05 Junho 2023
"Para um Papa considerado santo pela vox populi antes mesmo de sua canonização oficial, ainda é um pouco difícil falar de São João XXIII".
O artigo é de Marco Roncalli, jornalista e escritor, e Elisa Roncalli, publicado por Avvenire, 03-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há 60 anos, no dia 3 de junho, segunda-feira de Pentecostes, às 19h45, morria João XXIII. Suas condições haviam piorado sem deixar esperanças na noite de 31 de maio, quando se constatou uma peritonite. A partir daquele momento, se reuniram ao seu leito de dor os irmãos, a irmã e alguns sobrinhos que chegaram junto com o cardeal Giovanni Battista Montini. Passariam sua primeira noite no Vaticano - alternando-se ao lado da cama do Papa, com os empregados, as freiras Poverelle, o secretário, alguns cardeais - rezando, enxugando o suor, acolhendo suas últimas palavras durante os lampejos de lucidez. Tudo “com a mais serena piedade humana e com a devoção segura da sua fé diante do mistério da morte que se aproxima como se fosse um acontecimento solene e suave”, escreveu Montini presente na sala. Tudo com compostura. A mesma que se respirava na praça.
Aquela das pessoas que vieram em massa prestar as últimas homenagens ao Papa, mas sem histeria. As pessoas que tinham acreditado na sua sinceridade, que haviam se sentido objeto de sua atenção e ternura: para Martin Heidegger os dois fenômenos constitutivos de nossa existência, mas, segundo Heinrich Böll, que haviam ficado ausentes por demasiado tempo nos mensageiros do cristianismo.
Angelo Giuseppe Roncalli partia no final de uma agonia que a forte fibra do seu coração havia prolongado, a agonia de um Papa velada pela primeira vez por todo o mundo. No fim da Missa na Praça São Pedro, de repente a sala semiescura para a qual muitos voltavam o olhar há dias – enquanto lá em cima os olhos do Papa fitavam o Crucifixo diante de sua cama – se iluminou. E as pessoas entenderam que o Santo Padre estava morto. “O Papa da bondade morreu religiosamente e serenamente em seu apartamento, depois de ter recebido os Sacramentos da Santa Igreja Romana”, disse o locutor da Rádio Vaticano, cuja voz ressoou pelos alto-falantes de uma Praça São Pedro lotada e congelada num silêncio impressionante.
Uma bela morte - se assim se pode dizer - tendo ele aprendido a amar realmente a vida, mantendo - como se dizia – “as malas sempre prontas”, familiarizando-se “com o pensamento” da possível partida, “pronto a partir para a vida eterna” abandonando-se com total confiança à “grande misericórdia de Senhor Jesus". Já no final da Primeira Guerra Mundial, no Giornale dell'anima tinha escrito. “Quero uma vida cada vez mais ardente de espírito sacerdotal e apostólico, desejo uma morte santa". E no seu caderno de notas espirituais à beira dos seus oitenta anos anotou: “Tenho de me manter pronto; a morrer ou a viver; em um caso ou outro, para prover à minha santificação". E ainda: “Tenho que me manter pronto para este último trecho da minha vida, onde me esperam as limitações e os sacrifícios, até ao sacrifício da vida corporal, e à abertura da vida eterna”.
Uma despedida, aquela do Papa João, que hoje nos aparece como selo de uma parábola humana e espiritual entregue ao empenho – roubando palavras a Boris Pasternak – de estar “vivo, vivo e nada mais, até ao fim”, mas também a conclusão de uma existência conduzida exclusivamente "como serviço", na consciência de que “é só com obediência e paciência que podem se guiar homens e eventos”, roubando outras palavras do padre Giulio Bevilacqua. E, para quem aqui escreve, uma despedida que é também uma história repassada em família, geração após geração, ouvida muitas vezes pelos parentes presentes, testemunhas de uma despedida descrita depois, nos mínimos detalhes, em tantas conversas com o fiel secretário – depois cardeal centenário – Loris Capovilla. Justamente a ele coube recolher as últimas palavras capazes de prefigurar aquela Igreja tão próxima daquela tão desejado pelo Papa Francisco: “Agora, mais do que nunca, mais do que nos séculos passados, pretendemos servir ao homem como tal e não apenas aos católicos; defender acima de tudo e em todos os lugares o direito da pessoa humana e não apenas aqueles da Igreja Católica”. E ainda: “Não é o Evangelho que muda, somos nós que começamos a entendê-lo melhor”. “Ofereço a minha vida pela Igreja, a continuação do Concílio Ecumênico, a paz do mundo, a união dos cristãos. O segredo do meu sacerdócio está no crucifixo que quis colocar na frente da minha cama, ele olha para mim e eu falo com ele [...] Aqueles braços estendidos dizem que ele morreu por todos; ninguém é rejeitado no seu amor, no seu perdão. Ut unum sint!” ele confidenciara antes de entrar em coma ao seu confessor Monsenhor Alfredo Cavagna.
Na sala de canto do terceiro andar do Palácio Apostólico, além disso, não só tudo aconteceu segundo o "Cerimonial dos bispos" com o cardeal secretário de Estado Amleto Cicognani a dar início ao sufrágio, mas como o próprio Papa pediu repetidamente ao longo de sua vida, os parentes recitaram o “Te Deum” e o “Magnificat”.
No final da noite coube ao escultor Giacomo Manzù moldar a máscara do rosto e da mão direita de João XXIII, marcando no tempo os traços, depois eternizados em bronze: duas obras que – juntamente com os túmulos dos pais do Papa – “preenchem” a cripta do Santuário criado em torno da igreja paroquial de Sotto il Monte, cujos habitantes às centenas estão em Roma desde ontem em peregrinação junto com muitas pessoas de Bergamo e Brescia, em particular de Concesio, cidade natal de Paulo VI. Ontem à tarde foi o Cardeal Angelo Comastri, arcipreste emérito da Basílica de São Pedro no Vaticano, que presidiu a Missa de abertura da peregrinação à Basílica de Sant'Andrea della Valle. Esta manhã, os peregrinos se reunirão em São Pedro, onde às 10 horas haverá uma Missa presidida pelo Cardeal Giovanni Battista Re, prefeito emérito do Dicastério para os bispos, concelebrada pelo bispo de Bergamo, Francesco Beschi e pelo bispo de Brescia, Pierantonio Tremolada, encontrando-se com o Papa Francisco em audiência logo após a liturgia. Na segunda-feira, às 9h, na Basílica de Sant'Ignazio di Loyola, em Campo Marzio, outra missa será celebrada pelo cardeal Marcello Semeraro, prefeito do Dicastério para as Causas dos Santos.
Já. Para um Papa considerado santo pela vox populi antes mesmo de sua canonização oficial, ainda é um pouco difícil falar de São João XXIII. E, no entanto, mesmo a lembrança de sua passagem, além de nos convidar a refletir sobre o trecho de caminho percorrido nos 60 anos que nos separam de suas últimas indicações, só pode confirmar o que tanto em sua vida quanto em sua morte o frei Roger de Taizé tinha definido como "um testemunho de santidade". Recordá-lo significa também considerar santo aquele "pacto de reconciliação" ao qual convidara toda a humanidade em torno do seu leito de morte "que parecia no momento definitivo" (assim falou Capovilla com o conforto de pelo menos cento e vinte mensagens de chefes de países de todo o mundo), mas não foi, e deve ser a aspiração de todos na busca da paz.
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João XXIII morria há 60 anos. Sua vida pela Igreja e pela paz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU