14 Julho 2023
Uma integração, ainda que gradual, da mulher no ministério ordenado é mais fiel à tradição do que uma dogmatização positiva e injustificada de sua exclusão.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo é publicado por Come Se Non, 08-07-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É totalmente compreensível que a doutrina cristã, para fundamentar adequadamente a si mesma, esteja muito interessada em “fixar” algumas palavras e algumas ações do Senhor como definitivamente normativas. Mas tanto as palavras quanto as ações nunca são autoevidentes. Requerem uma interpretação, que já começou com a primeira comunidade cristã.
Os primeiros cristãos tiveram que interpretar a vida e as palavras do Senhor por meio de uma obediência criativa. E o fizeram com liberdade, como atestam os quatro evangelhos canônicos, muito diferentes entre si e às vezes difíceis de conciliar.
É óbvio que a solução ideal (ou a pretensão ingênua) do magistério seria a de encontrar uma “palavra pura” ou um “fato puro” que vincule toda a tradição, pelos séculos dos séculos. Mas, mesmo sobre as palavras mais solenes do Senhor, a margem de interpretação sempre permaneceu ampla. Um exemplo esclarecedor são as palavras sobre o pão e sobre o cálice durante a última ceia. A pergunta que se levantou ao longo dos séculos foi: valem para todos ou apenas para alguns? A resposta não foi fácil: “tomai e comei”, “tomai e bebei” não são fáceis de contornar.
Mas bastou concentrar a atenção na “consagração”, degradar a comunhão a “uso do sacramento”, para encontrar a solução que parecia melhor ou talvez apenas mais cômoda: as palavras são vinculantes apenas para quem preside a celebração. Todos os outros podem ou não ter acesso totalmente à comunhão ou comungar sempre “sob uma única espécie”.
Lembro esse exemplo porque diz respeito a “palavras explícitas do Senhor”, que a tradição interpretou fortemente, com autoridade, sem negar a si mesma a faculdade de fazê-lo.
Se Jesus não fala, mas age, como no caso do chamado dos Doze, e o faz dirigindo-se a 12 homens, essa ação certamente tem valor normativo, mas somente graças a uma interpretação da própria ação, que é influenciada pela cultura com a qual é pensada e de quem a formulou. Aqui, acho que é útil sair das abstrações com as quais a Igreja às vezes pensa que pode sair de seu constrangimento.
O “fato histórico”, que fundamenta a tradição do “ministério ordenado”, não pode ser resolvida simplesmente em uma “opção definitiva pelo sexo masculino”. Os Doze, de fato, não são apenas homens, mas são circuncidados e são galileus. Nas fontes evangélicas, o fato é caracterizado por todas essas conotações: homens circuncidados galileus. O que ocorreu imediatamente depois, já na primeira geração cristã? A Igreja teve que interpretar essa “normatividade”: talvez todos os ministros da Igreja devam ser homens circuncidados galileus?
O relato que diz respeito a Paulo, segundo Lucas e segundo o próprio Paulo, esclarece bem como a terceira condição já não valia para Paulo (não sendo galileu), enquanto valiam as duas primeiras (homem circuncidado). Mas precisamente Paulo apareceu, em uma complexa discussão com Tiago e com Pedro, como o defensor da possibilidade de que mesmo a circuncisão não era uma condição necessária nem para a fé em Cristo nem para o exercício do ministério eclesial.
Mas também não foi Paulo quem escreveu que em Cristo “não há mais judeu nem grego; não há mais escravo nem livre; não há mais homem nem mulher, pois todos vocês são um em Cristo Jesus” (Gl 3,28)? Curiosamente, a tradição preferiu dar a palavra aos textos (pseudo)paulinos mais misóginos, do que a essa profecia de unidade, em que as diferenças religiosas, de liberdade e de gênero não são condições de exclusão, mas de comunhão!
Eis, então, uma questão sistemática de grande importância: aquilo que Jesus colocou na atestação neotestamentária como ação de encargo apostólico está vinculado à condição territorial, religiosa ou sexual do sujeito encarregado? O desenvolvimento livre com que as primeiras gerações assumiram a liberdade de se afastar daquilo que havia sido atestado como ação de Jesus não pode ser considerado uma “infidelidade”. Por que deveria ser “definitivamente infiel” uma maturação que ocorreu muito mais tarde, em condições históricas complexas, mas que manifestou a possibilidade, também para as mulheres, de exercer aquela “auctoritas” que por muitos séculos foi reservada apenas aos homens? Esse “preconceito” pode ser resolvido de forma simplista no “fato considerado inequivocamente atestado”?
É bem possível que a Igreja considere necessário vincular a tradição ministerial ao sexo masculino: mas, se não sabe mais explicá-lo, como muitas gerações fizeram corajosamente ao longo da história, usando sempre, porém, graves preconceitos culturais e sociais, leituras bíblicas unilaterais e noções antropológicas hoje inapresentáveis, para justificar a exclusão feminina da autoridade, é difícil que ela possa fundamentá-la simplesmente em um “fato”.
A solução parece cômoda, mas não é eficaz: ou, melhor, desloca toda a eficácia ou para o passado, ou para o silêncio, ou para o medo. E não se defronta com os “sinais dos tempos”. A pertença étnica e a pertença religiosa, que são “fatos” colocados por Jesus na escolha dos Doze, tiveram pouca incidência na tradição: foi possível reconhecer que se era fiel a Jesus ordenando “não galileus” e “não circuncidados”.
Por que se deveria vincular a “divina constituição da Igreja” à reserva masculina, se não se sabe explicá-la senão por meio de uma dupla referência histórica, que se pretende objetiva, mas que, como vimos, não é objetiva:
– o que Jesus fez teria vinculado as tradições posteriores, mas não no nível étnico ou religioso, mas apenas no que diz respeito ao sexo do ministro;
– o que a tradição posterior a Jesus decidiu fazer, em continuidade ou em descontinuidade, foi justificado com argumentos que discriminam fortemente a mulher no plano da autoridade.
Bloquear a hermenêutica da tradição, vinculando até mesmo o mistério da fé à “exclusão da mulher do ministério sacerdotal” parece-me um ato de grande fraqueza e um atestado de medo. Isso pretende afirmar a posição “definitiva” da Igreja com base em “fatos objetivos”, que, pelo contrário, são fruto de uma hermenêutica profundamente marcada por uma cultura do preconceito.
E é curioso que a técnica de “esclarecimento e de bloqueio da discussão” tenha ocorrido com uma escamotagem que se assemelha a um sofisma: afirmo que a exclusão da mulher do ministério sacerdotal é um “produto histórico” definitivamente vinculante, mas peço à teologia que se comprometa a explicar esse “mistério”, ao qual o Magistério não sabe dar outra explicação senão considerá-lo, não se sabe bem como, pertencente à “divina constituição da Igreja”.
O fato originário não vincula senão em uma hermenêutica teológica sustentável: o magistério não tem que explicar tudo – ai se o fizesse! – mas deve ao menos dirigir uma mediação teológica. Em vez disso, todas as razões que o magistério recente levantou parecem fragilíssimas e tendem a uma forte polarização entre “fato” e “dogma”. A exclusão da mulher seria, ao mesmo tempo, um “fato óbvio”, compartilhado desde sempre, por todos e por toda a parte (mas só antes do século XIX), e um “conteúdo vinculante da fé” de sempre. Tanto o primeiro argumento quanto o segundo, porém, não são conclusivos. E é aqui, creio eu, que a hermenêutica teológica e magisterial não está autorizada a considerar a discussão encerrada. Roma falou, mas, tendo se expressado apenas no nível de “dados positivos” que não são unívocos, e no nível de afirmações de uma teologia de autoridade que não é formalmente indiscutível, a discussão permanece aberta hoje mais do que nunca.
Não é estendendo desmedidamente o âmbito da “doutrina definitiva” que se pode resguardar in aeternum do surgimento de novos sinais dos tempos, que não são o começo do fim, mas talvez apenas uma fresta pela qual o Espírito ainda pode falar e persuadir. Uma integração, ainda que gradual, da mulher no ministério ordenado é mais fiel à tradição do que uma dogmatização positiva e injustificada de sua exclusão.
Agostinho já sabia que “ratio” e “auctoritas” são duas formas de aprender. A segunda vem primeiro no nível cronológico, mas apenas a segunda apreende a realidade. Ter antecipado por autoridade uma solução que a razão não sabe justificar cria mais problemas do que se poderia imaginar há 30 anos. A abertura sinodal sobre o “ministério ordenado do diaconato feminino” poderia criar o espaço para que a autoridade escute a razão comum e para que a razão teológica saiba se tornar verdadeiramente portadora de autoridade.
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O fato e a tradição: a questão do ministério ordenado feminino. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU