04 Mai 2023
Para o cineasta Gianfranco Rosi, o Papa Francisco é um revolucionário, um homem que nos convida a imaginar um mundo melhor. Mas ser revolucionário traz consigo a solidão.
A reportagem é de Griffin Oleynick, publicada por La Croix International, 03-05-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Gianfranco Rosi é um dos documentaristas vivos mais importantes da Itália. Seus filmes incluem “O justiceiro no quarto 164” (2010), “Sacro GRA” (2013) e “Fogo no mar” (2016), que foi indicado ao Oscar.
Seu filme mais recente é “In Viaggio: The Travels of Pope Francis”, que é composto em grande parte por imagens de arquivo filmadas durante as 37 viagens do papa a 53 países ao longo de nove anos.
O 10º aniversário do pontificado de Francisco coincidiu com o primeiro aniversário da invasão da Rússia na Ucrânia, que o papa inicialmente hesitou em condenar diretamente. De que modo a eclosão da guerra na Ucrânia afetou a produção de “In Viaggio”?
Enormemente. Comecei a fazer o filme há pouco mais de um ano, antes do início da guerra. Inicialmente, era impressionista, sem estrutura ou progressão definida.
Mas, no ano passado, viajei com o papa para Malta, onde ele se manifestou fortemente contra a guerra na Ucrânia. Esse foi o momento em que a “história” invadiu meu processo de edição, devorando tudo o que eu havia feito antes. Também me pôs em uma crise, fazendo-me perceber que eu realmente precisava estruturar “In Viaggio” cronologicamente.
Assim, comecei com a famosa visita do Papa Francisco à ilha de Lampedusa, no mar Mediterrâneo, em 2013. Ele se pronunciou em defesa dos migrantes e dos refugiados, e criticou a nossa indiferença ao sofrimento de quem está à margem. Seus comentários na época foram proféticos, colocando-o em uma trajetória que o levou a seu discurso antiguerra em Malta quase uma década depois. Quando eu o ouvi, tudo se cristalizou para mim, e “In Viaggio” tornou-se uma espécie de cubo mágico cinematográfico – as peças se encaixaram.
Também voltei à filmagem do encontro do Papa Francisco com o Patriarca Kirill de Moscou, ocorrido em Cuba em 2014. Para mim, parecia que Francisco teve uma premonição. Aludindo à invasão da Crimeia por Putin, o papa disse a Kirill que um dia “a guerra tocaria a todos nós”, a menos que a enfrentássemos naquele momento. Na verdade, ele estava falando sobre a Crimeia e, infelizmente, estava certo – esse conflito realmente afetou o mundo inteiro.
Podemos pensar no Papa Francisco como um “contemporâneo do futuro”. Há um momento no filme que é uma metáfora de como o pensamento profético do papa chega até nós. É quando ele se encontra (por videoconferência) com um grupo de astronautas que morava na Estação Espacial Internacional durante a pandemia. Sentado em sua mesa no Vaticano, Francisco simplesmente diz: “Bom dia!”. Depois, há um silêncio completo, uma longa pausa. Depois de alguns segundos, a voz do papa finalmente chega, de modo que os astronautas podem ouvi-lo. Em certo sentido, é assim com todos nós também.
Estou impressionado com algumas das escolhas formais que você fez no filme, que não são convencionais para o padrão dos documentários de hoje, especialmente para os filmes sobre o papa. Não há nenhuma narração em off e muito pouco contexto ou exposição – “In Viaggio” quase se parece a um filme do cinéma vérité dos anos 1960 ou até mesmo a um poema visual. Fale-nos sobre isso.
Sim, o filme é muito experimental. Não gosto de fazer distinções entre ficção e documentário. Para mim, só existe cinema, e o que importa é se um filme é verdadeiro ou falso. Meu processo é diferente, digamos, de um diretor de longas-metragens. Eu não uso atores. E, ao contrário de muitos documentaristas, não tenho uma equipe enorme. Sou uma equipe de um homem só, trabalhando com a realidade. Mas estou sempre atento à linguagem visual do cinema: eu adiciono e subtraio, pego a realidade e a transformo em outra coisa. Esse é sempre o meu desafio.
Com “In Viaggio”, eu estava tentando provocar uma experiência emocional por parte do público. Se 200 pessoas assistirem ao filme, quero que tenham 200 reações individuais diferentes. O público precisa ter total liberdade para interagir com o Papa Francisco de uma forma muito pessoal. É por isso que eu incluo tanto silêncio no filme. Os momentos de silêncio formam uma espécie de pano de fundo, dando aos espectadores espaço para respirar e refletir, assim como o próprio Papa Francisco reserva um tempo para a contemplação.
Quando o Papa Francisco se encontra com o Grão-Aiatolá Ali al-Sistani no Iraque, toda a cena se desenrola em total silêncio. Por meio da magia do cinema, seu silêncio se torna uma espécie de voz, uma evocação que permite ao espectador conversar sem palavras com o Papa Francisco. Pelo menos é isso que “In Viaggio” tem sido para mim. Passei grande parte da minha carreira fazendo filmes e chamando a atenção para muitos dos lugares para onde ele viajou, como Lampedusa, México e Iraque. Portanto, o filme também é uma espécie de diálogo pessoal com o importante trabalho que Francisco fez lá.
Francisco está sempre nos exortando a não perdermos a capacidade de sonhar. Essa realmente se tornou a minha âncora. Esse é um papa que fala para todos, crentes e não crentes, com muita humildade. Ele fala sobre questões históricas, políticas e morais urgentes, como a migração, o encarceramento em massa, a justiça climática, o comércio de armas e a guerra.
De certa forma, o filme evoca os grandes temas de suas encíclicas, especialmente a Fratelli tutti. É uma colagem de fragmentos, 80 minutos extraídos de mais de 800 horas de filmagem, a maioria das quais não fui eu que filmei. Então, eu era mais um espectador o tempo todo. Queria fazer um retrato do papa como homem, sem recorrer a categorias teológicas ou ideológicas.
Também é verdade que o Papa Francisco não é perfeito. Na verdade, eu viajei com ele e o fotografei durante sua viagem ao Canadá no ano passado. Ao falar com a população indígena do Canadá, ele pediu perdão pela participação da Igreja nos horrores e nos abusos do sistema de escolas residenciais. Eu deliberadamente filmei aquela cena fora de foco e a entrelacei com imagens e sons de arquivo, como se aquilo estivesse ocorrendo dentro de sua própria mente.
Era importante mostrar o papa meditando sobre seus próprios erros e os da Igreja. É por isso que também incluí a cena da reação defensiva de Francisco a um grupo de repórteres no Chile, quando ele rejeitou com veemência as acusações de abuso sexual contra o bispo Juan Barros. O Papa Francisco é um homem que vive sua vida na frente das câmeras, às vezes esquecendo que elas estão ali. Então, ele comete erros. Mas o mais importante é que ele sabe se desculpar.
O pontificado de Francisco tem sido especialmente controverso aqui nos Estados Unidos, e muitos hierarcas estadunidenses expressam abertamente seu ceticismo sobre algumas de suas iniciativas, como o próximo Sínodo sobre a Sinodalidade. Que papel tiveram, se é que tiveram, os debates intelectuais – sobre o futuro da Igreja, digamos – na produção de “In Viaggio”? O que você espera que o público estadunidense, tanto católico quanto secular, tire disso?
Meu ponto de vista é essencialmente o de uma pessoa secular. Obviamente, a perspectiva do Papa Francisco é diferente, mas ele consegue chamar a atenção para questões com dimensões universais e política. Ele é um ator importante em um mundo globalizado.
Francisco também é um revolucionário. Ele está mudando muita coisa dentro da Igreja, tentando abri-la. Ele é o primeiro papa a falar abertamente sobre a possibilidade das uniões civis para pessoas gays. Ele nunca fala sobre o aborto de forma acusatória, agressiva ou julgadora. Ele conforta as mulheres que passaram por esse processo doloroso. “Quem sou eu para julgar?”, pergunta ele.
Então, se o papa é odiado em alguns lugares, ele é amado em muitos outros. E por todos os diferentes tipos de pessoas: cristãs, judias, muçulmanas, budistas, hindus. Ele fala de forma transversal. Na África, ele se dirigiu a uma grande reunião de meio milhão de pessoas. Mas ele tem um jeito incrível de se focar no indivíduo, de se comunicar e de olhar para as pessoas, para o que há dentro delas. Ele as toca, e você quase pode sentir isso na filmagem. Ele tem uma capacidade impressionante de compaixão.
Mas o filme não é apenas um retrato do Papa Francisco. É também um mapa da condição humana, uma Via Sacra para hoje. Ou uma espécie de peregrinação ao contrário. O papa está sempre viajando para ver o povo, em vez de os fiéis irem até ele. O único momento de “In Viaggio” em que vemos o Papa Francisco dentro dos muros do Vaticano é no início da pandemia, quando ele reza em uma Praça São Pedro vazia e chuvosa. É como se ele estivesse abraçando o mundo inteiro com suas palavras naquele momento. Assim, muitas pessoas viram isso e entenderam o que ele estava dizendo, sentindo uma conexão com ele. Ser revolucionário também significa estar sozinho. E eu acho que os espectadores entenderão a solidão dele.
Falando em solidão, algumas das cenas mais comoventes de “In Viaggio” ocorrem dentro das prisões, especialmente quando o Papa Francisco abraça os encarcerados. O que você vê nesses momentos?
Em março, pouco antes do lançamento global de “In Viaggio”, o Papa Francisco convidou a mim e à equipe de produção para um encontro privado no Vaticano. Foi breve, apenas 20 minutos mais ou menos, mas ele foi extremamente caloroso e aberto. Antes de partir, ele me disse: “Corra riscos! Seja corajoso! Porque há muitas pessoas conservadoras ao nosso redor”.
É exatamente isso que ele faz nas prisões ao redor do mundo. Quando eu estava editando o filme, fiquei muito emocionado ao ver aquelas cenas. Porque é realmente onde o espírito não julgador do papa ganha vida e se torna visível. Ele encontra dignidade em cada pessoa que abraça – até mesmo em notórios justiceiros que podem ter matado 20 ou 30 pessoas. No entanto, o Papa Francisco se dirige a eles com dignidade, dizendo-lhes que a experiência deles na prisão pode mudá-los, que eles não estão sozinhos.
Sentiremos falta do Papa Francisco depois que ele se for. Quem estará lá para nos avisar, para nos lembrar das maneiras pelas quais estamos desumanizando o nosso mundo e uns aos outros – tudo sem nos julgar? Talvez ele não esteja mudando nada concretamente, mas está falando como a consciência do mundo, recordando-nos as nossas faltas, mas também a nossa dignidade.
“In Viaggio” abre com uma frase: “Qual é a posição de vocês?”. Essas são as palavras da Guarda Costeira italiana, falando pelo rádio a um barco cheio de migrantes que está afundando no meio do Mediterrâneo. Essa é outra metáfora. Para que o mundo realmente mude, para que a nossa situação seja diferente, temos que saber qual é a nossa posição. Qual é a nossa posição em relação à guerra, ao clima, à pobreza, à globalização – em relação a tudo? Somos indiferentes? Realmente nos importamos? Qual é a minha posição? É isso que o Papa Francisco sempre nos exorta a nos perguntarmos.
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Francisco é um revolucionário. Entrevista com Gianfranco Rosi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU