08 Mai 2023
Na manhã de sexta-feira, 5 de maio, o Papa Francisco recebeu em audiência os membros da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores. Suas palavras eram esperadas, sendo a primeira vez que ele se encontrava com a comissão após a renúncia do Pe. Hans Zollner no último dia 14 de março.
Publicamos aqui o discurso que dirigiu aos presentes.
O texto, em italiano e inglês, é publicado por Sala de Imprensa da Santa Sé, 05-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Caros irmãos e irmãs, bom dia!
Tenho o prazer de dar as boas-vindas a todos, especialmente aos novos membros da Comissão, bem como aos que continuam o seu serviço e ao grupo de colaboradores de todo o mundo, que são um novo e bem-vindo acréscimo.
Este é o nosso primeiro encontro desde que vocês foram instituídos no Dicastério para a Doutrina da Fé, e gostaria de lhe oferecer algumas indicações. As sementes lançadas há cerca de dez anos, quando o Conselho dos Cardeais recomendou a criação desse órgão, estão crescendo, podemos ver isso. Por isso, justamente para enfrentar os desafios atuais com sabedoria e coragem, é importante nos determos um instante e refletir sobre o passado. Todos nós aprendemos muito nos últimos dez anos, inclusive eu!
O abuso sexual de menores por parte do clero e a sua má gestão por parte dos líderes eclesiásticos têm sido um dos maiores desafios para a Igreja do nosso tempo. Muitos de vocês dedicaram suas vidas a essa causa. As guerras, a fome e a indiferença perante o sofrimento alheio são realidades terríveis do nosso mundo, são realidades que clamam ao Céu. No entanto, a crise dos abusos sexuais é particularmente grave para a Igreja, porque mina sua capacidade de abraçar plenamente a presença libertadora de Deus e ser suas testemunhas.
A incapacidade de agir corretamente para deter esse mal e socorrer suas vítimas deturpou o nosso próprio testemunho do amor de Deus. No Confiteor pedimos perdão não só pelos erros cometidos, mas também pelo bem que não fizemos. Pode ser fácil esquecer os pecados de omissão porque num certo sentido eles parecem menos reais; mas são muito concretos e ferem a comunidade tanto quanto os outros, se não mais.
Não fazer o que deveríamos ter feito, especialmente pelos líderes da Igreja, escandalizou a muitos e, nos últimos anos, a consciência desse problema estendeu-se a toda a comunidade cristã. Ao mesmo tempo, porém, não ficamos em silêncio ou inativos. Recentemente, confirmei o Motu Proprio Vos estis lux mundi (VELM), que passou a ser um regulamento permanente. Nele, especialmente, solicita-se à predisposição de locais para o acolhimento de denúncias e o cuidado de quem se diz prejudicado (cf. art. 2). Certamente há melhorias que podem ser aportadas com base na experiência, com as Conferências episcopais e os próprios bispos.
Hoje, ninguém pode dizer honestamente que não é tocado pela realidade dos abusos sexuais na Igreja. Portanto, em seu trabalho, ao lidar com as muitas facetas desse problema, gostaria que vocês tivessem em mente os três princípios a seguir, considerando-os como parte de uma espiritualidade de reparação.
Primeiro, onde a vida foi ferida, somos chamados a lembrar o poder criativo de Deus para fazer emergir a esperança do desespero e a vida da morte. A terrível sensação de perda experimentada por tantos devido aos abusos às vezes pode parecer insuportável. Também os líderes da Igreja, que compartilham um senso comum de vergonha pela incapacidade de agir, foram diminuídos e a nossa própria capacidade de pregar o evangelho foi prejudicada.
Mas o Senhor, que em todo tempo faz nascer coisas novas, pode dar vida aos ossos secos (cf. Ez 37,6). Por isso, mesmo quando o caminho a percorrer é árduo e desgastante, exorto vocês a não se bloquear, a continuar a estender a mão, a tentar infundir confiança naqueles que encontram e que partilham com vocês essa causa comum. Não desanimem quando pouco parece estar mudando para melhor. Perseverem, vão em frente!
Em segundo lugar, o abuso sexual trouxe dilacerações no nosso mundo e não apenas na Igreja. Muitas vítimas permanecem aviltadas com o fato de que um abuso ocorrido há muitos anos ainda hoje cria obstáculos e rachaduras em suas vidas. As consequências dos abusos podem ocorrer entre cônjuges, entre pais e filhos, entre irmãos e irmãs, entre amigos e colegas. As comunidades ficam desnorteadas; a natureza insidiosa do abuso destrói e divide as pessoas, em seus corações e entre elas.
Mas nossa vida não foi destinada a permanecer dividida. O que está quebrado não deve ficar em pedaços. A criação nos diz que todas as partes de nossa existência estão conectadas de forma coerente, e a vida de fé conecta até este mundo com o vindouro! Tudo está conectado. O mandato recebido por Jesus do Pai é que nada e ninguém de tudo isso fique perdido (cf.João 6,39). Portanto, onde a vida foi quebrada, peço-lhes que contribuam concretamente para reconjugar os pedaços, na esperança de que o que foi quebrado possa ser recomposto.
Recentemente, encontrei-me com um grupo de sobreviventes de abusos que pediram para se encontrar com a direção do instituto religioso que dirigia a escola por eles frequentada há cerca de 50 anos. Menciono isso porque eles o referiram abertamente. Eram todas pessoas idosas e algumas delas, conscientes da rápida passagem do tempo, expressaram o desejo de viver os últimos anos de suas vidas em paz. E a paz, para eles, significava retomar a relação com a Igreja que os havia ofendido, queriam fechar não só com o mal que sofreram, mas também com as demandas que carregavam dentro de si desde então. Eles queriam ser ouvidos, acreditados, queriam alguém que os ajudasse a entender.
Conversamos e eles tiveram coragem de se abrir. Em particular, a filha de um dos abusados falou sobre o impacto que a experiência de seu pai teve em toda a família. Reparar os tecidos dilacerados da história é um ato redentor, é o ato do Servo sofredor, que não evitou a dor, mas assumiu todas as culpas (cf. Is 53,1-14). Este é o caminho da reparação e da redenção: o caminho da cruz de Cristo. No caso específico, posso dizer que para esses sobreviventes houve um verdadeiro diálogo durante os encontros, ao final dos quais eles disseram que se sentiram acolhidos como irmãos e que recuperaram um sentido de esperança para o futuro.
Em terceiro lugar, exorto vocês a cultivar o respeito e a gentileza de Deus em vocês mesmos. A poetisa e ativista estadunidense Maya Angelou escreveu: "Aprendi que as pessoas irão esquecer o que você disse, as pessoas irão esquecer o que você fez, mas as pessoas nunca irão esquecer como você as fizeram se sentir. Portanto, sejam delicados em suas ações, levando os fardos uns dos outros (cf. Gal 6,1-2), sem reclamar, mas pensando que esse momento de reparação para a Igreja dará lugar a outro momento da história da salvação. O Deus vivo não esgotou sua reserva de graças e bênçãos! Não esqueçamos que as chagas da Paixão permaneceram no corpo do Ressuscitado, porém não mais como fonte de sofrimento ou de vergonha, mas como sinais de misericórdia e de transformação.
Agora é o momento de remediar o dano causado às gerações que nos precederam e àqueles que continuam sofrendo. Este tempo pascal é sinal de que um novo tempo se prepara para nós, uma nova primavera enriquecida pelo trabalho e pelas lágrimas partilhadas com os que sofreram. Por isso é importante que nunca paremos de seguir em frente.
Vocês empenham as suas capacidades e as suas competências para contribuir a reparar uma terrível chaga da Igreja, colocando-se ao serviço das várias Igrejas particulares.
Desde a vida ordinária de uma diocese nas suas paróquias e no seu seminário, até à formação dos catequistas, professores e outros agentes pastorais, a importância da tutela dos menores e das pessoas frágeis deve ser uma norma para todos; e neste sentido, na vida religiosa e apostólica, a noviça de clausura deve cumprir os mesmos padrões ministeriais do irmão idoso que passou toda uma vida ensinando os jovens.
Os princípios do respeito pela dignidade de todos, da boa conduta e de um estilo de vida sadio devem tornar-se uma norma universal, independentemente da cultura e situação econômica e social das pessoas. Todos os ministros da Igreja devem mostrá-los no serviço aos fiéis e, por sua vez, devem ser tratados com respeito e dignidade por aqueles que dirigem a comunidade. Afinal, uma cultura da tutela só acontecerá se houver uma conversão pastoral nesse sentido entre os seus líderes.
Fiquei animado com os planos que vocês prepararam para enfrentar as desigualdades dentro da Igreja, em termos de formação e serviço às vítimas, na África, Ásia e América Latina. De fato, não é justo que as áreas mais prósperas do planeta possam contar com programas de tutela bem elaborados e bem financiados, nos quais as vítimas e suas famílias sejam respeitadas, enquanto aqueles que vivem em outras partes do mundo sofrem em silêncio, eventualmente rejeitados ou estigmatizados quando tentam se apresentar para contar os abusos que sofreram. Também nesse âmbito, a Igreja deve esforçar-se por ser um exemplo de acolhimento e bom modo de agir.
O empenho pelo aprimoramento das diretrizes e dos padrões de comportamento do clero e dos religiosos deve continuar. Espero receber informações sobre esse empenho e um relatório anual sobre o que vocês consideram que está funcionando bem e sobre o que não funciona, para que eu possa aportar os ajustes apropriados.
No ano passado, pedi que compartilhassem suas competências sobre as várias maneiras pelas quais vocês pensam que o trabalho da cúria romana possa influir sobre a proteção de menores, para enriquecer uns aos outros nesse seu novo papel. Fiquei sabendo com satisfação sobre o acordo de cooperação firmado com o Dicastério para a Evangelização, sobretudo em consideração de seu vasto raio de ação em muitos dos lugares mais esquecidos do mundo.
Vocês já fizeram muito nesses primeiros seis meses. Eu os abençoo de coração. Saibam que estou perto do seu trabalho e não se esqueçam de orar por mim. Eu farei o mesmo por vocês.
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Abusos: por uma espiritualidade de reparação. Discurso do Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU