21 Julho 2021
"Francisco pode ser um legislador efetivo e incisivo, como vimos em muitas outras áreas. Mas ele às vezes é relutante em mudar os mecanismos institucionais, preferindo, em vez disso, iniciar reformas espirituais de longo prazo destinadas a transformar o estilo da Igreja ao longo do tempo. Mas ele está assumindo um grande risco ao não atualizar as regras que regem o conclave ou ao pensar que pode esperar até o fim do pontificado para fazer isso".
O comentário é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado por La Croix International, 20-07-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Papa Francisco modificou significativamente a composição do colégio eleitoral, acrescentando ao seu número até mesmo homens de países que nunca antes tiveram um cardeal.
Isso reflete o seu esforço para deseuropeizar a Igreja e o órgão que elegerá o seu sucessor. É uma mudança institucional muito importante.
Mas o papa, que completa 85 anos em dezembro, ainda não atualizou as normas que regulamentam o conclave. Ele precisa fazer isso logo ou poderá haver problemas sérios.
Um recente artigo na revista italiana de política Il Mulino, escrito pelo renomado historiador da Igreja Alberto Melloni (um de meus mentores), levanta questões urgentes sobre o próximo conclave.
Trata-se de uma versão revisada e atualizada de um livro muito importante que ele escreveu no início dos anos 2000 sobre a história das eleições papais.
Em primeiro lugar, ele oferece uma breve análise das mudanças mais recentes nas regras para o conclave, especialmente a constituição Universi Dominici Gregis, de João Paulo II (1996).
Esse texto designava especificamente Roma como o único lugar onde a eleição papal pode ocorrer, revogando assim a antiga regra segundo a qual o conclave ocorria onde quer que o papa morresse.
Em seguida, Melloni menciona a ligeira modificação feita por Bento XVI na Universi Dominici Gregis em 22 de fevereiro de 2013, logo após anunciar a sua renúncia ao papado.
Bento XVI restaurou em todos os casos a necessidade de uma maioria de dois terços para a eleição do Romano Pontífice, desfazendo a possibilidade de eleição por maioria simples que João Paulo II havia introduzido.
Melloni deixa claro que Francisco não tem obrigação nenhuma de atualizar as normas do conclave, mas exorta o papa a fazê-lo com base em dois novos fatos.
O primeiro é a criação de Francisco de novas normas especiais para combater o abuso sexual clerical e a omissão dos bispos em agirem, em um sistema que às vezes pode assumir a forma de justiça sumária em detrimento da equidade, devido à pressão externa para agir de forma dura em relação ao clero abusador.
O segundo é a restauração por parte de Francisco do sistema de “justiça temporal” no Vaticano, que poderia expor os cardeais a acusações instrumentais, capazes de excluí-los do conclave ou pelo menos da lista de papáveis.
Esses novos desdobramentos, diz Melloni, colocam em perigo a liberdade do próximo conclave.
“Sem algumas modificações na constituição que regulamenta o conclave, o século XXI pode significar o retorno de um formidável poder de veto, capaz de alterar o resultado da eleição papal: um poder de veto não mais exercido pelos monarcas católicos, mas pelos novos impérios midiáticos e por quem tem a tecnologia para utilizá-la ou interesses para mobilizá-la”, alerta ele.
Melloni faz quatro propostas para atualizar as regras do conclave.
Sua primeira sugestão é intensificar a clausura. Ele diz que todos os cardeais eleitores deveriam ser obrigados a residir na Casa Santa Marta assim que chegarem a Roma, em vez de poderem esperar até que o conclave realmente comece.
Sua segunda recomendação é de que as “congregações gerais” – isto é, as reuniões diárias pré-conclave de todos os cardeais, inclusive dos não eleitores com mais de 80 anos – também incluam sessões em clima de clausura apenas para os eleitores.
A terceira proposta de Melloni é mudar a frequência das votações: apenas uma votação por dia durante os três primeiros dias; duas votações todos os dias durante os próximos três dias; e quatro nos três dias seguintes.
Ele diz que isso daria mais tempo às “diferentes partes” do conclave para a discussão. Também livraria os eleitores da pressão para que se produza um novo papa rapidamente.
A quarta e última proposta também diz respeito aos riscos de uma eleição precipitada.
Melloni sugere que novas regras deveriam dar ao cardeal que recebeu votos suficientes para ser papa mais tempo para rezar, refletir e examinar a sua consciência. Isso permitiria que ele veja se há algo em seu passado (também quando teve que lidar com casos de abuso) que poderia expor a eleição papal a “dubia” (dúvidas).
Todas essas propostas são ponderadas e judiciosas, e outras também poderiam ser acrescentadas, especialmente à luz do fato de que os atuais cardeais eleitores mal se conhecem.
Em seus mais de oito anos como papa, Francisco reuniu todos os cardeais vivos para uma reunião geral apenas uma vez (nos dias 20 e 21 de fevereiro de 2014). Mas a discussão livre foi muito limitada.
Tais reuniões parecem ser ainda mais importantes agora do que nunca.
Em primeiro lugar, o atual grupo de cardeais inclui homens de regiões geográficas que nunca estiveram representadas antes em um conclave.
E, em segundo lugar, as velhas redes clericais que já fizeram parte das eleições papais não têm mais a mesma importância que antes. Elas foram substituídas por outras redes de influência.
É importante notar que a situação pode ser ainda mais grave do que Melloni admite, por pelo menos dois motivos.
O primeiro tem a ver com uma situação eclesial particular nos Estados Unidos, onde vimos ameaças diretas à liberdade do papa e, implicitamente, ao próximo conclave.
O caso de abuso sexual de Theodore McCarrick, ex-cardeal, e os ataques oportunistas contra o Papa Francisco pelo arcebispo Carlo Maria Viganò, ex-núncio em Washington, desencadearam uma onda de indignação em alguns grupos e redes católicos.
Isso revelou a virada anti-institucional e niilista do conservadorismo hoje – até mesmo dentro da Igreja Católica.
Por exemplo, existe algo chamado “Red Hat Report” [Relatório do Barrete Vermelho], que mantém arquivos sobre todos os cardeais eleitores. Só podemos imaginar como isso será usado quando eles se reunirem novamente em Roma para eleger o próximo papa.
Essa iniciativa deve ser vista no contexto da fúria ideológica contra o Papa Francisco, que se manifesta em certos ambientes clericais, intelectuais, financeiros e políticos dos Estados Unidos.
Todos eles estão bem conectados com o novo ecossistema midiático que molda as narrativas sobre o estado do catolicismo e a política da Igreja.
Seria um grave erro subestimar o que eles provavelmente farão com todas as informações e a influência que acumularam para definir o resultado do próximo conclave.
Antes, durante e depois da campanha presidencial de 2020 [nos Estados Unidos], muitos católicos (incluindo alguns bispos) se recusaram a reconhecer e aceitar que Joe Biden havia sido eleito legitimamente.
Um cenário semelhante também pode ocorrer com a eleição do próximo papa. Viganò e seus partidários quebraram o último tabu do catolicismo institucional ao exigir que Francisco renunciasse. Se alguém pode tentar derrubar um papa, tudo é possível.
A Igreja Católica nos Estados Unidos está em uma situação de cisma leve ou material entre dois grupos diferentes. Eles estão profundamente divididos quanto ao pontificado de Francisco.
A tentativa de Viganò e de outros de expulsarem o papa em agosto de 2018 foi o equivalente eclesiástico ao ataque do dia 6 de janeiro ao Capitólio em Washington pelos partidários de Donald Trump.
Mas, no próximo conclave, haverá um vácuo de poder em Roma que não existia em agosto de 2018. A situação pode ser mais, muito mais perigosa do que muitos esperam.
É ingênuo supor que aqueles que sempre acusaram Francisco de não ser católico se absteriam de fazer qualquer coisa e todo o possível para vencer no próximo conclave.
A segunda razão pela qual a situação agora pode ser mais perigosa do que aquela que Melloni reconhece em seu artigo (publicado em maio) é o que aconteceu no dia 4 de julho.
Essa foi a noite em que Francisco fez uma cirurgia no Hospital Gemelli, em Roma.
Depois de uma internação de 10 dias, o papa já está de volta para a sua casa, na Residência Santa Marta. Não está claro como será a recuperação para um homem da sua idade, já avançada, mas alguns já estão começando a especular sobre a sua capacidade de continuar governando a Igreja.
Também começaram a circular rumores sobre quais cardeais têm as melhores chances de suceder a Francisco.
A decisão do papa de publicar o recente motu proprio revogando o Summorum pontificum é um sinal da sua determinação. Mas alguns vão lê-lo como uma transmissão de um senso de urgência à luz do declínio da saúde do papa e da aproximação do fim do seu pontificado.
Francisco pode ser um legislador efetivo e incisivo, como vimos em muitas outras áreas. Mas ele às vezes é relutante em mudar os mecanismos institucionais, preferindo, em vez disso, iniciar reformas espirituais de longo prazo destinadas a transformar o estilo da Igreja ao longo do tempo.
Mas ele está assumindo um grande risco ao não atualizar as regras que regem o conclave ou ao pensar que pode esperar até o fim do pontificado para fazer isso.
Essa é uma questão urgente que não pode esperar.
Provavelmente, a maior mudança desde os dois últimos conclaves – que elegeu Bento XVI em 2005 e Francisco em 2013 – é o poder dos influenciadores católicos nas mídias convencionais, nas mídias digitais e nas mídias sociais.
Desde 2013, pequenos grupos de pessoas com pautas extremamente idiossincráticas (incluindo alguns prelados com uma grande audiência em mídias tradicionais e mídias sociais) têm elaborado uma narrativa ideológica sobre a Igreja.
Eles não conseguem resistir à tentação de criar uma tempestade midiática quando não conseguem aquilo que querem.
Basta ver a forma como alguns deles reagiram ao motu proprio de Francisco que restringiu o uso da antiga missa em latim.
Assim, você poderá ter uma ideia da devastação que eles podem provocar no próximo conclave.
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Por que Francisco precisa revisar com urgência os protocolos do próximo conclave. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU