Iniciados à Páscoa: meditações sobre a Quaresma. Artigo de Andrea Grillo

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01 Março 2017

“A Quaresma volta a ser ‘tempo festivo’ que leva à Páscoa; ela é reconhecida novamente como ‘sacramento’ que introduz ao mistério histórico, escatológico e eclesial do ‘transitus’ – ‘páscoa’ e ‘passagem’ – de Cristo e da Igreja. O seu destino – ou seja, uma Páscoa que é cruz e sepulcro vazio – exige uma releitura profunda do ‘rezar’, do ‘fazer penitência’ e do ‘jejuar’.”

A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Sant’Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua.

O artigo é a introdução ao pequeno livro recém-publicado por Grillo, Iniziati alla Pasqua: Meditazioni per la Quaresima [Iniciados à Páscoa: Meditações para a Quaresma] (Ed. Queriniana). O texto foi publicado no seu blog Come Se Non, 25-02-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Introdução

Recuperar a Quaresma como iniciação festiva ao mistério da Páscoa é um “grande empreendimento”, que nós, cristãos católico-romanos, pertencentes à segunda geração depois do Concílio Vaticano II, encontramos indicada por aquele grande Concílio como uma das chaves de acesso à nossa tradição eclesial e espiritual.

Colocar novamente em movimento o mecanismo simbólico de um caminho festivo de antecipação, de preparação e, sobretudo, de iniciação à Páscoa exige, de nossa parte, o esclarecimento de algumas evidências iniciais, a partir das quais eu gostaria de começar, para meditar sobre o “sacramento da Quaresma”.

Quaresma é uma palavra cheia de tempo. Ela indica, como se sabe, um período de 40 dias. Tempo de tentação, tempo de prova, mas também tempo de desafio, tempo de coragem e de ousadia, assim como tempo de paciência e de mansidão. Quaresma diz, acima de tudo, o primado do tempo sobre o espaço. Por isso, ela precisa de “procedimentos temporais de caminho”, não de “formas espaciais de posse”.

Aqui se abre o primeiro desafio. É o desafio lançado pelo Concílio Vaticano II e preparado pela grande teologia do século XX, para que nós possamos voltar à “sã tradição”. Pois a tradição não é garantida pelo fato de existir. A tradição deve ser acolhida, compreendida, relida e remotivada. Só assim ela continua sã e pode-se tornar ainda eficaz.

O que diz, hoje, a “tradição quaresmal”? Ela fala quase a despeito de si mesma, muitas vezes fala contra si mesma. Vemos isso muito bem quando ouvimos sem preconceitos a voz da linguagem comum, que nunca mente. A linguagem comum, de fato, usa o termo “quaresma” em sentido decisivamente negativo, como sinônimo de “falta de alegria”, de “tédio”, de “depressão”, de “tristeza”. Aqui, evidentemente, não é apenas culpa “dos outros”. É claro, os fenômenos que afetam a língua são sempre muito complexos. Mas se originam a partir de uma “tradição eclesial” que entrou em crise há ao menos dois séculos. A crise foi determinada pelo fato de terem se perdido algumas evidências fundamentais do “tempo de Quaresma” – como, aliás, de todos os outros “tempos”.

Ficando desprovida da força simbólica da grande tradição, a pequena tradição recente – um pouco aburguesada e muito enrijecida – reduziu a Quaresma às “práticas devotas de indivíduos piedosos”. Diante desse desenvolvimento, que só pode ser contornado com grande dificuldade e que criou modelos pessoais de identidade, estilos individuais e eclesiais de oração, formas compartilhadas de penitência, podemos hoje meditar com instrumentos novos de análise e de intervenção.

Eles são propostos – e eu diria até impostos – pela grande passagem eclesial com a qual a tradição foi posta à prova do “ressourcement” [refontalização] e do “aggiornamento” [atualização]. São palavras “técnicas”, estas, que poderíamos traduzir deste modo: para a Igreja, e ainda mais para o testemunho do Evangelho e o discipulado de Cristo, um duplo movimento é decisivo. Por um lado, é preciso voltar às fontes, mas, por outro, nos é pedido que voltemos a ser fontes. Como é evidente, esse duplo processo está um ir e vir, diz respeito a objetos e a sujeitos, põe em jogo “saberes” e investe “práticas”.

Uma meditação sobre a Quaresma, acima de tudo, deve ter isto claro: a Quaresma não é um renomado “museu da tradição penitencial” – embora tenha a ver com textos e gestos muito antigos e de grande autoridade –, mas também não é uma organização de “coisas para fazer” – embora deva se deixar guiar por práticas vivas, sinceras e eficazes.

A Quaresma, assim, foi investida por um interesse novo: não só para descobrir o que ela foi antigamente, mas também para descerrar a possibilidade de que ela possa ser novamente significativa, justamente para as gerações de hoje e de amanhã. Isto é, para que ela possa responder a uma necessidade profunda do homem e da mulher crente, de “deixar-se iniciar à Páscoa”, todos os anos, em um percurso de seis semanas, da Quarta-Feira de Cinzas até a Semana Santa.

Por outro lado, a Quaresma, orientada como está à iniciação ao mistério pascal, assume todo o seu significado de um grande aprofundamento que ocorreu no último século em torno do mistério pascal. Deixamo-nos acompanhar novamente no coração da nossa fé, no mistério da paixão, morte e ressurreição do Senhor Jesus, evento do qual reconhecemos, de modo cada vez mais límpido, que “participamos na celebração”. Este ponto é absolutamente central. Meditar os mistérios de Cristo exige tomar parte na ação da sua celebração. Essa consciência da necessária “participação ativa no mistério pascal” – amadurecida ao longo do século XX e que se tornou palavra oficial com a constituição conciliar Sacrosanctum Concilium – restitui não só à ação litúrgica pascal toda a sua força original, mas também reabilitou a Quaresma como prática de iniciação a ela.

A Quaresma, assim, volta a ser “tempo festivo” que leva à Páscoa; ela é reconhecida novamente como “sacramento” que introduz ao mistério histórico, escatológico e eclesial do “transitus” – “páscoa” e “passagem” – de Cristo e da Igreja. O seu destino – ou seja, uma Páscoa que é cruz e sepulcro vazio – exige uma releitura profunda do “rezar”, do “fazer penitência” e do “jejuar”.

Poderíamos dizer que a “figura devota” da Quaresma – fortemente ligada a uma percepção exclusivamente individual das “penitências”, da “oração” e do “jejum” – começou a se transformar em uma “celebração do sacramento da Quaresma”, em que as próprias “formas de devoção” se deixam iluminar pela escuta da Palavra e pela celebração per ritus et preces.

As sequências da liturgia da Palavra e da celebração eucarística, na periodicidade dominical, deságuam no Tríduo e, depois, nos 50 dias do tempo pascal, até o Pentecostes. Caminho dos neófitos e renovação da consciência eclesial progridem paralelamente na forma corpórea do mistério de Deus, que entra na história humana e a transforma. A Quaresma é novamente possível como itinerário sacramental da iniciação ao mistério: pela acolhida ao discipulado e por um discipulado acolhedor.

Tentaremos, então, adquirir essa nova condição com uma série de meditações, autônomas entre si, mas conectadas duplamente no mesmo projeto. Restituir uma dignidade simbólica e ritual ao “processo quaresmal”, ao “tempo de Quaresma”. A nossa varredura meditativa atravessará muitas e diversas “regiões” da sensibilidade eclesial em torno de Quaresma. Falaremos da sã tradição saudável e do duplo desafio que ela sabe lançar à práxis eclesial; da tarefa de iniciar à Páscoa no tempo; dos sujeitos envolvidos no 40 dias de caminho, que são Cristo e a Igreja; das novas riquezas da liturgia da Palavra e das redescobertas nas práticas rituais. Até chegar ao “núcleo” que liga as “palavras antigas” às “novas evidências”.

Como já disse, aqui se centrará o coração das nossas meditações: as “práticas penitenciais” que a tradição nos deu merecem um acurado discernimento, mas exigem ainda mais um radical repensamento. Recuperar a oração como um “falar outro”, a penitência como um “mudar de vida”, o jejum e a esmola como “relação solta com os bens, com a liberdade, com a sexualidade” constituem um desafio nada pequeno para se chegar – ou para voltar – ao mistério pascal com o tesouro de “experiência expressada” que a Quaresma nos faz descobrir. Para que a “Páscoa anual” seja “símbolo” que não só leva a pensar, mas também a “falar” a “comunicar”, a “escutar”, a “comer”.

Por esse motivo, as meditações sobre a Quaresma se estenderão, em conclusão, sobre a “celebração da Páscoa” a que estão estruturalmente destinadas. Se os 40 dias da Quaresma são “tempo imenso” de “iniciação corpórea” aos três dias do Tríduo Pascal; e se, por sua vez, o Tríduo é a grande porta que introduz às “sete semanas” da Tempo Pascal, então é evidente que uma luz nada pequena se acende sobre a Quaresma, embora por reflexo, a partir da elucidação que saberemos fornecer, meditando breve e conclusivamente sobre o mistério da celebração da Páscoa anual em relação com a Páscoa semanal.

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