Tríduo Pascal, uma experiência de ressignificação do ser cristão

“Tríduo Pascal - Coração do Ano Litúrgico”, atividade promovida pelo IHU, é um convite a vivermos o essencial da narrativa de Cristo e o seguir na aspereza da vida cotidiana

Retábulo de Isemheim: 1.ª abertura: Crucificação. Obra de Matthias Grunewald (1515) - Óleo sobre madeira | Acervo: Museu de Unterlinden

27 Março 2023

“Não tomem como um convite para se submeterem a uma catequização, não se trata disso. Permitam-se, nos momentos derradeiros da vida de Cristo, ouvir sua mensagem e olhar para aqueles e aquilo que ele tanto insistiu e ainda resistimos a olhar. É um convite a viver de forma muito pessoal, assim como eu tenho tentado viver, o essencial da narrativa de Cristo para segui-lo na aspereza da vida cotidiana”, escreve João Vitor Santos, jornalista e historiador, doutorando em História pela Unisinos e integrante da equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Eis o texto.

Se me permitem, esse é um texto autoral. Não que minha experiência tenha qualquer importância, mas o que desejo é chamar atenção, nesse ainda tempo de preparação para a Páscoa, para a narrativa do Cristo e como ela pode ressignificar e inspirar nossa ética pessoal, ou, simplesmente, nosso modo de vida.

Desde criança, sempre fui fascinado pelo Natal. A história da natividade me encantava e junto com tudo isso vinha uma época em que as pessoas pareciam mais amáveis e compreensivas, a casa ficava cheia, a comida era maravilhosa, as luzes piscantes e árvore de Natal enchiam os olhos. Então, como não amar isso tudo? Mas os mais velhos sempre insistiam em falar do Menino que nascia pobre para salvar o mundo, um Deus que se fazia gente. Para mim, desbancava qualquer narrativa. Enchia a boca para dizer: “Jesus é um marco e mudou a história do mundo, até a contagem do tempo”.

Confesso que celebrar o Natal e todos os seus significados cristãos católicos era quase que como commodities familiares. Mas, depois do Natal, das férias, da volta para escola, vinha a Páscoa. Data bonita, mas que para mim tinha um peso que soava como tristeza. Essa sim era vivenciada quase que por imposição. Ouvia muito que Jesus foi morto por causa de nós, que deu a vida por nós e isso me entristecia. Se o Natal era vida e alegria, a Páscoa tinha um tom melancólico. Achava bonitas as celebrações que antecediam o Domingo, mas ficava quase petrificado com o clima da Sexta-feira Santa. Talvez, ouvia tanto que tinha que sofrer a dor de Jesus e a tristeza de Maria que acho que sentia isso mesmo. Depois, fui crescendo, lendo e estudando, conversando com muita gente e fui entendendo que a Páscoa é vida. Sim, tem morte, mas é a vida que se renova e vence a morte.

Teórica e teologicamente tudo certo, tudo entendido. Mas, no coração, ainda pesava um incômodo. Fui crescendo mais um pouco, estudando mais e conversando com ainda mais gente, até que tive um insight: "a morte, a crucificação de Jesus e toda a narrativa da Paixão não podem ser compreendidas se sentidas em si mesmas. É preciso mergulhar na história do Cristo para entender esse final dramático, mas que se converte em triunfante". Ainda titubeando, sem saber se isso era uma luz ou só um foque quase apagado, comecei a prestar atenção em como Jesus silencia por anos até que começa despontar na vida pública. Num tempo de muitos profetas, começa a chamar a atenção com posições políticas, mas também por curas, multiplicações de pães e vinho, os milagres.

Anos mais tarde, talvez tentado pela Faculdade de Jornalismo, pensei que Jesus queria mesmo é manchete. Se falasse tudo que falou e não curasse uns doentes, se não fizesse uns milagres aqui e outros, lá não seria percebido. Felizmente, avancei na Faculdade e nesse raciocínio para elaborar que a manchete é um indício, quase um dado antropológico. Explico: não é que Jesus queria manchete, mas queria chamar atenção para os pobres, os doentes, as crianças e as mulheres, todas aquelas pessoas menorizadas na sociedade de seu tempo. Também queria chamar atenção que mais importante do que leis e regras é adorar um Deus, mas um Deus bom, que é amor, que acolhe e não condena. E que todos devem fazer isso em louvor a esse Deus. Ao fazer isso, a mensagem de Jesus era tão forte que chamava a atenção e escandalizava a sociedade dessa época. E isso, sim, poderia render manchete, se fosse o caso. Por isso, acredito que a manchete é um dado, não a verdade, mas um sinal de que algo acontece ali. Por vezes, até meio torto, mas um sinal.

 

Aliás, sinais não faltam nas narrativas evangélicas. Se formos acompanhar a quantidade de gente que Ele questiona, desafia mesmo a pensar de outra forma, a olhar para aquilo que nos incomoda e nos faz virar o rosto, é inevitável que se torne persona non grata. Inclusive entre os que o seguem. E aqui entra um dado histórico: a subversão que Jesus criava foi assumindo proporções perigosas para os doutores das leis, os sacerdotes e governantes. Por isso precisava ser calado e silenciado. Mas, se Jesus fosse apenas morto e jogado em cova rasa, poderia acontecer duas coisas: ou o povo se esqueceria de mais esse profeta e o que ele dizia, o que seria bom para os poderosos, ou ele se tornaria um mito e o povo poderia se tornar mais revoltoso e se virar contra as autoridades de forma mais violenta.

Novamente na Faculdade de Jornalismo, aprendi que uma manchete só se cala quando surge outra. Logo, desmoralizar antes de mandar matar Jesus poderia ser a manchete que os poderosos queriam. Com isso, se eliminariam as duas possibilidades anteriores. E isso é feito. Mas sabe o que é mais significativo e emocionante nessa narrativa? Jesus usa os três dias que antecedem sua morte para repassar toda a lição. Depois de 40 dias de afastamento, Ele volta e chama para si, é o “que se faça o que precisa ser feito”.

Reprodução de The Evangelicae Historiae Imagines, de Gerônimo Nadal, Bernardino Passeri, Marten de Vos, Martin Nuyts (1593).

Numa pedagogia única, Ele mostra que não é só o filho, mas o próprio Deus que se fez gente. Mostra-se humilde e se humilha lavando pés, celebra uma última ceia e pede que, por àquela mesa se lembre da comunidade, da partilha e do pão, aquilo que todos devem ter. E, ainda, que a todos é permitido o acesso a essa ceia. Ninguém merece passar fome, ser excluído ou sofrer sozinho pela doença. Para que nunca se esqueçam disso, entrega-Se a um julgamento público, a humilhação e um calvário até a morte brutal. A revelação de tudo e o significado de tudo viria muito tempo depois, mas, não há dúvida, naquele mesmo momento da crucificação, a Paixão de Cristo cela a lição que o mundo haveria de receber.

Reprodução de The Evangelicae Historiae Imagines, de Gerônimo Nadal, Bernardino Passeri, Marten de Vos, Martin Nuyts (1593).

Foi mergulhando em toda a narrativa de Jesus, olhando à minha volta e vendo como ainda são vivas as situações que Ele chamava a transformar, quando percebi o significado da Páscoa. É o desfecho da história que marca a humanidade, de quem crê e de quem nem acredita que esse era o filho de Deus. A vida, o bem realmente vencem a morte e o mal. E sabem o que me provocou a tudo isso, toda essa reflexão e elaboração tão pessoal? Os três dias antes da morte de Jesus, o Tríduo Pascal: a Quinta-feira Santa (da última ceia), a Sexta-feira Santa (da paixão e morte) e o Sábado de Aleluia (o tempo de espera).

Por isso, convido a todos/as a se permitirem viver esse momento. Aqui no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, está sendo preparada uma atividade para esse Tríduo. O objetivo é promover uma reflexão sobre a importância e a centralidade da Páscoa na vida cristã, mergulhando nesses três dias do Cristo antes da Ressurreição que remontam toda sua narrativa. Não à toa esse é o centro do Ano Litúrgico na Igreja.

Não tomem como um convite para se submeterem a uma catequização, não se trata disso. Permitam-se, nos momentos derradeiros da vida de Cristo, ouvir sua mensagem e olhar para aqueles e aquilo que ele tanto insistiu e ainda resistimos a olhar. É um convite a viver de forma muito pessoal, assim como eu tenho tentado viver, o essencial da narrativa de Cristo para segui-lo na aspereza da vida cotidiana. 

Tríduo Pascal – Coração do Ano Litúrgico

Os encontros do Tríduo Pascal – Coração do Ano Litúrgico, promovidos pelo IHU, serão conduzidos por Maria da Penha Carpanedo. Teóloga, é religiosa da Congregação das Irmãs Discípulas do Divino Mestre, especialista em liturgia e coordena o serviço de redação da Revista de Liturgia. Ela atua na formação litúrgica das comunidades e nas Escolas de Liturgia, na perspectiva da iniciação cristã.

Maria da Penha Carpanedo (Foto: reprodução MPVM/IHU).

As atividades são gratuitas e ocorrem nos dias 28 e 29 de março, terça e quarta-feira, ao vivo, via videoconferência com transmissão pelo canal do IHU no YouTube.

 

 

 

 

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