23 Março 2023
Tanto nos Atos dos Apóstolos quanto nas Cartas de São Paulo, enfatiza-se que as decisões são tomadas não pelos bispos, mas pela comunidade como um todo.
O artigo é do historiador Constant J. Mews, professor emérito do Centro de Estudos Religiosos da Monash University, em Melbourne, Austrália, publicado por La Croix International, 18-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A morte do cardeal George Pell em janeiro passado ocorreu em um momento crucial na vida da Igreja, quando seus bispos estão refletindo sobre como responder ao chamado do Papa Francisco em outubro de 2021 para uma Igreja sinodal, baseada na comunhão, na participação e na missão.
A notícia de que o cardeal australiano havia escrito um memorando anônimo condenando a direção atualmente tomada pelo papado parecia uma declaração de guerra contra aqueles que ele via como inimigos da verdadeira Igreja.
No entanto, a sinodalidade (literalmente, “viajar juntos pela estrada”) é simplesmente outra palavra para a tradição talvez mais antiga da Igreja, a de se reunir para discernir a voz do Espírito Santo. Como Pell tinha um interesse particular na Igreja primitiva (sua tese de doutorado foi sobre Cipriano de Cartago, um Padre da Igreja do século III), talvez seja surpreendente que ele não tenha refletido mais sobre o que Cipriano tinha a dizer sobre a diversidade dentro da unidade, ou seja, o fato de haver “muitos raios de sol, mas uma única luz; e muitos ramos de uma árvore, mas uma única força baseada em sua raiz tenaz”.
O mecanismo para resolver as diferenças desde os primeiros tempos da Igreja era o do concílio, como atestado pelo relato em Atos 6,1-6 sobre como os Doze “convocaram uma assembleia geral dos discípulos”, para que pudessem escolher aqueles que poderiam ajudar a distribuir comida para as viúvas sem incorrer em atrito entre judeus e helenistas.
Enquanto Atos nomeia homens designados para esse papel, Paulo deixa claro em Romanos 16,1 que eles também designaram mulheres, em particular Febe, uma diácona em Cencreia. A ênfase tanto em Atos quanto nas epístolas paulinas é que as decisões são tomadas não pelos bispos, mas pela comunidade como um todo.
Cipriano promoveu a eleição para o papado de Cornélio “pelo testemunho de quase todo o clero, pelo sufrágio do povo que estava então presente e pela assembleia de padres anciãos e bons homens”. Ao enfatizar que o Bispo de Roma tinha o apoio da maior parte de sua comunidade cristã, Cipriano rejeitou as reivindicações de um papa rival, Novaciano, que argumentava a favor da completa exclusão da comunhão daqueles que haviam perdido sua fé durante um período de uma perseguição particularmente selvagem. Cipriano favoreceu a misericórdia e a compaixão em prol de preservar a unidade dentro da Igreja.
Esses exemplos históricos têm grande relevância para a Igreja contemporânea – a necessidade de nomear mulheres como diáconas e de permitir que pessoas divorciadas e que se identificam como LGBTQI+ recebam a comunhão. Os bispos da Igreja precisam estar cientes de que tais políticas são essenciais para que a Igreja seja percebida em uma postura de escuta de suas tradições mais antigas.
No entanto, naqueles primeiros séculos, tais tradições de consulta foram inevitavelmente moldadas pelos paradigmas masculinos de poder dentro do mundo romano.
Entre os séculos IV e XVI, os concílios da Igreja forneceram uma estrutura de autoridade por meio da qual a doutrina e a disciplina foram estabelecidas. Antes de cada concílio, era comum que diversos grupos de interesse comunicassem seu ponto de vista sobre o que o concílio deveria estabelecer. Mulheres articuladas, como Hildegard de Bingen, podiam usar a profecia como uma forma de comunicar seu ponto de vista.
O problema desses concílios, porém, é que eles se tornavam reféns do privilégio episcopal e da ambição nacional. O Concílio Vaticano I promoveu a supremacia papal. Foi somente com o Concílio Vaticano II que houve um esforço concertado para voltar a esse modo conciliar de pensar envolvendo todo o Povo de Deus. No entanto, apenas 23 mulheres participaram do Vaticano II e apenas como auditoras.
As palavras se cansam e precisam ser reinventadas para recuperar seu significado original. A sinodalidade é simplesmente a forma mais recente de regenerar as tradições de consulta que remontam aos primórdios da Igreja.
Aqui na Austrália, podemos aprender como uma multidão de Primeiros Povos, cada um com sua própria língua e musicalidades, com suas próprias tradições sagradas transmitidas oralmente, aprenderam a viver juntos da mesma forma que os ramos de uma árvore, para usar a metáfora de Cipriano.
O precedente para reconhecer a diversidade dentro da tradição católica deve remontar ao próprio Novo Testamento, no qual (em meados do século II, e então não universalmente adotado) começou a surgir um consenso no sentido de combinar quatro versões do Evangelho e uma série de cartas de diferentes apóstolos.
Mesmo assim, o registro oficial dá apenas as dicas mais vagas sobre o que as seguidoras de Jesus tinham a dizer. Paulo pode ter sido moldado pelos pressupostos culturais de sua época, mas reconheceu que a mensagem do Evangelho era para todas as pessoas, independentemente do status delas na sociedade.
Um grande desafio para quem se diz cristão é reconhecer a realidade da violência dos abusos sexuais e seus efeitos prolongados sobre aquelas pessoas desiludidas pelo fracasso do clero em reconhecer esses erros.
No período medieval, pensava-se que o celibato era uma forma legítima de superar falhas de castidade dentro de uma elite clerical. Tais ideias operavam dentro de uma compreensão da identidade sexual que privilegiava a repressão da carne. A verdadeira sinodalidade deve envolver o reconhecimento daquelas pessoas que foram abusadas por aqueles que estavam em posições de poder.
Qualquer que seja a palavra que usemos para sinodalidade, devemos aprender a viajar juntos pela estrada.
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Sinodalidade das origens: o processo de consulta na Igreja primitiva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU