09 Fevereiro 2023
Teorias geopolíticas dominantes continuam a se apoiar no conceito de hegemon. Mas a China, emergente, não parece interessada em exercê-lo. Sua recusa pode evitar o desastre e abrir espaço para o multilateralismo e a cooperação.
O artigo é de Jeffrey D. Sachs, publicado por Other News e reproduzido por Outras Palavras, 07-02-2023. A tradução é de Maurício Ayer.
Há um consenso universal de que estamos em um período geopolítico de tensão e escalada. Em uma cronologia grosseira, 1815-1914 foi a era da hegemonia britânica, a não tão pacífica Pax Britannica. O que se seguiu entre 1914 e 1945 foi um período desastroso de duas guerras mundiais e da Grande Depressão. O fim da Segunda Guerra Mundial marcou a ascensão dos Estados Unidos como o novo país hegemônico, bem como o início da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética. Este período durou de 1947 a 1989. O período de 1989 até cerca de 2008 tem sido descrito (com ou sem razão) como o mundo unipolar, sendo os Estados Unidos amplamente considerados como superpotência única. Na última década, entramos em uma nova era geopolítica, mas de que tipo?
Existem pelo menos cinco grandes teorias sobre a geopolítica atual. As três primeiras são variantes da Teoria da Estabilidade Hegemônica; a quarta é a importante escola do realismo internacional. A quinta é minha teoria preferida, a do multilateralismo, baseada na importância preeminente da cooperação global para resolver problemas globais urgentes.
A Teoria da Estabilidade Hegemônica, defendida pelas elites americanas na política, no governo e na academia, sustenta que os Estados Unidos continuam sendo o líder hegemônico mundial, a única superpotência, embora desafiado por um concorrente em ascensão, a China, e por um competidor menor, mas dotado de armas nucleares, a Rússia.
A Teoria da Competição Hegemônica, às vezes apelidada de teoria da Armadilha de Tucídides, sustenta que a ascensão da China deu início a um período de confronto entre os Estados Unidos e a China, juntamente com o confronto contínuo dos Estados Unidos e da Rússia. A competição EUA-China é comparada à de Esparta e Atenas nas Guerras do Peloponeso, com a China desempenhando o papel de Atenas, a potência em ascensão no mundo helênico do século IV a.C., desafiando Esparta, a potência vigente.
A teoria do Declínio Hegemônico se concentra no fato de que os Estados Unidos não estão mais dispostos ou aptos a desempenhar o papel de estabilizador global (se é que alguma vez estiveram). De acordo com essa teoria, nosso período atual será semelhante ao período de declínio britânico após a Primeira Guerra Mundial e antes da ascensão da hegemonia estadunidense. A teoria do Declínio Hegemônico sustenta que o declínio de um país hegemônico leva à instabilidade global.
A teoria realista sustenta que a geopolítica é definida pela política das grandes potências, com a China, os Estados Unidos, a UE, a Rússia e, cada vez mais, a Índia, desempenhando o papel das grandes potências e compartilhando o cenário mundial com potências regionais (como Brasil, Indonésia, Irã, Paquistão e Arábia Saudita, entre outros).
A teoria multilateralista, a qual subscrevo, sustenta que somente a cooperação global e o multilateralismo, organizados em torno das instituições da ONU, podem nos salvar de nós mesmos, seja da guerra, de tecnologias perigosas, seja das mudanças climáticas induzidas pelo homem. O multilateralismo é frequentemente descartado como excessivamente idealista porque exige cooperação entre as nações, mas argumentarei que é de fato mais realista do que a teoria realista.
Claro, existem várias outras abordagens importantes para a geopolítica, incluindo as teorias marxistas focadas nos interesses e no poder do capital financeiro globalmente móvel, a teoria do centro-periferia de Immanuel Wallerstein e a teoria do choque de civilizações de Samuel Huntington. São todas bem conhecidas e têm sido amplamente debatidas. Por uma questão de brevidade, vou me concentrar nas três teorias hegemônicas, no realismo e no multilateralismo.
Os Estados Unidos eram de longe a principal potência mundial no final da Segunda Guerra Mundial. Segundo estimativas do historiador Angus Maddison (2010), os Estados Unidos produziam 27,3% da produção global (medida a preços internacionais) em 1950, embora constituíssem apenas 6% da população mundial (e hoje apenas 4,1%). A União Soviética era a segunda maior economia, com aproximadamente um terço do tamanho dos Estados Unidos, enquanto a China era a terceira, com aproximadamente um sexto. A vantagem americana não estava apenas no PIB total, mas também em ciência, tecnologia, ensino superior, profundidade dos mercados de capitais, sofisticação da organização empresarial e qualidade e quantidade da infraestrutura física. As empresas multinacionais americanas deram a volta ao mundo para criar cadeias produtivas globais.
A predominância dos EUA diminuiu gradualmente desde 1950, principalmente porque outras partes do mundo foram alcançando os Estados Unidos em avanço tecnológico, capacidades e infraestrutura física. Como prevê a teoria, a globalização promoveu a disseminação do conhecimento científico e tecnológico, do ensino superior e da infraestrutura moderna. O Leste Asiático foi o maior beneficiário da globalização. A decolagem do Leste Asiático começou com a rápida reconstrução pós-guerra do Japão durante o período de 1945-1960, seguido da década em que sua renda dobrou, os anos 1960. O Japão, por sua vez, forneceu um roteiro para os quatro Tigres Asiáticos (Coreia, Taiwan, Hong Kong e Cingapura), que iniciaram seu rápido crescimento na década de 1960, e depois para a China, a partir do final da década de 1970, com as reformas de Deng Xiaoping e a abertura do país para o mundo. De acordo com as estimativas de Maddison, as 16 principais economias do Leste Asiático produziram 15,9% da produção mundial em 1950, 21,7% em 1980 e 27,8% em 1990. Na década de 1990, a Índia também iniciou uma era de abertura econômica e rápido crescimento.
Com a dissolução da União Soviética em 1991, os Estados Unidos não enfrentaram nenhum grande concorrente pela liderança global. Embora a economia da Europa Ocidental fosse amplamente comparável em tamanho à economia americana, o continente europeu permaneceu dependente dos Estados Unidos para segurança militar e, de qualquer forma, era um grupo disjunto de nações com políticas externas geralmente subordinadas aos EUA. O Leste Asiático havia crescido rapidamente, mas era uma força geopolítica ainda menor do que a Europa. De acordo com as medições do FMI, o PIB da China medido em dólares internacionais constantes correspondia a 17,5% do PIB americano, apesar de uma população que era 4,6 vezes maior. Sua renda per capita era, portanto, apenas 3,8% da americana, de acordo com as estimativas do FMI. As tecnologias e a capacidade militar da China tinham décadas de atraso em relação aos Estados Unidos, e seu arsenal nuclear era pequeno. Talvez seja compreensível que os formuladores de políticas em Washington presumissem que os Estados Unidos seriam a única superpotência mundial por décadas a fio.
O que eles não previram, é claro, foi a capacidade da China de crescer rapidamente nas décadas seguintes. Entre 1991 e 2021, o PIB da China (medido em dólares internacionais constantes) cresceu 14,1 vezes, enquanto o PIB americano cresceu 2,1 vezes. Em 2021, de acordo com estimativas do FMI, o PIB da China em preços internacionais constantes de 2017 era 18% maior que o PIB dos EUA. O PIB per capita da China aumentou de 3,8% do dos EUA em 1991 para 27,8% em 2021 (estimativas do FMI).
Os rápidos ganhos da China em produção e produção por pessoa foram sustentados por rápidos avanços chineses em conhecimento tecnológico, capacidade de inovar, educação de qualidade em todos os níveis e atualização e modernização da infraestrutura. Os ingênuos e às vezes racistas analistas estadunidenses desprezaram o sucesso da China como sendo tão somente decorrência de roubo do know-how americano, como se os Estados Unidos fossem a única sociedade que pudesse aproveitar a ciência e a engenharia modernas e também como se não dependessem de conhecimentos científicos e avanços tecnológicos produzidos em outros lugares. Na verdade, a China está se recuperando ao dominar o conhecimento tecnológico avançado e tomar medidas para se tornar uma grande inovadora autônoma.
Também não devemos negligenciar o crescente poder econômico tanto da Índia quanto da África, esta última incluindo os 54 países da União Africana. O PIB da Índia cresceu 6,3 vezes entre 1991 e 2021, passando de 14,6% do PIB dos Estados Unidos para 44,3% (todos medidos em dólares internacionais). O PIB da África cresceu significativamente durante o mesmo período, atingindo 13,5% do PIB dos EUA em 2022. O mais importante neste contexto é que a África também está se integrando política e economicamente, com avanços importantes em políticas e na infraestrutura física para criar um mercado único interconectado no continente.
Nos últimos 30 anos, três mudanças econômicas básicas transformaram a geopolítica. A primeira é que a participação dos EUA na produção global caiu de 21,0% em 1991 para 15,7% em 2021, enquanto a da China aumentou de 4,3% em 1991 para 18,6% em 2021. A segunda é que a China ultrapassou os Estados Unidos no PIB total e tornou-se o principal parceiro comercial para grande parte do mundo. A terceira é que os BRICS, formados por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, também ultrapassaram os países do G7 em produção total. Em 2021, os BRICS tiveram um PIB combinado de US$ 42,1 trilhões (medido em preços internacionais constantes de 2017), em comparação com US$ 41,0 trilhões no G7. Em termos de população combinada, os BRICS, com uma população de 3,2 bilhões em 2021, é 4,2 vezes a população combinada dos países do G7, em 770 milhões. Em suma, a economia mundial não é mais dominada pelos americanos ou liderada pelo Ocidente. A China tem tamanho econômico geral comparável ao dos Estados Unidos, e os grandes países de renda média são um contrapeso para as nações do G7. É notável que quatro presidências consecutivas do G20 serão realizadas por países em desenvolvimento de renda média: Indonésia (2022), Índia (2023), Brasil (2024) e África do Sul (2025).
O roteiro para alcançar o multilateralismo do século XXI requer um ensaio separado. Em suma, o multilateralismo do século XXI deve se basear em dois documentos fundamentais, a Carta da ONU e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e na família de instituições da ONU. Os bens públicos globais devem ser financiados por uma grande expansão dos bancos multilaterais de desenvolvimento (incluindo o Banco Mundial e os bancos regionais de desenvolvimento) e do FMI. O novo multilateralismo deve ser baseado em metas globalmente acordadas, notadamente o Acordo do Clima de Paris, o Acordo de Biodiversidade e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Deve colocar as novas tecnologias de ponta, incluindo a conectividade digital e a inteligência artificial, no âmbito do direito internacional e da governança global. Deve reforçar, implementar e desenvolver os acordos vitais sobre controle de armas e desnuclearização. Por fim, deve buscar força na antiga sabedoria das grandes tradições religiosas e filosóficas. Há muito trabalho pela frente para construir o novo multilateralismo, mas é o próprio futuro que está em jogo.
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A inusitada mas possível Geopolítica do Comum. Artigo de Jeffrey D. Sachs - Instituto Humanitas Unisinos - IHU