05 Junho 2023
"Só com o passar do tempo, provavelmente foi possível compreender a extensão da virada promovida pelo Papa Roncalli, que em poucos anos - seu pontificado durou de 1958 a 1963, conseguiu projetar a Igreja na modernidade", escreve Francesco Peloso, jornalista, em artigo publicado por Domani, 03-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O reconhecimento dos direitos humanos contidos na Carta das Nações Unidas de 1948 entendido como progresso geral da humanidade, a plena consonância entre doutrina católica e democracia, a ascensão das classes trabalhadoras como fator caracterizador da época moderna, o fim da ideologia colonialista pela qual existiam povos dominadores e povos dominados, o fato novo do protagonismo das mulheres na vida pública: são alguns dos traços fundamentais do legado que João XXIII deixou à Igreja e ao catolicismo modernos.
Para reencontrá-los e percorrê-los, em sua profética visão, basta consultar a famosa encíclica Pacem in terris, de 1963, na qual Roncalli, de quem se celebra neste 3 de junho o sexagésimo aniversário de morte, indicou à Igreja o caminho a seguir na nova época que se ia desenhando nas primeiras décadas do pós-guerra, colocando-se, de fato, na escuta dos “sinais dos tempos”.
O papa que convocou o Concílio Vaticano II também conseguiu, como diplomata, como representante pontifício na Turquia, entre os anos anteriores à Segunda Guerra Mundial e depois durante a guerra, colocar a salvo milhares de judeus, fornecendo-lhes documentos falsos para fazê-los expatriar.
Uma experiência que terá uma continuação nas decisões tomadas quando foi eleito papa, quando quis abolir a fórmula dos "pérfidos judeus" da liturgia da Sexta-Feira Santa. E se o Concílio de 1965, com a declaração Nostra Aetate, finalmente chegou a cancelar a acusação de deicídio dirigida contra os judeus que perdurava há séculos, fornecendo a base comum para as perseguições antijudaicas, sem dúvida isso se deve em parte significativa à ação e ao magistério, portanto à herança, de João XXIII.
Mas há ainda mais, no documento conciliar de fato afirma-se: “Além disso, a Igreja, que reprova quaisquer perseguições contra quaisquer homens, lembrada do seu comum patrimônio com os judeus, e levada não por razões políticas mas pela religiosa caridade evangélica, deplora todos os ódios, perseguições e manifestações de antissemitismo, seja qual for o tempo em que isso sucedeu e seja quem for a pessoa que isso promoveu contra os judeus.".
Nesse sentido, na biografia do futuro Papa, foi certamente decisiva a experiência diplomática a que acenamos, vivida num período dramático da história europeia e mundial. Em 1934, Ângelo Roncalli é nomeado vigário apostólico na Turquia e delegado para a Grécia.
A Turquia, durante os anos das perseguições nazistas, tornou-se uma terra de salvação para muitos judeus e o núncio Roncalli, nesse contexto, engaja-se pessoalmente oferecendo assistência à Agência Judaica e trabalhando para que fossem obtidos vistos de trânsito para inúmeras famílias de origem judaica. Uma atividade que se intensificará a partir de agosto de 1938, ou seja, quando entrará em contato com o novo embaixador da Alemanha em Istambul, Franz von Papen, ex-chanceler da República de Weimar, e ex-vice-chanceler de Hitler de 1933 a 1934. É a ele que, entre outros, Mons. Roncalli pedirá ajuda.
O embaixador alemão testemunhou que "vinte e quatro mil judeus foram ajudados" naqueles anos.
Em 1939 estoura a Segunda Guerra Mundial e Roncalli desfruta para a sua obra de uma parte da neutralidade turca e, ao mesmo tempo, da confiança conquistada junto alguns embaixadores das potências alia das. Em seu diário espiritual, o “Giornale dell'Anima” escreveu um dia: “Pobres filhos de Israel.
Eu ouço cotidianamente seus gemidos ao meu redor. Sinto pena deles e faço o meu melhor para os ajudar".
Ficou famoso o episódio do navio com crianças judias alemãs que chegou ao porto de Istambul durante a guerra. A Turquia, com base em sua própria neutralidade, deveria ter enviado essas crianças de volta para a Alemanha, mas Roncalli conseguiu evitar a deportação e salvá-las. A atividade a favor dos judeus pelo núncio, continuou até o fim do conflito, assim, vinte anos depois, o Concílio, inspirado por João XXIII, colocava uma lápide sobre o antissemitismo e, na própria Nostra Aetate, abria ao diálogo com as outras fés e tradições espirituais.
Só com o passar do tempo, provavelmente foi possível compreender a extensão da virada promovida pelo Papa Roncalli, que em poucos anos - seu pontificado durou de 1958 a 1963, conseguiu projetar a Igreja na modernidade.
No entanto, é verdade que o catolicismo social e político já havia aberto o caminho para a mudança, por exemplo, na Itália com Dom Luigi Sturzo, o partido popular, a democracia-cristã, Alcide De Gasperi, ou - em nível europeu - os pais fundadores da comunidade europeia, juntamente com o próprio De Gasperi, Jean Monnet e Robert Schuman. De fato, pode-se dizer, em certos aspectos, que o laicato católico empenhado tornou possível a novidade do Vaticano II, e aquele traço de uma Europa que busca caminhos de convivência e de paz após os imensos massacres da guerra, deixou sua marca. Mas certamente, João XXIII traz para o plano geral, da doutrina, do magistério da igreja, transformações tão profundas a ponto de influenciar os tempos futuros.
E a Pacem in terris continua sendo, nesse sentido, um texto de surpreendente atualidade, por exemplo quando fala do novo protagonismo feminino: “Em segundo lugar – lemos no capítulo dedicado aos “sinais dos tempos” – o fato por demais conhecido, isto é, o ingresso da mulher na vida pública: mais acentuado talvez em povos de civilização cristã; mais tardio, mas já em escala considerável, em povos de outras tradições e cultura. Torna-se a mulher cada vez mais cônscia da própria dignidade humana, não sofre mais ser tratada como um objeto ou um instrumento, reivindica direitos e deveres consentâneos com sua dignidade de pessoa, tanto na vida familiar como na vida social". Ainda a referência aos direitos humanos, importantes e, de forma alguma, dados como certos: “Um ato de altíssima relevância efetuado pelas Nações Unidas foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em assembleia geral, aos 10 de dezembro de 1948. No preâmbulo desta Declaração proclama-se, como ideal a ser demandado por todos os povos e por todas as nações, o efetivo reconhecimento e salvaguarda daqueles direitos e das respectivas liberdades”.
O universalismo dos direitos humanos e o universalismo católico, portanto, podiam se encontrar e trilhar um caminho comum, reconhecendo-se como parte de uma mesma história.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Assim o Papa João XXIII abriu a igreja aos direitos humanos e à democracia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU