19 Mai 2023
Por trás da esmagadora vitória do Partido Republicano nas eleições de 7 de maio, explica Arnaldo Delgado a Brecha, a enorme crise de representação que deu origem à revolta de 2019 ainda é grande. O analista acredita que as apostas ainda são altas e que a potência destituinte desencadeada há três anos ameaça corroer qualquer projeto político que não responda a ela.
A entrevista é de Cristian González Farfán, publicada originalmente por Brecha e reproduzida por Alencontre, 13-05-2023. A tradução é do Cepat.
Os que se manifestaram contra uma nova Constituição terão agora o poder de escrevê-la. O Partido Republicano, de extrema-direita – que se recusou a assinar o Acordo pelo Chile [em dezembro de 2022] para permitir um novo processo constituinte no Chile –, venceu as eleições de 7 de maio, e terá maioria no Conselho Constitucional encarregado de examinar e aprovar o projeto de Constituição que emanará da Comissão de Especialistas.
O partido de extrema-direita liderado por José Antonio Kast obteve 35,4% dos votos e 23 das 51 cadeiras do Conselho Constitucional. Além disso, foram eleitos 11 membros do pacto Chile Seguro (que reuniu a coalizão de direita Chile Vamos, com 21% dos votos). Isso dá à direita um total de 34 cadeiras e supera o quórum necessário (três quintos) para aprovar as disposições do novo projeto. As forças de transformação dentro deste corpo, portanto, ficam sem direito de veto: a Unidade pelo Chile, o pacto de coalizão governamental (Frente Ampla, Partido Comunista, Partido Socialista e outros), obteve 28,59% dos votos e 11 cadeiras. O Partido da Gente [PdG, criado em 2019, liderado por Louis Antonio Moreno], que despontava como uma nova força eleitoral, não conseguiu representantes. É notável a escala histórica do número de votos nulos na votação de domingo – 16,98% do total.
Assim, o cenário político chileno mudou radicalmente entre a revolta social de outubro de 2019, que levou à abertura de um processo constituinte sem precedentes com a participação de povos indígenas e movimentos sociais, e o ano de 2023 em que a extrema-direita terá o controle sobre o Conselho Constitucional.
Para analisar o ciclo político no Chile, Brecha conversou com o pesquisador Arnaldo Delgado, do Centro de Investigación Transdisciplinar en Estéticas del Sur (CITES), que afirma que o "poder destituinte" – ou seja, a contestação do poder no contexto uma grave crise da representação política – se prolonga de 2019 a 2023. Até aumentou. Arnaldo Delgado é mestre em Filosofia pela Universidade do Chile, autor dos livros Comunalización, Prolegómenos sobre el esteticidio e Abecedario para octubre, e colunista do programa online La Cosa Nostra, onde são suas análises sobre as estruturas do poder político recebem grande destaque.
Como explica a inversão desse ciclo político no Chile?
Há uma agitação social e um descontentamento que tem crescido ao longo dos anos. Por trás desse mal-estar, há uma enorme crise de representação. Não se trata apenas de uma questão de desconfiança dos representantes de turno, mas também de uma forma de habitar coletivamente o mundo. Buscamos articular uma forma de representação política que nos permita superar esse mal-estar. Mas existe um verbo central para explicar esse ciclo: contestar. Acredito que o que é transversal nesses quatro anos é esse caráter de contestação, que a esquerda tentou capitalizar através do processo constituinte anterior, mas não conseguiu porque o meio de sair desse mal-estar foram promessas de longuíssimo prazo.
Além disso, quando Gabriel Boric chegou ao governo [em 11 de março de 2022], os partidos de esquerda se esvaziaram. Todos os quadros foram trabalhar para o Estado e com isso a destituição é posta de lado, e os que lutaram pela destituição em 2019 começam a se integrar ao poder. Boric passou de desafiante a desafiado. O cetro destituinte fica vago, e esse cetro é assumido pelo Partido da Gente e pelo Partido Republicano.
Em suma, há um círculo vicioso destituinte. Está relacionado ao que chamo de poder destituinte. Hoje, esse poder destituinte se radicalizou porque nenhum setor é capaz de ter uma proposta institucional criativa capaz de gerar uma nova ordem, nem mesmo os republicanos.
Diria que esse poder destituinte da direita agora está sendo capitalizado pela extrema-direita?
Em primeiro lugar, é preciso dizer que a Convenção Constitucional (Assembleia Constituinte) anterior foi imediatamente corroída pelo poder destituinte. Os constituintes tornaram-se parte da elite. O neoliberalismo chileno é um projeto muito valioso para a direita; foi preciso muita imaginação e trabalho acadêmico para chegar ao “paraíso neoliberal” que se instalou no Chile. A direita não está interessada em inventar nada de novo. Ela está interessada na restauração. Por isso seu bordão é “restituir”, “restaurar”, “recuperar”, tudo aquilo que começa com re. Mas re significa também "repetir", "reverter". A única maneira da extrema-direita tornar viável qualquer esperança – ilusória – é a reversão e a repetição de um padrão que está na gênese do mal-estar social. Em termos constituintes, não há capacidade para projetar o país em 30 ou 40 anos.
Você também argumentou que o “eu povo” presente durante as revoltas é agora um “eu nação”. Como isso se expressa nos resultados de domingo?
O que importa é a incerteza. Em 2019, tentou-se responder a isso por meio da solidariedade compartilhada e da articulação dos bairros. Mas quando a crise econômica se intensifica devido à pandemia, a incerteza é individualizada. O discurso do “eu povo” já não se enquadra tão bem na forma como a incerteza é abordada. E então a direita entra em cena e, através do discurso da segurança pública, restabelece o “eu nação” como elemento de articulação da comunidade chilena. Além disso, a esquerda não tem linguagem para abordar a questão da segurança pública, por isso é pouco convincente nesta questão.
Como vê a discussão no Conselho Constitucional com a esmagadora maioria dos republicanos? Que papel desempenhará a direita mais moderada?
Há duas almas dentro da direita que disputam o tipo de restituição que o Chile terá nos próximos anos. Antes de 7 de maio, uma era liderada pelo Chile Vamos e por setores da antiga Concertación [formada pelo PS, PDC, PPD...], e a outra pelo Partido Republicano e pelo Partido da Gente. No primeiro caso, a restauração é uma democracia tutelada com um neoliberalismo “democrático”. No segundo caso, trata-se de uma restauração dos anos 1980, com uma ortodoxia neoliberal e um regime de segurança autoritário. A partir de domingo, o caráter da restauração começou a ganhar forma com a vitória dos republicanos.
O que estava em jogo nesta eleição não era tanto a questão constitucional, já meio resolvida, mas se o Conselho Constitucional iria ser um espaço temporário para testar o programa de governo do Partido Republicano. Com esta vitória esmagadora, o Conselho Constitucional será um laboratório, um campo de ensaios da ideologia republicana para os próximos candidatos às eleições autárquicas, legislativas e presidenciais.
Que margem de manobra o governo de Boric tem neste contexto?
Acho que ele não tem margem de manobra. Tudo o que tem a fazer é resistir. Com a aprovação da Lei Nain-Retamal [uma lei conservadora apoiada pelo partido no poder que garante aos carabineiros a legítima defesa privilegiada em caso de crime grave, isto num contexto marcado por um clima de “insegurança” amplamente divulgado], qualquer possibilidade de manobra foi enterrada. Mas, ainda mais, o pecado capital do governo é ter renunciado à contestação porque, com base na boa-fé democrática, evita o antagonismo político.
Apesar da vitória, você disse que o projeto republicano vai esbarrar no poder intacto destituinte. O que vai acontecer?
Em algum momento, o Partido Republicano terá que apresentar suas credenciais e suas origens. Uma das fraquezas do governo Boric é sua incapacidade de implementar seu programa e melhorar as condições de vida cotidiana dos cidadãos. Em outras palavras, os direitos sociais seguem sendo negligenciados. E a demanda por seguridade social vai bater na porta do próximo presidenciável, seja quem for. E assim como a esquerda não tem linguagem para falar da segurança pública, a direita não tem linguagem para falar seguridade social.
A direita será afetada pelo mal-estar em algum momento. A potência restauradora será consumida pela potência destituinte. Por isso, não morro pelo resultado de 7 de maio, porque o caminho é longo. Objetivamente, quatro anos na história de um país não é tanto tempo assim. Ainda há muitos problemas. Mas, em pouco tempo, a extrema-direita pode provocar grandes retrocessos.
Você mantém a ideia de que a sociedade chilena não foi para a direita em 2023 nem para a esquerda em 2019?
Sim, há algo mais profundo, que é uma mudança civilizacional. É a incerteza que está em jogo. O que queremos como sociedade é um espaço relativamente seguro. Não posso dizer que a sociedade chilena pendeu para a direita. Teremos que ver isso nos próximos dez ou quinze anos. O que está acontecendo é que as demandas sociais de hoje coincidem com as reivindicações históricas da direita. Mas nem as vitórias nem as derrotas políticas se jogam hoje em desafios específicos. A derrota eleitoral de 4 de setembro de 2022 [a rejeição da proposta constitucional anterior] não foi necessariamente uma derrota política, mas abriu um espaço que a direita passou a ocupar. A direita tem aproveitado muito bem esse espaço e, nos últimos meses, vem ganhando espaço. Mesmo que essa nova proposta constitucional fosse aprovada e José Antonio Kast se tornasse presidente, eu hesitaria em dizer que a sociedade chilena se tornou de direita.
Se persistir a falta de diálogo do Partido Republicano no Conselho, você acha que o texto pode ser rejeitado e isso pode ser explorado pelas forças transformadoras?
Hoje, não há poder institucional capaz de promover um processo constitucional. Mas também não há forças elaboradas de transformação. Hoje, a contestação foi capturada pelos republicanos. O Partido Comunista e a Frente Ampla perderam essa capacidade. Se eles e os movimentos sociais não a recuperarem, não sei se poderão aproveitar a situação que se abrirá quando o poder de desmantelar a constituição corroer a potência restauradora dos republicanos. Estamos em um período sombrio, não porque os republicanos venceram, mas porque a esquerda não consegue articular uma força de contestação: os partidos foram esvaziados de seu poder, não há sindicatos, não há federações estudantis. Seria bom pensar em um recolhimento estratégico pensando nos próximos dez ou quinze anos.
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Chile. “Depois da vitória do Partido Republicano, o Conselho Constitucional será um laboratório da extrema-direita”. Entrevista com Arnaldo Delgado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU