Beppe Grillo.
E já em fins do século XX e no século XXI, existem experiências de antipolíticos que se candidataram e que foram eleitos? Na Argentina, temos o caso de Javier Milei que, nas últimas eleições parlamentares, foi eleito deputado...
Muitas. O M5S de Beppe Grillo surgiu exatamente como um movimento antipolítico. Mas, antes, também o caso do primeiro dirigente da Liga Norte, Umberto Bossi. Os dois proferiram discursos retóricos muito típicos da antipolítica, ou seja, contra os políticos profissionais, acusando-os de nunca terem trabalhado, de viverem do dinheiro público, de levarem uma vida privilegiada, em um mundo desvinculado da vida real, de serem incapazes de resolver os problemas das pessoas, uns carreiristas arrogantes e egoístas.
Os partidos são acusados de serem estruturas de poder fechadas, díscolas, autorreferenciais e indistintas umas das outras, todas igualmente merecedoras de desprezo. Nenhum dos partidos que surgiram nos últimos anos se autodenominam partidos, mas, sim, alianças, ligas ou quase sempre movimentos (quando, na realidade, obviamente, são partidos e as partes se tornam clubes).
Contra o Parlamento e a política da capital, as Câmaras são caracterizadas como lugares cheios de burocratas corruptos, incapazes e bem remunerados: são lentas, inconclusivas, máquinas colossais com rituais anacrônicos.
O candidato Milei, como seus paralelos na Europa e na Itália, foi capaz de interceptar o descontentamento generalizado dos cidadãos. Na Argentina, diante da grave situação social e econômica do país, busca criar uma alternativa ao sistema partidário tradicional. Assim como Beppe Grillo, no caso da Itália, diante da crise econômico-financeira de 2008, e Bossi diante da crise do sistema partidário e da corrupção de inícios de 1990.
Qual é o papel das emoções quando votamos? Como se chegou a votar em Trump, Bolsonaro, no Brexit, Vox e a esse entusiasmo por Milei?
O papel das emoções está parcialmente relacionado ao fenômeno da polarização afetiva: uma nova forma de polarização. Antes, a polarização era percebida apenas em termos temáticos, agora, nos últimos anos, surgiu um novo tipo de divisão no público de massas: as pessoas – os eleitores – não gostam e desconfiam de quem está com outros partidos. Uma espécie de animosidade entre os partidos. A tendência dos partidários a dividir o mundo entre um grupo que gostam (seu próprio partido) e um grupo que não gostam (o partido contrário).
As possíveis causas são o reforço das identidades sociais, que são um fator crucial para explicar a polarização afetiva. E a polarização ideológica também influencia na polarização afetiva. Aqueles com identidades partidárias e ideológicas coerentes se tornaram mais hostis ao grupo contrário, e aqueles que alinharam identidades religiosas, raciais e partidárias reagem mais emocionalmente à informação que ameaça suas identidades partidárias e seus posicionamentos temáticos.
Isso também facilitou para que os partidários façam inferências generalizadas sobre o grupo/partido contrário, mesmo que essas inferências sejam imprecisas. Isso explica a polarização. Personagens como Trump, Bolsonaro etc. são divisores por sua personalidade e, claro, pelos temas/posições políticas que carregam.
Esses políticos somam polarização com antipolítica e com atitude populista (no sentido europeu, não sul-americano!), possuem uma retórica populista muito agressiva, fazem declarações negacionistas (por exemplo, sobre a crise climática, a pandemia), assumem posições conservadoras (por exemplo, contra o aborto e as questões de gênero). São, portanto, polarizadores ideológicos e afetivos.
Contudo, também são antipolíticos porque se apresentam como diferentes dos políticos profissionais que estão desvinculados da vida real e, portanto, são incapazes de resolver os problemas das pessoas. Também se expressam com um registro linguístico e discursivo simples, popular, às vezes, deliberadamente vulgar.
Acrescentaria Giorgia Meloni nesta lista?
Giorgia Meloni não se enquadra nesse marco. Ela não é uma intelectual e sua comunicação está muito próxima do cidadão comum, mas não usa as ferramentas típicas da antipolítica. Além disso, seu governo é de “experts” políticos, de políticos profissionais. De fato, quase todos os seus membros, inclusive “o Presidente” Meloni (masculino, como quer ser oficialmente chamada), já ocuparam cargos no governo ou cadeiras no Parlamento, durante uma ou mais legislaturas.
Nós, argentinos, experimentamos polarizações políticas desde o século XIX, que se aprofundaram nas últimas décadas. Aqui, a polarização é chamada de “grieta”. Algo semelhante está acontecendo na Itália que pode desembocar em um crescimento do discurso antipolítico?
No sentido histórico e político em que se entende a grieta argentina (sobretudo, no enfrentamento entre peronistas e antiperonistas), no momento, não existe nada parecido na Itália. Historicamente, e com os cuidados em transferir para outros contextos conceitos tão típicos de um país, podemos pensar na antiga oposição entre os dois principais partidos de massas: a católica Democracia Cristã e o Partido Comunista.
A dinâmica de oposição/concorrência entre os dois partidos também possuía aspectos da atual polarização afetiva, mas com muita diferença em relação ao presente, pois, naquele momento, a ideologia (católico versus comunista) era um grande guarda-chuva sob a qual estavam todas as posições e com a qual se explicava a maioria dos comportamentos, temas, posições políticas etc.
Ao contrário, no sentido que já falamos antes, a polarização é um fenômeno bastante recente e, na Itália, como no resto da Europa, acredito que se existe uma relação com a antipolítica, dá-se ao inverso. É a antipolítica que fomenta a polarização de hoje e não o contrário. Os cidadãos antipolíticos precisam identificar um inimigo.
E na época contemporânea, onde esse inimigo não é mais ideológico (por exemplo, comunismo ou capitalismo), nem religioso (ateísmo ou clericalismo), nem de classe (empresários ou trabalhadores), a antiga hostilidade ao patrão, a sindicalistas, a comunistas e a padres, à igreja etc., agora, pode ser descarregada sobre os políticos e os partidos – e sobre todos aqueles que “se presume” que os apoiam. Assim, explodem dinâmicas polarizantes.
Na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil vemos um crescimento do racismo, da intolerância às dissidências sexuais, à população LGBTIQ+. Existe uma relação com a antipolítica nesses fenômenos?
Indiretamente. São fenômenos muito mais relacionados ao sucesso recente de partidos e forças conservadoras e de direita (muitas vezes, ultradireitistas). Esses atores políticos catalisam raiva, expressões de mal-estar de sociedades e democracias em crise. Podem envolver também sentimentos antipolíticos, mas não necessariamente.
Não vincularia os dois fenômenos de forma linear e estreita. Nesse contexto, em que há forças direitistas no poder, os comportamentos racistas, homofóbicos, intolerantes à diversidade podem ser, lamentavelmente, mais tolerados.
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“A antipolítica fomenta a polarização e até os próprios políticos a manifestam”. Entrevista com Silvia Bolgherini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU