01 Fevereiro 2023
“A esta altura, é incontestável que o PIB é inadequado como medida do progresso social; que se choca frontalmente com uma abordagem mais equitativa de problemas como o desastre climático e a discriminação de gênero; que o paradigma do crescimento infinito em que se ampara se tornou completamente obsoleto diante dos desafios deste século”, escreve Azahara Palomeque, escritora e jornalista, em artigo publicado por La Marea-Climática, 31-01-2023. A tradução é do Cepat.
Imaginemos um belo dia de sol: decidimos passear pelo campo, respirar um ar puro e ouvir o canto dos pássaros que fazem ninhos nas árvores. Após essa caminhada revigorante, voltamos para casa em um estado de plenitude invejável. Imaginemos o mesmo dia, mas com acontecimentos diferentes: irrompe um incêndio que destrói a vegetação do local, mata os animais ou os obriga a fugir, e cobre o céu com uma fumaça espessa e poluente. A primeira hipótese não implicaria, em princípio, qualquer valor econômico; a segunda seria benéfica para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), já que a devastação gera atividades produtivas, como a dos seguros e da indústria madeireira, que aproveita as toras atingidas pelo fogo.
Esta é uma das críticas que, ao longo dos anos, vêm sendo feitas a um indicador, o PIB, considerado pelos economistas clássicos uma medida confiável do bem-estar e do progresso, mas que é cada vez mais questionada. Sem ir muito longe, recentemente, o governo espanhol se vangloriava pelo fato do país ter crescido 5,5%, em 2022, dados avaliados como favoráveis que, muitas vezes, engrossam as manchetes e são instrumentalizados para vencer eleições.
No entanto, o PIB, que mede o valor monetário total dos bens e serviços de um território e é utilizado para comparar o tamanho das economias nacionais e calcular a capacidade de sua dívida, apresenta muitas lacunas que, em um mundo ameaçado por crises como a climática e a da biodiversidade, devem ser ressaltadas. Está na hora de abandonar este indicador? Quais são as alternativas existentes?
Se há um acontecimento que marca um antes e um depois na consideração do PIB, é o discurso proferido por Bobby Kennedy, na Universidade do Kansas, em 1968, meses antes de seu assassinato. O senador estadunidense destacou como o PIB considerava o napalm e as ogivas nucleares, os carros blindados e rifles, mas ignorava “a saúde de nossos filhos, a qualidade de sua educação”, a integridade dos políticos, a sabedoria e a aprendizagem. Em resumo: “Mede tudo, exceto o que faz a vida valer a pena”.
Esses ensinamentos vêm sendo ressaltados por muitos pesquisadores, como o professor britânico especializado em economia ambiental, Tim Jackson, que em seu livro Post Growth destaca a influência sobre Kennedy da renomada bióloga Rachel Carson, ambientalista pioneira que alertou sobre os abusos dos agrotóxicos.
Em Contra la sostenibilidad, o doutor em biodiversidade Andreu Escrivà alerta a respeito desse número que “se coloca sobre nossas cabeças como uma guilhotina” e enfatiza que, apesar do aumento do PIB mundial, nos países ocidentais houve uma redução de direitos, da liberdade pessoal e dos serviços sociais, entre outros fatores.
É que além de não medir o bem-estar, e apesar de seu prestígio na hora de avaliar o nível de vida, o PIB também omite os cuidados com os filhos e a realização das tarefas domésticas, ambos maioritariamente realizados por mulheres, e não registra a distribuição dos ativos econômicos, disfarçando assim a desigualdade.
Não surpreende que até mesmo o vencedor do Prêmio Nobel Angus Deaton, professor da Universidade de Princeton, esteja entre seus detratores. Deaton, conhecido por suas pesquisas sobre as “mortes por desespero”, provocadas por suicídios, álcool e drogas, afirmou, recentemente, em relação à epidemia de opioides, com a qual algumas empresas farmacêuticas lucram exageradamente: “Temos um sistema que está matando as pessoas e contamos esse dinheiro como parte do PIB. Isso é uma loucura”.
Contudo, talvez quem tenha abordado as deficiências do PIB de forma mais propositiva seja a economista britânica Kate Raworth. Em seu aclamado livro Economia Donut, traça uma genealogia deste indicador para depois esboçar um modelo econômico alternativo que não precisa mais dele.
Segundo Raworth, o PIB fazia sentido quando, nos anos 1930, o expatriado russo nacionalizado estadunidense Simon Kuznets inventou este cálculo, então chamado de Produto Nacional Bruto, pois permitia monitorar a eficácia do pacote de medidas contra a crise de 1929, implementado por Roosevelt: o New Deal. Mais tarde, durante a Segunda Guerra Mundial, sua utilidade ficou demonstrada na hora de colocar o tecido industrial do país à disposição da maquinaria bélica.
Não obstante, já nos anos 1970, foi o próprio Kuznets que se rebelou contra sua invenção utilizada como avaliação do progresso social, embora o PIB tivesse sido incluído pela ONU em seu Sistema de Contas Nacionais e contasse com grande legitimidade.
Raworth não hesita em afirmar sua insuficiência e, com base no legado do Relatório Meadows, Limites do crescimento (1972), apresenta um sistema diferente, a “economia donut”, que se caracterizaria por um círculo exterior, correspondente ao teto ecológico, e um interior integrado por uma base social alinhada aos direitos humanos. Em tal paradigma econômico, haveria um uso responsável dos recursos naturais e seriam atendidas as necessidades das pessoas, tais como saúde, educação, igualdade de gênero, acesso a alimentos e água.
A economia donut, embora tenha suscitado um reconhecido debate sobre a urgência de deter a devastação ambiental e redistribuir a riqueza em sintonia com os objetivos da justiça social, ainda permanece no reino utópico. Outras formas mais imediatas de desafiar a primazia do PIB vieram de propostas como a utilização do Índice de Progresso Genuíno, que corrige o anterior levando em consideração fatores como a pobreza e a poluição, e que é utilizado em alguns lugares como no estado de Maryland [Estados Unidos].
Por outro lado, são cada vez mais os que defendem a substituição do PIB por análises centradas na felicidade humana. É o caso do cientista do Conselho Superior de Investigações Científicas - CSIC e ambientalista Fernando Valladares, que afirma que por esta via se obterá “uma sensação muito clara e perceptível de desenvolvimento”, ao mesmo tempo em que se incide na preservação e melhora dos espaços naturais, pois impactam diretamente no bem-estar dos cidadãos, incluindo a sua saúde mental.
Uma contrapartida a essa abordagem seria a estudada pelo psicólogo Edgar Cabanas e a socióloga Eva Illouz, em Happycracia: os índices de felicidade, subjetivos e dificilmente quantificáveis, foram popularizados por alguns governos, nos anos mais duros da crise financeira (2008-2012), com o propósito de desviar a atenção de diferentes números (de desemprego etc.) que apontavam para o aumento da desigualdade.
Seja como for, a esta altura, é incontestável que o PIB é inadequado como medida do progresso social; que se choca frontalmente com uma abordagem mais equitativa de problemas como o desastre climático e a discriminação de gênero; que o paradigma do crescimento infinito em que se ampara se tornou completamente obsoleto diante dos desafios deste século.
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Para além do PIB: como medir o bem-estar no século XXI - Instituto Humanitas Unisinos - IHU