18 Julho 2023
As recentes violências urbanas que atingiram a França após a morte de Nahel M. são uma verdadeira desumanização, deploram a irmã Kahina Bahloul, a teóloga católica Anne Soupa e a rabina Daniela Touati. Elas nos convidam a superar julgamentos precipitados e recriar laços.
O artigo é de Kahina Bahloul, Anne Soupa e Daniela Touati, publicado por Le Monde, 14-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Kahina Bahloul é uma imã mulher e islamologista. Deu vida, com o professor de filosofia Faker Korchane, à mesquita de Fátima, em Paris.
Anne Soupa é teóloga e cofundadora, ao lado de Christine Pedotti, do Comitê de la jupe e do Conférence catholique des baptisé-e-s francophones, movimentos empenhados em melhorar o papel dos leigos e das mulheres na Igreja Católica.
Daniela Touati é rabina da sinagoga liberal Keren Or de Lyon. Foi ordenada em julho de 2019 na Inglaterra.
Diante da violência e das desordens dos acontecimentos recentes, nós, Kahina Bahloul, Anne Soupa e Daniela Touati, fortes nas nossas tradições religiosas (respectivamente islamismo, catolicismo e judaísmo), não podemos ficar em silêncio. A multiplicidade de problemas que se apresentam para toda a sociedade nos aflige. O que dizer diante da violência, senão tentar manter-se vigilantes, com mente aberta, resistir à tentação de acusar com demasiada rapidez e tentar entender? Sabemos que um simples retorno à calma não será suficiente. Precisamos encontrar um acordo profundo sobre o que nos permite viver juntos.
Comecemos pelos fatos: um jovem morto, escolas e câmaras municipais incendiadas, lojas saqueadas. Tudo inaceitável. Constatamos, por trás disso, um fracasso coletivo da sociedade. Esses filhos de República, de nossa escola pública, plenamente franceses, deveriam poder crescer e viver em harmonia, longe dos guetos, sem ser considerados como uma categoria inferior da sociedade. Em vez disso, uma separação funesta se criou entre os franceses.
Ao mesmo tempo, avança em toda a sociedade uma violência surda, mas dolorosa, que compromete severamente sua unidade. Devemos expressar espanto pelo fato de que uma sociedade tão atenta e solicita a resolver as mínimas necessidades daqueles que se assemelham a nós, não tenha conseguido evitar uma tal tragédia conduzida por aqueles que acredita não se assemelhem a ela. Isso não seria o sinal de uma cegueira, de uma indiferença para com aqueles com quem compartilhamos a cidadania? Por esse fracasso coletivo somos todos responsáveis. “Onde está o teu irmão?” pergunta a Bíblia (Gênesis 4:9).
Ousamos dizer que esses acontecimentos, piores que um retrocesso de civilidade, são uma desumanização. “Como ficamos com nossa humanidade quando há apenas violência e se aceita uma tal divisão entre nós? É sobre essa falta de humanidade que as nossas tradições religiosas precisam dizer algo. Primeiro para chamar de volta a atenção e trazer questionamentos. Para dizer que não podemos pensar em viver juntos sem sanar essas faltas graves, no mais breve espaço de tempo e em profundidade. Sabemos que as causas dessas revoltas são multifatoriais. Quando se insiste demais numa solução ou noutra, corre-se o risco de alimentar as já numerosas divisões na sociedade francesa. O que nos cabe fazer é lembrar sobre as tantas atenções de que deve ser objeto a vida humana. Certamente na infância, a idade decisiva. Tornar-se pais não é algo trivial. Estar sozinhos para criar um filho torna o fardo mais pesado para um pai/mãe sozinho.
Diante do espetáculo daqueles incêndios e saques, não podemos deixar de imaginar o grito de ajuda desses jovens. É um grito de alarme sobre o abandono físico, educacional, afetivo, moral, intelectual, espiritual de que padecem, e que os faz adotar aqueles "rituais arcaicos e clânicos" (citamos Boris Cyrulnik no Le Point de 6 de julho). Porque é exatamente disso que se trata. De uma terra não semeada, que não pode dar o que não recebeu, e que se torna presa do que aparecer – e na maioria das vezes são traficantes de drogas.
Os comportamentos que presenciamos mostram que esses jovens não receberam uma palavra que constrói a sua identidade estruturando-os, em um clima positivo e em respeito com a lei. Os poucos pais que vieram para buscar seus filhos (muitas poucas garotas estavam entre os revoltosos) daquela loucura destrutiva foram, por um momento, um alívio para o nosso desconcerto. Eles sabem o valor de salvação do amor e da lei, sua capacidade de se integrar no corpo social.
Mas todos esses jovens deveriam poder se beneficiar de um reconhecimento e de uma lei que os integrasse.
Aquela indigência existencial contra a qual se rebelam, devemos senti-la. É o grito dos jovens que querem viver de forma diferente, que realmente aspiram a mais humanidade. Os saques de cigarros, de sapatos ou outros sinais de ostentação de riqueza são uma das poucas gratificações que pedem a si mesmos. O que eles vão conseguir de duradouro, senão a necessidade de recomeçar?
Mas atenção! Esse frenesi de consumos é o espelho de toda a nossa sociedade que idolatra aparência e dinheiro, à custa de se perder neles. Tanto que, seja porque esses jovens atraem a nossa atenção sobre o acolhimento no corpo social que não soubemos conduzir positivamente, tanto porque refletem o espetáculo das derivas coletivas da sociedade – individualismo, tendência ao fechamento em grupos, perda do sentido de bem comum – essa desumanização é também nossa.
Diz respeito a todos nós, também porque qualquer pessoa, nas situações que descrevemos - às quais se acrescentam uma suspeita permanente, controles repetidos com base na etnia, a chantagem dos traficantes, um ostracismo recorrente, uma guetização que a própria sociedade organizou – qualquer um poderia comportar-se de maneira tão louca. Nós nos recusamos a considerar responsável a imigração. Evidentemente, levamos em consideração o lema da nossa República (liberdade, igualdade, fraternidade) e constatamos com consternação que não é aplicado. Pior, mostre a dupla linguagem que destrói a confiança na palavra. Torna-nos mentirosos. De fato, não há liberdade quando a identidade é dificultada. Não há liberdade quando os traficantes ditam a lei ou quando é queimada a agência dos correios do bairro. E nem mais existe a igualdade quando alguém se sente objeto de contínuas discriminações, policiais, escolares, profissionais. Aqueles jovens das periferias são franceses, portanto devem usufruir das mesmas oportunidades que todos os demais.
Quanto à fraternidade, quem hoje ousaria pronunciar essa palavra sem corar? Não poderíamos fazê-lo diante daqueles jovens, nem diante de seus pais, nem diante de um comerciante cujo local e instrumento de trabalho acabou de ser saqueado, nem diante de um representante eleito agredido em sua casa. É alarmante constatar que a sociedade não apenas ficou aquém de seu lema, mas que também se afastou dele durante esta semana negra. No entanto, queremos ter esperança de que uma tomada de consciência coletiva ainda seja possível.
Convidamos veementemente a superar os julgamentos demasiado precipitados para ouvir uns e outros e, acima de tudo, para recriar vínculos, qualquer forma de vínculo. O trabalho a ser feito é imenso! A missão de todos nós é crescer em humanidade e humanizar-nos uns e outros, dando a cada um o seu espaço, para além da competição, da inveja e do medo. Cada vida humana é inestimável. Cada vida humana é chamada a se realizar. Neste 14 de julho, lembremos que a liberdade, a igualdade e a fraternidade são o húmus de que toda vida humana precisa.
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Motins urbanos: “Como fica a nossa humanidade quando só existe violência e se aceita uma tal divisão entre nós?” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU