09 Fevereiro 2023
"A intervenção do Papa na Caritas internationalis, para além das críticas que suscitou, é uma magnífica oportunidade para imaginar e repensar - seguindo as suas indicações do ano de 2019 - um novo modelo de Caritas que, com uma matriz explicitamente cristológica e com claras raízes eclesiais, permita enfrentar o século XXI de forma mais evangélica", escreve Jesús Martinez Gordo, presbítero da Diocese de Bilbao e professor da Faculdade de Teologia de Vitoria-Gasteiz e do Instituto Diocesano de Teologia e Pastoral de Bilbao, em artigo publicado por Settimana News, 08-02-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em novembro passado, o Papa Francisco dispensou a cúpula da Caritas internationali e anunciou a nomeação de uma comissão para propor "novos instrumentos de gestão e liderança". Essa decisão refere-se a algumas de suas palavras em maio de 2019 sobre a matriz cristológica e as raízes eclesiais ou pastorais da Caritas, e outras de Bento XVI em 2012 sobre a "identidade distintiva" dessa instituição. E também a duas obras, de Juan Luis Vives e Domingo de Soto, em total sintonia com o que foi expresso por ambos os pontífices. A soma de todos esses dados e as referências nos convidam a abrir um diálogo sobre possíveis novos modelos de liderança e gestão da Caritas em que se mantenham presentes, em especial, esses fundamentos: cristológico e eclesial ou "pastoral".
Fiquei surpreso, ainda que não muito, com o anúncio - em 22 de novembro de 2022 - de que o Papa Francisco demitiria a direção da Caritas internationalis, nomeando um novo corpo diretivo. Com essa decisão, ele substituiu a cúpula após ser informado dos resultados de uma auditoria - encomendada por card. Michael Czerny, prefeito do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral - na qual foram encontradas deficiências nos procedimentos de gestão e de liderança que prejudicavam gravemente o "espírito de equipe" e o "moral do pessoal".
Para isso nomeou como comissário extraordinário Pier Francesco Pinelli - um dos três consultores da referida auditoria, que será acompanhado em suas novas funções pelo cardeal filipino Luis Antonio Tagle e pelo espanhol Amparo Alonso, desde 2020 encarregado de "Incidência e campanhas da instituição".
Em particular, encarregou-os de "propor e apresentar novos instrumentos de gestão e de liderança" antes da próxima Assembleia Geral da entidade, que se realizará em maio de 2023. Aquele será o momento em que será escolhida uma nova equipa de gestão e em que se espera que as águas retomem o seu curso.
Eu disse que essa intervenção não me surpreendeu totalmente. E não foi por ter sido precedida por algumas importantes considerações do Papa Bergoglio sobre a caridade, em 27 de maio de 2019, inclusive aos membros da Caritas internationalis, no encerramento de sua XXI Assembleia Geral.
Gostaria de destacar três pontos fundamentais daquele discurso que, creio, também poderiam ser levados em consideração no processo de revisão iniciado em relação à Caritas internationalis. E que, do mesmo modo, poderiam ser tomados em consideração em algumas das numerosas Caritas locais, para que possam iniciar um caminho semelhante ao agora promovido pelo Papa para essa instituição.
Naquela ocasião, disse que a caridade não é "uma ideia", nem "um serviço estéril", nem "um sentimento piedoso", nem "uma simples oferta" ou uma "pílula sedativa" para silenciar a nossa consciência. E, uma vez esclarecido o que não era, passou a recordar o que era: "o abraço de Deus aos homens" (...), "sobretudo ao mais pequenino e ao que sofre", porque nos seus rostos se esconde "o rosto de Cristo". Eles "são a sua carne, sinais do seu corpo crucificado". E, por isso, na relação com eles, está em jogo "o encontro experiencial com Cristo", que envolve "o coração, a alma e todo o nosso ser"; algo que só é possível na partilha e na vivência "com os pobres e para os pobres". À luz desse princípio fundamental - prosseguiu - só é aceitável uma caridade que se preocupe "em alcançá-los, mesmo nas periferias mais extremas"; e feita com "delicadeza e ternura".
Depois de recordar as raízes cristológicas e, portanto, espirituais e teológicas da caridade, disse-lhes, em segundo lugar, que “não se pode viver a caridade sem ter relações interpessoais com os pobres: viver com os pobres e para os pobres”.
"Os pobres não são números, mas pessoas". Se não se tiver isso em mente, acaba-se falando em caridade e vivendo no luxo; organizamos um "fórum sobre a caridade desperdiçando tanto dinheiro desnecessariamente" ou brincamos com "a cultura do desperdício e da indiferença".
E continuou: “Sendo a caridade a mais almejada das virtudes a que se aspira para imitar a Deus, é escandaloso ver operadores da caridade que a transformam em um negócio” (...). "Dói muito ver alguns operadores da caridade se tornarem funcionários públicos e burocratas", ou seja – assim eu o entendo - pessoas interessadas exclusivamente nos critérios do que é vivido e realizado como um trabalho remunerado, e pouco mais.
Esses dois lembretes à raiz cristológica da caridade e ao "escândalo" de vivê-la como um "negócio" ou como fazem "funcionários" e "burocratas", levaram Bergoglio a encerrar seu discurso encorajando os presentes - e, através deles, todos os membros e os operadores da Caritas – para ir em frente “em comunhão com as comunidades eclesiais a que pertencem e das quais são expressão”.
Aqui está outro dado, espiritual e teológico, que deveria ser levado em consideração na reforma de qualquer Caritas local.
Sempre me pareceu que essa importantíssima intervenção do Papa Francisco estivesse em continuidade com aquela de Bento XVI em 2012, quando ele também se dirigiu à Caritas internationalis. Naquela ocasião, o Papa Ratzinger pediu - em termos mais gerais que os de Francisco - que esta instituição prestasse particular atenção à sua "identidade distintiva", isto é, ao fundamento e à motivação cristã do serviço prestado e à sua dimensão eclesial.
Assim, uma vez recordadas as raízes cristológicas, eclesiais e espirituais da caridade cristã e alguns dos muitos aspectos a que se deve prestar particular atenção na sua gestão e direção, seria desejável (mas é apenas uma expectativa que apoia a decisão do pontífice) que se experimentasse uma reforma da Caritas - inclusive aquelas diocesanas ou locais - na qual seja cuidada de forma equilibrada a "identidade distintiva" (ou seja, cristológica e eclesial) da caridade e da justiça em favor dos últimos sem incorrer num espiritualismo ultrapassado ou "descarnado", “assim como num assistencialismo totalmente confundido com uma certa eficiência e justiça, ou num profissionalismo que, obcecado pelo lucro, acaba por ser sem alma; ou - o que dá no mesmo - deixando de lado a mística e a espiritualidade que brotam do encontro com Deus nos pobres; ou operando à margem da comunidade cristã, ou seja, terceirizando.
Seria uma oportunidade desperdiçada se tal reforma tratasse de rever e promover - como ouvi dizer - apenas uma melhoria técnica e administrativa para facilitar todo empenho ou trabalho e não atendesse, igualmente, ao singular fundamento cristológico e eclesial sobre o qual se fundamenta toda a gestão e liderança da caridade e defesa da justiça na comunidade cristã.
Mas, insisto, é apenas um desejo que - fruto da conexão detectada entre esta última decisão e as mensagens provocativas do Papa Ratzinger em 2012 e, sobretudo, de Francisco em 2019 - me induz a imaginar e supor como poderia ser essa reforma, ao mesmo tempo técnico-organizacional e teológico-espiritual. E o porquê.
É evidente que uma tal perspectiva pode ser levada em consideração ou ignorada com tranquilidade, sabendo-se que só possui a "autoridade" dos dados e dos argumentos que são apresentados. Nada mais. Mas, também, nada menos.
Recentemente, reli dois livros que para mim foram tão esclarecedores quanto as provocativas considerações do Papa Francisco sobre a caridade e o interesse de Bento XVI por sua "identidade distintiva": o tratado Socorro de los pobres ("Ajuda aos pobres") do humanista Juan Luis Vives (1492-1540) e a Deliberación em la causa de los pobres ("Reflexão sobre a causa dos pobres"), do dominicano Domingo de Soto (1495-1560).
Articulando o seu conteúdo com as intervenções papais que mencionamos, ajudaram-me a imaginar e a refletir sobre como poderia ser um novo modelo de caridade e de justiça, atento à experiência cristológica, espiritual e teológica; promotor de uma liderança e gestão renovadas e atento à sua matriz eclesial ou comunitária.
Em 1526, durante uma curta estada em Bruges, Vives escreveu o Tratado de Ajuda aos Pobres, obra em que apresentava aos responsáveis municipais um plano de intervenção contra a pobreza naquela cidade, até então reservada exclusivamente à responsabilidade da Igreja.
Trata-se de uma proposta em que o autor se depara com uma "política municipal" que havia decidido limpar a cidade e que, consequentemente, havia escolhido esconder os pobres, persegui-los e encarcerá-los, em vez de sair e enfrentar o drama de sua miséria.
Juan Luis Vives tem muito clara a matriz cristológica tanto do empenho de combate à pobreza como a favor dos pobres e da destinação universal dos bens.
Em primeiro lugar, a identificação de Jesus com os últimos da cidade. Quem dá esmola “por amor de Deus” – recorda o humanista cristão – não só conserva “um coração apaixonado”, mas, sobretudo, torna-se um imitador de Cristo, aquele que “enche” os nossos corações “de uma certa doçura”.
Em segundo lugar, é também de enorme importância a tese de que “tudo o que temos não nos pertence realmente, mas nos foi concedido e doado, de alguma forma, por Deus”. Por isso somos “administradores daqueles bens ou dons que possuímos, que não devemos nem guardar para nós nem desperdiçar, mas colocá-los sempre ao serviço dos outros”.
A recuperação dessa doutrina tradicional leva-o a recordar a responsabilidade de todos os cidadãos no enfrentamento à pobreza. E reclamar, em consequência disso, a caridade pública, sem descartar a caridade privada.
Se não me engano, está se abrindo um processo que levará ao reconhecimento da existência ou, pelo menos, de uma hipoteca social sobre todos os bens; e ainda mais em uma sociedade profundamente desigual como a nossa.
A centralidade dessas duas verdades, de ordem espiritual e teológica, permite-lhe formular os critérios que deveriam presidir um novo modelo de atenção aos pobres na cidade de Bruges: “O forte – afirma –, pela vontade de Deus, deve tomar conta do fraco".
O resultado é um plano de intervenção em que a administração municipal também tem a função de orientar e gerir a erradicação da pobreza, abrindo as portas para o que, ao longo do tempo, se materializará em políticas públicas de bem-estar social.
E, da mesma forma, dando início a uma autocompreensão da Igreja à luz do que se tornará, com o passar do tempo, o princípio da subsidiariedade: a comunidade cristã procura os pobres que são atendidos de forma deficitária pelas políticas públicas assistenciais sem se preocupar com a notoriedade e o reconhecimento social: "quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita" (Mt 6,3).
Com base nesses dois princípios e nos critérios orientadores que os inspiram, Vives formula uma série de considerações sobre a gestão e a liderança do novo modelo germinal de caridade e de justiça. Destaco, em particular, duas:
1) A primeira diz respeito à gestão de algumas contrapartidas que a cidade de Bruges pode pedir às pessoas que ajuda. As ajudas - ressalta Juan Luis Vives - não podem e não devem ser percebidas pelos cidadãos como um fardo insuportável para a comunidade. E para evitar que isso aconteça, tais ajudas devem ser geridas solicitando – a quem for seu destinatário – um serviço que contribua, sempre que possível, para o bem comum. Daí a importância - destaca - de que os pobres passem por um censo, para que, uma vez cadastrados e identificados com seus nomes e suas necessidades particulares, recebam o auxílio material necessário, ou sejam formados e se ensine a eles, por exemplo, um ofício que lhes permite sair da situação de indigência em que se encontram.
Para isso, pode-se pedir a eles que colaborem também trabalhando, na medida do possível, em alguns dos hospitais ou casas de acolhida quando seus serviços forem solicitados. É o que, ao longo do tempo, será definido como contrapartida social pela ajuda recebida: a beneficência - neste caso pública – é legitimada a exigir compensações das pessoas que ajuda.
2) A segunda consideração refere-se à liderança no enfrentamento da pobreza. A pobreza – argumenta o humanista valenciano – é uma desgraça e uma injustiça de enormes dimensões. Isso significa que não é mais aceitável continuar a deixar o seu desenraizamento – como foi feito – nas mãos da liberalidade muitas vezes intermitente dos corações compassivos ou da Igreja.
É fundamental que a administração municipal de Bruges imagine uma resposta em que – como já foi frisado – os mais necessitados sejam ajudados pelos poderosos.
Com essa segunda consideração, Vives aceita uma dupla liderança, que é corresponsável porque se baseia na colaboração entre instituições de caridade privada e pública. Trata-se – a meu ver – de um novo modelo em que se articulam a caridade eclesial e a justiça – neste caso distributiva –, cuja regulamentação cabe ao Município.
Essa é a novidade - diga-se de passagem nada tão fenomenal - de uma proposta que, apesar de sua moderação, será criticada. Alguns, devido à "ingerência" de instituições civis num âmbito (aquele da caridade) que é da competência exclusiva da Igreja. Para outros, porque a municipalização da caridade - passando da mão eclesiástica para a pública - favoreceria o desmantelamento institucional da Igreja; uma estratégia típica dos hereges luteranos.
Relendo a Reflexão sobre a causa dos pobres (1545), de Domingo de Soto, há dois pontos a que se deve prestar atenção: a defesa da liberdade dos pobres e a preocupação de não "desnatar" a misericórdia.
Em primeiro lugar, alio-me à sua crítica para aqueles países europeus que proíbem os pobres de vaguear e mendigar. Se uma nação – pergunta-se o frade dominicano – assume a tarefa de prover aos pobres, é aceitável que sua liberdade seja limitada, como se depreende do plano de intervenção proposto por Juan Luis Vives?
É possível – argumenta – que a medida seja idônea do ponto de vista jurídico. Ainda mais se for acompanhada de alguma ajuda. Mas não se pode ignorar que a assistência prestada apenas cobre a necessidade extrema, não erradica a pobreza. Portanto, não existe um fundamento suficientemente sólido para privar os pobres do direito de continuar a pedir esmola e, portanto, da liberdade de movimento.
Em segundo lugar, impressiona-me a sua observação sobre aqueles que "retiram os pobres dos olhos dos cristãos". Eles - denuncia Domingo de Soto, utilizando uma expressão feliz - "desnatar a virtude da misericórdia" porque dissolvem "o afeto interior" e, portanto, a "compaixão" pelas "dificuldades dos pobres".
Aqueles, por outro lado, que se relacionam com eles "com os olhos e as mãos", dando-lhes comida, são aqueles que praticam, sem reduções de nenhum tipo, a chamada misericórdia, assim como Jesus nos ensinou "naquele milagre, quando alimentou aquela multidão de pessoas no deserto. De acordo com o que dizem S. Mateus e S. Marcos primeiro teve compaixão interior e pena por seu cansaço e esforço; e daqui derivou a intervenção exterior”.
É essa coragem (a de proclamar abertamente a identificação de Jesus com os pobres) que continua a chegar aos nossos dias, impedindo-nos de fechar os olhos diante de alguns dos "dogmas" modernos na prática da caridade e na defesa da justiça, como como, por exemplo, a proibição de pedir esmola e a ocultação civil dos pobres e, se me permitirem, a de colocar às margens aqueles socialmente irrecuperáveis, tanto por não serem pessoalmente capazes, quanto por não terem a vontade de sair dessa situação ou, simplesmente, por não estarem dispostos a corresponder ao que é proposto ou solicitado para receber a ajuda.
A releitura das reflexões do frade dominicano trouxe à minha memória o debate, que surgiu em 2015, quando, em uma paróquia, se aconselhava aos fiéis - seguindo as indicações da Caritas diocesana local - de não dar esmola às pessoas que pedissem na entrada a igreja, mas encaminhá-las para o ente de caridade. Naquela ocasião assumi uma posição que ainda hoje me parece adequada.
Mais ainda, se percorrermos a espiritualidade e a teologia na tradição latina, que creio ser a que se percebe também no Papa Francisco quando recorda que "os pobres não são números, mas pessoas", ou quando diz que "dói muito ver alguns operadores de beneficência se tornarem funcionários e burocratas".
Querendo ou não - argumentei na época - não é incomum encontrar serviços de assistência primária (mesmo eclesiais) sobrecarregados por pedidos de ajuda ou por sua demora na gestão e na entrega. E, ao mesmo tempo, com um “voluntariado” muitas vezes desanimado e exausto pela impotência gerada por esses trâmites e demoras, bem como com pessoas que habitualmente pedem às portas das igrejas; ou que estão desesperadas ou obrigadas por máfias e familiares, porque não têm outra saída ou, simplesmente, porque não aceitam oferecer nenhum serviço em troca da ajuda de que necessitam. É um dos aspectos difíceis - embora não seja o único - com que deve conviver quem mantém uma relação direta e de modo algum "desnatada" com a pobreza.
Entendo, nessa ou numa situação semelhante, que se insista no fato de que a forma mais "eficaz" de ajudar passa pela Caritas, mas nunca direi que a esmola não deve ser dada a quem a pede. Eu tento evitar dar esmola, mas não consigo. Não tenho a coragem de pregar que Deus se identifica com os pobres e lhes negar a ajuda - principalmente se for urgente - apesar de colaborar com a Caritas e outras organizações. Nesse assunto, prefiro pecar por "bom-mocismo".
Estou convencido de que este é o preço que tenho de pagar por não "desnatar a misericórdia, sabendo que, por mais que gestos de gratuidade que se possam fazer em relação aos pobres, estes não equivalem a tudo aquilo a que somos obrigados, simplesmente por sermos cristãos: “O pobre só tem uma razão para fazer o bem a ele – afirma Domingo de Soto – “aquela de estar na pobreza e na necessidade; não peçamos a ele nenhum outro reconhecimento. Mesmo que seja um homem de péssimos hábitos, se estiver com fome, você deve dar-lhe algo para comer. Assim nosso Redentor nos ensinou a ser como seu Pai, que faz o sol nascer igualmente sobre os bons e os maus”.
A forte ênfase na identificação de Jesus com o pobre – característica do frade dominicano – coexiste com o reconhecimento da destinação universal dos bens, ainda que esta não seja a chave última da sua contribuição: “Os ricos – recorda – devem ser tidos e estimados como pessoas cruéis e infiéis, que, tendo Deus lhes confiado tantos bens para repartir com seus irmãos, com esses bens garantiram para si uma posição elevada, fazendo desmoronar a fé que devem a Ele".
Como antecipei, todas essas contribuições me ajudaram a imaginar e repensar como poderia ser um novo modelo de caridade e de justiça que busque superar, de forma empática e crítica, outros modelos excessivamente profissionalizados (guiados pela rentabilidade econômica de um trabalho, claro, bem feito) ou puramente assistencialistas ou instrumentais da comunidade cristã e às margens dela e, por isso, “desnatados”. E faço isso tendo presente a sua matriz cristológica, além de seu enraizamento eclesial.
Como recordei, a proposta formulada por Juan Luis Vives e os debates que se seguiram sugeriam à Igreja – na época a única instituição responsável pelo cuidado dos pobres – de se reposicionar, pelo menos, em termos de liderança compartilhada ou corresponsável com o município de Bruges; e, posteriormente, com as outras instituições públicas. Tal exigência de reposicionamento eclesial – como também mencionei - foi rejeitada em alguns âmbitos da comunidade cristã, abrindo um debate - que ainda hoje continua - sobre a necessidade de esclarecer a relação entre caridade eclesial e caridade pública, bem como a relação com outras organizações privadas. E, mais recentemente, entre Caritas e ONGs.
Esse lembrete nos obriga a especificar, em primeiro lugar, quais linhas vermelhas ou quais prestações correspondentes - entre todos aquelas eventualmente solicitadas - não devem ser ultrapassadas ou aceitas pela Caritas quando se recebem ou se solicitam, por exemplo, subsídios públicos ou ajuda financeira por uma entidade privada. Acho que devem ser recusadas aquelas em que se pede – de uma forma ou de outra – para tornar invisíveis os pobres ou contribuir para sua ocultação social e eclesial, ou aquelas que penalizam ou rejeitam as relações diretas com eles.
Mas também deve evitar, em segundo lugar, interagir com administrações públicas ou instituições privadas apresentando, por exemplo, ambiciosos projetos de intervenção que, generosamente subsidiados, permitam manter - antes e acima de tudo - alguns postos de trabalho; sem, por isso, deixar de cumprir o pontual e acordado serviço ou ajuda social. Se isso acontecer, é muito provável que acabemos com um modelo de Caritas que, excessivamente profissionalizada e distante de sua matriz cristológica e de suas raízes eclesiais, acabará por instrumentalizar os pobres.
Mas, além disso, é preciso esclarecer a relação a ser mantida com as ONGs, engajadas, como ela, no combate à pobreza. Sabe-se que a Caritas é vista por muitas administrações públicas e instituições privadas como uma importante ONG, tanto por sua presença no território como pelo significativo número de voluntários e, ao mesmo tempo, pela rentabilidade econômica e eficácia social do trabalho que desempenha. Mas sabe-se também que, muitas vezes, compete com outras ONGs para garantir para si determinados projetos de intervenção. Quando isso acontece, é oportuno se perguntar se faz sentido que uma Cáritas, de clara e explícita matriz cristológica, faça concorrência a outras ONGs.
É possível que nos deparemos com situações em que o serviço prestado por essas ONGs, e também pela própria administração pública, seja limitado ou insuficiente ou, no mínimo, passível de melhorias. Se assim acontecer, penso que se justifique a presença competitiva da Caritas, porque se trata de obter projetos que, devidamente subsidiados, serão melhor executados e acompanhados por ela em benefício e proveito dos últimos do nosso mundo.
Mas também é possível que nos encontremos com um modelo de Caritas que compete não tanto por razões cristológicas (mesmo os pobres têm direito a uma assistência de qualidade), mas sim pela necessidade de dar uma certa estabilidade profissional e empregatícia a um grupo de assalariados – provavelmente demasiado numeroso – que não é possível abandonar. Esse modelo de Caritas procura, pois, mostrar-se, ser ouvido e “procurado” em todas as administrações e instituições em que a sua presença é, ou poderia ser, profícua sobretudo em termos econômicos e de estabilidade ocupacional.
Quando isso acontece, estamos diante de um modelo de Caritas que - nas palavras de Francisco - se burocratizou e - provavelmente, sem buscar nem querer - se tornou "um negócio", financeiramente consistente, mesmo sem deixar de servir aos pobres.
Se essa forma de proceder acabar por "tornar-se normal", entendo que é chegado o momento de deixar o terreno livre a outras ONGs ou à própria administração pública e de repensar outro modelo que permita recuperar a indiscutível raiz cristológica da sua razão de ser: a identificação de Jesus com os últimos, onde quer que estejam e não sejam devidamente assistidos.
Isso não significa que a Caritas deva se retirar - em princípio - do espaço público. De maneira alguma. Mas deve estar ciente de que chegará o momento em que terá que se retirar de certos âmbitos e "periferias"; em particular, se aparecer outro grupo que fizer melhor ou com maior disponibilidade de recursos.
E também deve estar ciente de que deve usar todos os meios necessários para tornar possível essa retirada; e quanto antes melhor, porque identifica e atende, de forma preferencial, os excluídos, os "outros Cristos", onde quer que estejam, independentemente de outras considerações e vantagens a serem auferidas, sejam elas políticas, sociais, econômicas, religiosas, midiáticas ou qualquer outro tipo. E assim deve proceder por causa de um imperativo cristológico: “Tereis sempre os pobres convosco” (Mc 14,7).
Obviamente, isso requer ter uma instituição muito leve, pelo menos do ponto de vista organizacional, bem como de gestão e direção. A Caritas não é uma ONG típica ou uma organização paralela ou em concorrência com instituições públicas e outros grupos sociais, mas um instrumento ativado para estar presente onde nem uma nem outros chegaram ou, onde estiverem presentes, prestem um serviço que pode claramente ser melhorado
Da contribuição de Domingo de Soto, conservo a importância da justiça redistributiva imbuída de caridade, isto é, numa relação com os pobres na qual está envolvido "o coração, a alma e todo o nosso ser". A sua me parece uma crítica oportuna a uma Caritas altamente profissionalizada e, portanto, "desnatada", "sem alma", sem espiritualidade ou - o que dá no mesmo - sem vísceras de humanidade; algo típico de um modelo obcecado por rentabilidade econômica e pela estabilidade profissional e direcionado a aplicar as orientações ou critérios recebidos, sem maiores ponderações e sem tantas cerimônias.
É uma crítica que me parece oportuna também pela importância que - positivamente - acaba tendo a dimensão profética que se baseia na identificação de Jesus com os pobres. Quando, num novo modelo de Caritas, essa identificação espiritual e teológica é tratada e valorizada acima de outras considerações - que acaba por comportar e, igualmente, da liberdade criativa que a move. É a “bendita loucura cristã” que, manifestando-se de forma viva, deve ser articulada com a necessária previsão econômica num novo modelo de Caritas de matriz explicitamente cristológica.
A leitura conjunta de Juan Luis Vives e Domingo de Soto, assim como as contribuições de Francisco e Bento XVI, também me ajudaram a imaginar e propor como poderia ser uma Caritas que cuidasse de seu enraizamento ou de sua matriz eclesial, ou que esteja aberta - nas palavras do Papa Bergoglio - "à comunhão com as comunidades eclesiais" às quais pertence e das quais é expressão.
Tal vínculo é o que permitiria classificar este ou qualquer outro modelo possível como “pastoral” ou eclesial, porque se estaria falando de uma Caritas disposta a ser – sempre no pensamento de Francisco – o “abraço de Deus” para os pobres. E, ao mesmo tempo, a voz dos últimos do mundo na comunidade cristã. Trata-se, portanto, de uma ONG com uma “identidade distintiva”: não só cristológica, mas também eclesial.
A escolha desse modelo eclesial ou “pastoral” exigiria mover-se em duas direções: primeiro, um modelo Caritas com uma direção vertical e profissionalizada e, outro, com uma liderança claramente ministerial (liderada tanto por leigos quanto por ministros da Igreja). E, em segundo lugar, de um modelo de Caritas organizado e gerido de forma centralizada ao modelo das diversas Caritas territoriais ou setoriais, corresponsavelmente coordenadas.
O cuidado e a atenção à caridade e à justiça são um dos três pilares fundamentais sobre os quais se assenta toda comunidade cristã. A santificação ou a liturgia e o anúncio ou a evangelização são os outros dois. Se algum deles viesse a faltar, ou se um deles fosse terceirizado, acabaríamos com uma comunidade manca. E se essa escolha se tornasse crônica, a existência de tal comunidade estaria em risco.
Entendo que uma Caritas "pastoral" ou eclesial é aquela que, ao lado dos ministérios eclesiais da santificação e do anúncio, tem também o da caridade e da justiça. Trata-se de um ministério eclesial e, portanto, laical e, em alguns casos, ordenado, pensemos no diaconato. Tanto o ministério laical como o ministério ordenado são mediação ou sacramento de Cristo, servidor dos pobres e promotor da justiça.
Ao constituir uma equipa ministerial, teriam a tarefa de orientar, coordenar e dinamizar essa dimensão da comunidade cristã, tanto na região quanto num âmbito pastoral especializado ou na própria diocese. Ou seja, gerir a Caritas por um período de tempo a estabelecer, em que contariam com a ajuda de técnicos especializados e, sobretudo, da colaboração corresponsável de voluntários, pertencentes à comunidade ou a um grupo de comunidades que possam constituir, por exemplo, uma unidade pastoral.
É de esperar que a sua implementação resolveria muitos ou, pelo menos, alguns dos problemas devidos a um sistema excessivamente profissionalizado e, por isso, alheio à comunidade. Claro, não devemos ser ingênuos, porque outros problemas podem surgir.
Às indicações dadas acima sobre a relação com as administrações públicas, organizações privadas e ONGs, deve-se acrescentar o compromisso com um modelo de gestão e organização que, em sintonia com o melhor do Concílio Vaticano II, seja uma "comunhão de Caritas territoriais e setoriais" e, portanto, não centralizado e verticalizado.
No Concílio Vaticano II existem dois modelos de como se pode organizar e orientar a Igreja: um marcadamente clerical e outro corresponsável.
O primeiro encontra sua referência na Nota explicativa prévia à constituição dogmática sobre a Igreja, a Lumen gentium, que, entregue por "mandato da autoridade superior", como guia para a compreensão da citada constituição em tudo o que se refere à colegialidade episcopal, de fato favorece o clericalismo eclesial. De acordo com a Nota explicativa prévia, o papa pode agir "de acordo com seu próprio critério" (propria discretio) e “como melhor entender” (ad placitum). E o que se diz do papa pode ser aplicado ao bispo, ao presbítero ou, em geral, ao presbítero ou ministro ordenado nos âmbitos de sua competência.
Os redatores da Nota explicativa temem que ao papado – e, por extensão, a todo o ministério ordenado – sejam atribuídos poderes reais, mas que não possam exercê-los livremente devido ao peso excessivo do colégio episcopal ou dos diversos conselhos pastorais. Para sair desse risco, eles recorrem à teoria do duplo sujeito do poder supremo na Igreja: o poder do papa tem a mesma finalidade e o mesmo alcance daquele de todo o colégio (incluindo o papa). E, coerentemente com ele, também os bispos e os ministros ordenados, em seus respectivos territórios ou âmbitos de atribuição pastoral, têm o mesmo poder de todos os conselhos e órgãos, incluindo a direção e orientação da Caritas. É um quadro derivado do modelo laico, típico do poder monárquico absoluto.
Diante de tal modelo de organização, há outro: aquele propriamente conciliar. De acordo com esse, a Igreja Católica é uma comunhão de Igrejas (communio Ecclesiarum) presidida, na unidade da fé e na comunhão, pelo sucessor de Pedro, embora o atual Código de Direito Canônico não o leva em consideração nem tenha se esforçado de modo algum para estabelecer os direitos e deveres das dioceses na "comunhão das Igrejas". Trata-se de uma eclesiologia em que liderança, gestão e organização esperam um desenvolvimento teológico e jurídico; para depois ser inaugurado. A melhor e, ao mesmo tempo, limitada contribuição neste sentido foi o empenho de Francisco pela sinodalidade eclesial.
Em coerência com este modelo conciliar, penso que a organização de um novo modelo de Caritas deveria se centrar numa gestão e liderança corresponsável, de baixo para cima, ou, o que é o mesmo, como uma “comunhão de Caritas territoriais” e como comunhão de presenças em "âmbitos especializados", presidida, como deve ser, pelo ministério ordenado (bispo diocesano, presbítero ou diácono, conforme o caso) para garantir a unidade da fé e a comunhão em tudo o que diz respeito à caridade e à justiça.
A intervenção do Papa sobre a Caritas internationalis, para além das críticas que suscitou, é uma magnífica oportunidade para imaginar e repensar - seguindo as suas indicações do ano de 2019 - um novo modelo de Caritas que, com uma matriz explicitamente cristológica e com claras raízes eclesiais, permita enfrentar o século XXI de forma mais evangélica.
Obrigado, Francisco, por suas considerações precisas e pontuais sobre a caridade e pelas portas abertas ao diálogo sobre um novo modelo!
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Como muda a Caritas Internacional? Artigo de Jesús Martínez Gordo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU