09 Junho 2023
Kristin Kobes du Mez é professora de História na Calvin University, de Michigan. Em seu livro Jesus e John Wayne: como o Evangelho foi cooptado por movimentos culturais e políticos [Editora Thomas Nelson Brasil, 2022], descreve a ascensão da direita evangélica, dos primeiros telepregadores e antifeministas da Guerra Fria à conversão de Trump no presidente da “Maioria Moral”.
A entrevista é de Gorka Castillo, publicada por Naiz, 22-05-2023. A tradução é do Cepat.
Seu livro tem uma abordagem estadunidense, mas a presença do evangelismo na Europa é cada vez mais notável. É um fenômeno mundial em expansão?
O evangelismo conservador é a versão reacionária do cristianismo que está se espalhando por todo o mundo através das missões que as organizações evangélicas estadunidenses exportam para muitas partes do planeta, com mensagens populares e agressivas campanhas de penetração em comunidades locais, através de rádios, televisões e publicações por onde difundem seu credo para dominar o mercado religioso.
E agem com astúcia, combinando as tradições patriarcais com as agendas nacionalistas locais mais retrógradas. Desde a publicação de meu livro Jesus e John Wayne, recebi informações precisas sobre o aumento de sua presença e influência no Canadá, Reino Unido, Austrália, Alemanha, Holanda, China, Brasil, Uganda, Quênia e também na Espanha.
Quais são os valores dos evangélicos?
Nos Estados Unidos, querem restaurar a “América cristã” e ordenar a sociedade segundo as leis de Deus. Isto se traduz em uma ênfase hierárquica da autoridade masculina e uma política baseada na “lei e na ordem”.
São pessoas que se opõem aos direitos de gays, lésbicas, bissexuais e transexuais, ao aborto, à imigração, à redistribuição de renda e a qualquer tentativa de abordar as desigualdades sociais, pois apoiam sem rodeios o capitalismo de livre mercado. Também são muito propensos a negar a existência do racismo.
Além disso, enquanto muitos defendem a democracia liberal, o evangelismo branco estadunidense está cada vez mais inclinado a tendências autoritárias. Apoiam as lideranças fortes, mostram muito pouca preocupação com a supressão de direitos civis e acreditam que a violência política pode ser justificada se é para proteger sua visão do que deve ser os Estados Unidos.
Alguns admiram a maneira em que políticos como Putin, Orbán e Meloni lidam com o poder. A facção mais extremista defende que as leis de Deus estão acima de qualquer compromisso com a democracia, pois está convencida de que está construindo sua obra e que Deus está do seu lado.
Em plena crise de legitimidade do liberalismo, são um perigo para o sistema?
Sim, absolutamente. O elemento cristão mais radical representa um perigo para a democracia liberal. Acreditam que a finalidade de sua doutrina autoritária justifica os meios.
Sentem-se à vontade enfrentando os tribunais, proibindo os setores mais críticos de votar ou fazendo interpretações da Constituição para privilegiar os direitos daqueles que compartilham de sua agenda.
Na Europa, e concretamente na Espanha, o número de seguidores tem crescido. Onde está o seu sucesso?
Dedicam enormes recursos financeiros para promover ensinamentos que fazem crescer o seu movimento religioso. Sempre dominam a tecnologia moderna para disseminar mensagens e são incrivelmente acolhedores quando as pessoas entram pela porta de sua igreja desencantadas com um Estado que não lhes oferece qualquer resposta.
Tenha presente que os evangélicos oferecem um senso de comunidade e identidade a seus fiéis, em uma época caracterizada pela incerteza econômica e a mudança cultural. São formados na crença divina da prosperidade, que promete sucesso aos seus adeptos, tanto neste mundo como no próximo.
É paradoxal que uma doutrina baseada na dominação de classe atraia seguidores entre os setores sociais mais desfavorecidos.
Sim, é assim. Transmitem a ideia de que se alguém é “obediente” e busca a bênção de Deus, receberá sua recompensa na forma de felicidade pessoal e sucesso financeiro. Exaltam os ricos como os santificados por Deus e, portanto, merecedores de sua riqueza, ao passo que os pobres são vistos como culpados por sua penúria, que só podem ser salvos por sua fé.
Misturam habilmente a caridade com a evangelização. Distribuem refeições gratuitas, elaboram programas extraescolares e oferecem ajuda individual à margem das políticas estatais contra a pobreza e a desigualdade.
Na Espanha, a direita política tem participado de cerimônias evangélicas para conquistar o voto de seus fiéis, muitos deles migrantes latino-americanos. É uma cópia do que Trump e Bolsonaro já fizeram?
Essa não foi apenas uma estratégia de Trump e Bolsonaro. Essa tem sido a tática constante da direita religiosa em todo o mundo, desde os anos 1960 e 1970. Aproveitam-se da devoção de seus seguidores para se apresentarem como a única opção política realmente cristã.
Começam seu trabalho se posicionando sobre valores familiares como aborto, sexo e gênero, mas acabam apresentando toda a sua agenda conservadora como a única forma de ser um crente fiel.
Nos Estados Unidos, tem sido uma fórmula incrivelmente eficaz para mobilizar eleitores. E não utilizam apenas pastores e igrejas para espalhar sua propaganda, mas também meios de comunicação em que transmitem mensagens políticas bem afinadas para chegar a centenas de milhões de pessoas.
A principal organização protestante da Espanha se distanciou dessa corrente evangelista politizada porque “viola o princípio da separação Igreja-Estado”. Qual é a sua opinião?
Não posso falar se esta afirmação é genuína ou apenas mera aparência. O que posso dizer é que muitos evangélicos estadunidenses se declaram apolíticos, enquanto se alinham sistematicamente com a extrema-direita e apoiam o Partido Republicano. E defendem seu comportamento dizendo que suas lealdades políticas são meramente “cristãs”, não partidaristas.
No entanto, é importante destacar que também há líderes evangélicos que consideram que tudo isso não passa de uma submissão religiosa, diante de uma política direitista. Não é que esses pastores sejam esquerdistas ou que votem no Partido Democrata, mas pelo menos reconhecem os perigos que a inclinação de sua congregação à direita representa para o país e para sua fé.
E atenção porque muitos dos que lamentam publicamente a politização da fé acabam apoiando os candidatos republicanos e favorecendo os elementos mais extremistas.
Fala-se do poder dos evangelistas nos Estados Unidos, mas não na Rússia, onde também experimentam um crescimento surpreendente.
Por décadas, os estadunidenses se consideraram os oponentes mais resistentes e obstinados do comunismo soviético, por isso é surpreendente ver, atualmente, como alguns evangélicos enaltecem fervorosamente Putin por sua defesa autoritária dos “valores tradicionais”.
Assim como alguns cristãos russos – evangélicos e ortodoxos –, veem Putin como um homem forte que tem tudo o que precisa para enfrentar a esquerda decadente. E muitos deles consideram que apoiar a democracia liberal é fazer o jogo da esquerda.
Há muito dinheiro por trás dessas igrejas?
Há uma grande quantidade de dinheiro por trás dessas igrejas, suas redes e organizações, como o Conselho de Política Nacional, que reúne destacados pastores com bilionários para falar de suas doações privadas. Milhares de evangélicos doam 10% de sua renda mensal para suas congregações.
E esse dinheiro é usado para pagar os pastores e toda a sua equipe de assessores, para construir edifícios, financiar missionários, comprar recursos educacionais e alimentar a divulgação. Além disso, as editoras evangélicas são um grande negócio.
Os best-sellers evangélicos costumam vender milhões de cópias, apesar de serem bastante simples e de qualidade questionável. Os circuitos de conferências que organizam também são extremamente lucrativos, e a música e suas rádios se transformaram em indústrias com um gigantesco alcance.
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“Os evangélicos cresceram em todo o mundo alinhados com a extrema-direita”. Entrevista com Kristin Kobes du Mez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU