27 Julho 2020
Cusparadas, insultos, humilhações. Os 404 dias passados em uma cela de oito metros de comprimento e dois de largura em uma prisão de Melbourne e depois na prisão de segurança máxima em Barwon, não foram fáceis para o cardeal George Pell, ex-czar das finanças do Vaticano acusado de abuso sexual contra dois coristas em 1996 na Catedral de St. Patrick em Melbourne. Acusações das quais ele foi absolvido posteriormente. É o próprio cardeal quem conta esses treze meses atrás das grades, em um artigo assinado por ele publicado na revista conservadora estadunidense "First Thing" e apresentado ontem em italiano pelo periódico "Tempi".
A reportagem é de Salvatore Cernuzio, publicada por Siglo XIX, 25-07-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Uma iniciativa que parece querer antecipar a publicação do "diário da prisão" do cardeal, o livro que contém não apenas as lembranças, mas também suas memórias e reflexões cujo lançamento está previsto para o primeiro semestre de 2021. O livro será publicado pela editora jesuíta Ignatius Press, cujos líderes são conhecidos por terem apoiado iniciativas contra o Papa Francisco no passado.
O diretor Joseph Fessio, anunciando o lançamento do livro, garantiu que "será um clássico da espiritualidade" e que, sendo um texto de mais de mil páginas, poderia ser dividido em três e quatro partes. Ele então pediu doações aos leitores, a fim de "oferecer ao Cardeal Pell os adiantamentos necessários para os volumes, que depois poderá usar para cobrir a maioria das dívidas legais", conforme declarado em uma mensagem exibida no site da Ignatius Press, acompanhada do link "Cardinal George Pell Donation Project".
Alguns detalhes sobre as condições na prisão do ex-prefeito da Secretaria de Economia do Vaticano já eram conhecidos do grande público, contados por pessoas próximas a ele que o visitavam regularmente (o Vatican Insider falou sobre isso aqui). O próprio Pell na entrevista de abril, pouco depois de sua libertação, com Andrew Bolt, jornalista do Sky News Australia que sempre o defendeu, dava uma prévia dos dias de prisão.
Nesse artigo-memorial, ele revela detalhes inéditos, como a cusparadas recebidas de outro prisioneiro no pátio. Um dos muitos casos de ataques físicos ou verbais que os acusados de pedofilia sofrem na prisão, arriscando, na pior das hipóteses, a mesma vida. "O ódio dos prisioneiros por aqueles que abusam de um menor é universal, um exemplo interessante da lei natural que emerge através da escuridão", escreve o cardeal. Por isso, foi colocado em isolamento.
O "cathedral trial", o processo contra Pell, inflamou a Austrália, país ferido pela praga da pedofilia com cerca de 4.400 casos de menores vítimas de violência por sacerdotes e religiosos. E para o cardeal "ranger", como era chamado na Cúria Romana, havia aqueles que pediam a prisão perpétua, a demissão do estado clerical ou diretamente o inferno, mas também aqueles que sempre apoiavam sua inocência e a instrumentalização do processo.
Divisão esta, presente também entre os presos: "As opiniões sobre minha inocência ou culpa estavam divididas, como em muitos setores da sociedade australiana, embora a mídia, com algumas exceções esplêndidas, tenha sido violentamente hostil à minha pessoa", diz o cardeal. Na Unidade 8, onde sua cela estava localizada na Melbourne Assessment Prison, várias vezes ele foi "denunciado e maltratado". Mas ele diz que encontrou "muita bondade" em ambas as penitenciárias: "tive sorte de ter sido mantido em segurança. Fiquei impressionado com o profissionalismo dos guardas, a fé dos prisioneiros e a presença da uma moralidade até mesmo nos lugares mais sombrios".
Especialmente, Pell diz que "nunca se sentiu abandonado por Deus", certo de que "o Senhor estava comigo, embora durante a maior parte dos treze meses eu não tenha entendido o que estava fazendo. Por muitos anos, disse aos sofredores e aos aflitos que o Filho de Deus também havia passado por provações nesta terra, e agora eu mesmo me confortava com esse fato. Por isso, orei por amigos e inimigos, pelos meus apoiadores e pela minha família, pelas vítimas de abusos sexuais, pelos meus companheiros de prisão e pelos guardas”.
O cardeal também recorda o "uniforme verde" na prisão de Melbourne e aquela "vermelho brilhante tipo cardeal" em Barwon e descreve sua cela com um colchão "não muito grosso", uma lâmpada de leitura, dois cobertores, uma TV, um espaço para comer, uma banheira com água mais fria que quente. Ele também fala das manhãs em que acordava com a oração cantada por prisioneiros muçulmanos e das cinco únicas missas nas quais ele participou em mais de um ano, excluindo o Natal e a Páscoa.
No longo memorial, há também a lembrança das duas meias horas ao ar livre concedidas todos os dias. Durante uma dessas pausas no pátio, um prisioneiro em uma área adjacente separada por um muro com uma abertura na altura da cabeça cuspiu nele. “Eu estava andando pelo perímetro quando alguém me cuspiu através da rede de metal da abertura e começou a me insultar. Foi uma surpresa total, então voltei furiosamente para a janela para encarar meu agressor e falar com ele. Ele se afastou da minha vista, mas continuou a me insultar, chamando-me a ‘aranha negra’ e outros termos nada lisonjeiros”.
O cardeal deixa claro que ele justificou aquele homem: “Todos somos tentados a desprezar aqueles que consideramos piores do que nós mesmos. Até os assassinos compartilham indignação contra aqueles que violam os jovens. Por mais irônico que seja, esse ultraje não é de forma alguma negativo, pois revela uma fé na existência do bem e do mal, do certo e do errado, que muitas vezes na prisão surge de maneiras surpreendentes”.
O cardeal relata que teve um momento de desânimo em agosto de 2019, depois de perder o recurso junto à Victoria Court: “Avaliei não apelar para o Supremo Tribunal da Austrália. Se os juízes estavam se preparando apenas para fechar posição, não havia necessidade de participar de uma encenação tão onerosa”. Mas “o chefe da prisão de Melbourne, um homem maior do que eu, uma pessoa muito direta, me pressionou para continuar. Isso me deu coragem e sou grato a ele”.
Em abril de 2020, um colégio de sete juízes votou por unanimidade para anular qualquer condenação contra o cardeal, declarando a "possibilidade significativa" de um homem inocente ter sido preso. Pell tomou conhecimento da absolvição assistindo a um noticiário no Canal 7, onde um "jovem repórter surpreso" lia o veredicto. Ele está livre desde 7 de abril e foi transferido de Barwon para o mosteiro carmelita de Kew para a primeira noite. No dia seguinte, foi para Sydney, encontrando-se "em um mundo fechado pelo coronavírus".
Sobre Pell, algumas semanas após sua libertação, alguns meios de comunicação australianos relataram uma nova investigação policial, que teria começado depois que um homem, sem maiores informações a respeito, se apresentou com novas acusações de abuso.
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Os dias na prisão do cardeal Pell: “Insultado e humilhado”. Em 2021 será publicado um livro-testemunho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU