31 Março 2023
"Nas noites de junho de 2013 pelo Brasil dizia-se que 'não eram pelos vinte centavos'. Os franceses, agora, nestes infinitos dias e noites de março de 2023, parecem dizer, enfaticamente, que 'não são pelos dois anos a mais de cotização previdenciária'", escreve Daniel Afonso da Silva, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo – USP, pós-doutorado em Relações Internacionais pela Sciences Po de Paris, professor na Universidade Federal da Grande Dourados e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.
Gritam as ruas francesas. Protestos progressivos tomam conta de, praticamente, todas as grandes cidades e regiões do país. Nada parece dissolver o mal-estar. Nenhum recuo ou concessão do governo produz algum refluxo na tensão. Nada, simplesmente, nada altera o sentimento de revolta, angústia e agonia generalizado. Todos os ódios franceses convergiram nessa contestação da reforma previdenciária sugerida pelo presidente Emmanuel Macron. A mudança de 62 para 64 anos a idade de partida foi recebida como inadmissível. Não há argumento que demova ou convença do contrário.
Mas, olhando de perto, a questão não é a reforma em si. Há variáveis muito profundas em jogo. A integralidade da classe política perdeu a sua legitimidade histórica e moral. Nada que venha dela recebe acolhimento tranquilo. Passou-se dos tempos de expectativas decrescentes para os tempos de tormentas inclementes.
A terceira alínea do artigo 49 da Constituição francesa, o famoso “49.3”, possibilita ao presidente da República a adoção de qualquer projeto de lei sem deliberação parlamentar. Esse dispositivo foi idealizado pelo general Charles de Gaulle e pelo seu ministro Michel Debré para a instalação de alguma racionalização do parlamentarismo francês que, sob a Quarta República Francesa, de 1946 a 1958, promoveu instabilidades permanentes com a intermitência de obstruções e votos de desconfiança. Trata-se de uma medita, sim, autoritária, mas, à época, entendida e reconhecida como legítima e necessária para a imposição do interesse nacional sobre os demais interesses.
O general havia abdicado da vida pública em 1946 justamente por antever essa anomia política da Quarta República instalada no após 1945. Quando foi convocado ao poder em 1958, o seu reflexo foi no sentido de ampliar os níveis autoridade e autonomia de ação presidencial. Em outras palavras, deixar bem claro que manda.
Emmanuel Macron ameaçou utilizar o recurso “49.3” para fazer passar à força a presente reforma previdenciária. Mas a resposta das ruas veio forte e imediatamente. Diante do baque, o sucessor do general recuou. Mandou dizer que não era o caso de impor a sua decisão. Mas o ódio popular não refluiu. Em contrário, aumentou.
Não restam dúvidas que o instrumento – “49.3” – é legal. Afinal, está gravado, preto no branco, na Constituição. É, portanto, sim, legal. Mas deixou de ser legítimo. Virou politicamente imoral e anacrônico. Ninguém suporta nem adere tampouco respeita. A agonia venceu a lei.
Essa agonia dos franceses não é diferente da de muitos povos mundo afora tragados pela pasmaceira mundial presente. O rebaixamento social, especialmente, a partir do achatamento do poder de compra de todos os segmentos sociais de praticamente todos os países do planeta é um fato irremediável desde a crise financeira de 2008. O choque inflacionário causado pelo após pandemia de covid-19 e pela intercorrência do conflito ucraniano agudiza ainda mais tudo isso.
Entre os franceses, o após crise financeira de 2008, crise do euro de 2009-2011 e crise europeia do Brexit a partir de 2012 produziu o incansável movimento dos coletes amarelos, “gilets jaunes”. Logo nos primeiros momentos da primeira presidência de Emmanuel Macron, a partir de maio de 2017, esses derrotados da globalização inundaram, ato contínuo, as ruas das principais cidades do país.
A capital francesa foi tomada e bloqueada fins de semana a fio. Tudo se viu, ouviu e sentiu e não se encontrou saída. O biênio pandêmico de 2020-2021 arrefeceu o movimento e deu um suspiro ao governo. Mas a tentação de reformar a previdência dos franceses reavivou todo a mal-estar de outrora. E, como outrora, agora, não se vê saída.
Trata-se, claramente, de uma questão de sociedade. Mas essas questões de sociedade, nesta quadra de crises sucessivas – financeira, europeia, sanitária e mundial, proveniente do conflito ucraniano –, virou uma guerra sem fim pela reabilitação de um tipo de conforto social que, talvez, nunca mais volte a existir.
Nas noites de junho de 2013 pelo Brasil dizia-se que “não eram pelos vinte centavos”. Os franceses, agora, nestes infinitos dias e noites de março de 2023, parecem dizer, enfaticamente, que “não são pelos dois anos a mais de cotização previdenciária”.
O problema é maior.
Os ódios são múltiplos.
O mal-estar, parece, insuperável.
Et alors, quoi faire? (e agora, o que fazer?).
Eis a pergunta que, no fundo, o mal-estar francês lança e todos, franceses e não franceses, queremos ver respondida. Sem respostas, restam os gritos.
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O mal-estar francês. Artigo de Daniel Afonso da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU